ED no(a) PC-PP - 0600240-77.2022.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 10/03/2025 às 10:00

VOTO

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento.

No mérito, os embargantes afirmam que o acórdão padece de omissão, uma vez que, ao considerar a irretroatividade do art. 6º da EC n. 133/24, que ampliou a possibilidade de gastos com recursos do Fundo Partidário, negou vigência ao art. 7º da mesma Emenda, consoante o qual a aplicação das novas disposições constitucionais é imediata e retroage.

Contudo, não assiste razão aos recorrentes.

O acórdão embargado reconheceu de modo expresso e fundamentado a irretroatividade do novo art. 6º da EC n. 133/24, o qual passou a permitir, a partir da sua vigência, a utilização de recursos do Fundo Partidário para pagamentos de multa, juros e/ou encargos, o que era anteriormente vedado pelo art. 17, § 2º, da Resolução TSE n. 23.604/19.

Transcrevo a análise do ponto contida no acórdão recorrido:

(…) o exame das contas constatou a realização de gastos com recursos do Fundo Partidário através das contas n. 1083422 e n. 257486, da agência 10, do Banco do Brasil, para pagamentos de multa, juros e/ou encargos, em desacordo com o art. 17, § 2º, da Resolução TSE n. 23.604/19, resultando no total de R$ 43.456,00, conforme tabela 4, constante no ID 45527960, que indica os beneficiários: Ministério da Economia, Ministério da Fazenda, Sky, Zenvia Mobile, Dinamize, Vivo e Localiza Rent a Car.

O dispositivo legal citado é expresso em estipular que “os recursos do Fundo Partidário não podem ser utilizados para a quitação de multas relativas a atos infracionais, ilícitos penais, administrativos ou eleitorais ou para a quitação de encargos decorrentes de inadimplência de pagamentos, tais como multa de mora, atualização monetária ou juros”.

De seu turno, a agremiação partidária defende que “o artigo 6º da Emenda Constitucional número 133 garante aos partidos políticos o uso de recursos do fundo partidário para o parcelamento de sanções e penalidades de multas eleitorais”, de modo que “o artigo antes citado revogou implicitamente a previsão contida no §2º do artigo 17 da Resolução TSE nº 23.604/2019”.

Com efeito, o novo dispositivo constitucional trazido pela EC n. 133/2024 possui a seguinte redação:

Art. 6º É garantido aos partidos políticos e seus institutos ou fundações o uso de recursos do fundo partidário para o parcelamento de sanções e penalidades de multas eleitorais, de outras sanções e de débitos de natureza não eleitoral e para devolução de recursos ao erário e devolução de recursos públicos ou privados a eles imputados pela Justiça Eleitoral, inclusive os de origem não identificada, excetuados os recursos de fontes vedadas.

 

Nada obstante, o dispositivo invocado não prevê uma anistia, remissão ou qualquer outra forma de extinção das irregularidades anteriormente praticadas, vindo apenas a permitir, a partir da sua vigência, a utilização de recursos do Fundo Partidário em gastos anteriormente vedados.

Ocorre que o art. 17, § 2º, da Resolução TSE n. 23.604/19 é válido e constitucional em sua origem. Dessa forma, o conflito estabelecido com a norma constitucional superveniente, que cria uma disposição diversa ou incompatível, deve ser resolvido pela técnica da revogação, e não pela invalidação da norma anterior.

Consoante explicitado no paradigmático voto do Ministro Paulo Brossard no julgamento da ADI n. 2:

Se a lei anterior é contrariada pela lei posterior, tratar-se-á de revogação, pouco importando que a lei posterior seja ordinária, complementar ou constitucional. Em síntese, a lei posterior à Constituição, se a contrariar, será inconstitucional; a lei anterior à Constituição, se a contrariar, será por ela revogada, como aconteceria com qualquer lei que a sucedesse. Como ficou dito e vale ser repetido, num caso, o problema é de direito constitucional, noutro, é de direito intertemporal.

(ADI 2, Relator: MINISTRO PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 6.2.1992, DJ 21.11.1997)

 

Acerca da sucessão temporal de normas sobre contas partidárias e eleitorais, este Tribunal tem se posicionado pela irretroatividade das novas disposições de natureza material, ainda que eventualmente mais benéficas ao prestador de contas, com fundamento nos princípios do tempus regit actum, da isonomia e da segurança jurídica.

Nesse sentido, o seguinte julgado:

PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. ÓRGÃO DE DIREÇÃO ESTADUAL. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2016. PRINCÍPIO TEMPUS REGIT ACTUM. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE FONTES VEDADAS. AUTORIDADES. SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL. APROVAÇÃO COM RESSALVAS. 1. Irretroatividade da Lei n. 13.488/17. Aplicação da legislação vigente ao tempo do exercício financeiro, em consideração aos princípios da anualidade eleitoral, da isonomia e do tempus regit actum, que disciplinam o conflito de leis no tempo. 2. É vedado aos partidos políticos o recebimento de contribuições de titulares de cargos demissíveis ad nutum da administração direta ou indireta, quando ostentam a condição de autoridades. O descumprimento enseja a suspensão do repasse de verbas do Fundo Partidário. 3. Aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade para aprovar as contas com ressalvas e fixar, em 01 mês, o período de suspensão do Fundo Partidário, tendo em vista o valor irrisório da irregularidade, que alcança 0,61% do total de recursos arrecadados. 4. Imposição de recolhimento de valores ao Tesouro Nacional. Aprovação com ressalvas.

(TRE-RS - PC: 3573 PORTO ALEGRE - RS, Relator: Des. Eleitoral EDUARDO AUGUSTO DIAS BAINY, Data de Julgamento: 03.07.2018, Data de Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 119, Data 06.07.2018, Página 4.)

Na mesma linha, a jurisprudência do TSE enuncia que “os dispositivos legais de natureza material que devem reger a prestação de contas são os vigentes ao tempo dos fatos ocorridos, consoante o princípio tempus regit actum e o art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” (Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial Eleitoral 0600550-29/PR, Relator: Min. Floriano De Azevedo Marques, Acórdão de 13.06.2024, Publicado no Diário de Justiça Eletrônico 108, data 24.6.2024).

Com o mesmo posicionamento, em recente julgamento envolvendo contornos fáticos semelhantes, o Tribunal Regional do Distrito Federal pronunciou-se pela irretroatividade do art. 6º da EC n. 133/24, apontando que:

[…].

Outrossim, não se aplica ao caso a Emenda Constitucional nº 133/2024. Referida emenda ampliou hipóteses de aplicação de recursos do Fundo Partidário, conforme disposto em seu artigo 6º. Contudo, a regra é aplicável a partir da promulgação da emenda, podendo o partido utilizar recursos públicos do Fundo Partidário para pagamento de sanções impostas. Mais uma vez, não é o caso dos autos.

(Embargos de Declaração na PC-PP 0600369-72/DF, Relator: Des. RENATO GUSTAVO ALVES COELHO, Acórdão de 23.9.2024, Publicado no Diário de Justiça Eletrônico do TRE-DF 188, data 8.10.2024.)

Logo, deve ser aplicada à solução do caso concreto a legislação vigente ao tempo dos fatos em análise, que vedava o uso de recursos do Fundo Partidário para o pagamento multa, juros e/ou encargos.

Desse modo, comprovado que ocorreu o pagamento de despesas proibidas com recursos do Fundo Partidário, segundo a ordem jurídica vigente ao tempo dos fatos, cabe a restituição do valor de R$ 43.456,00 ao Tesouro Nacional.

[…].

 

De seu turno, os embargantes argumentam que:

Em que pese a decisão embargada tenha consignado acerca da sucessão temporal das normas e pela” irretroatividade das novas disposições de natureza material” há uma omissão no julgado no ponto em que nega vigência ao artigo 7ª da Emenda Constitucional nº 133/2024, dispositivo que deixa claro que a aplicação da norma é imediata e retroage, pois sua aplicação INDEPENDE de terem sido julgados os processos, tanto de exercícios financeiros quanto eleitorais, ou estarem em execução, até mesmo naqueles processos em que houve o trânsito em julgado (…).

 

O dispositivo invocado pelos embargantes possui a seguinte redação:

Art. 7º O disposto nesta Emenda Constitucional aplica-se aos órgãos partidários nacionais, estaduais, municipais e zonais e abrange os processos de prestação de contas de exercícios financeiros e eleitorais, independentemente de terem sido julgados ou de estarem em execução, mesmo que transitados em julgado.

 

Ocorre que a aplicabilidade pretendida pelos embargantes em relação à previsão constitucional em comento equivale aos efeitos de uma anistia, o que demandaria previsão expressa nesse sentido, tal como ocorre na redação do art. 3º da mesma EC n. 133/24, pela qual: “a aplicação de recursos de qualquer valor em candidaturas de pessoas pretas e pardas realizadas pelos partidos políticos nas eleições ocorridas até a promulgação desta Emenda Constitucional, com base em lei, em qualquer outro ato normativo ou em decisão judicial, deve ser considerada como cumprida”.

Por outro lado, o art. 6º da EC n. 133/24 é uma norma que apenas ampliou o rol de hipóteses permitidas para o uso de recursos do Fundo Partidário, não abolindo irregularidades já consumadas sob a égide da legislação anterior.

Além disso, a referida Emenda Constitucional tem por objeto temas bastante diversificados, tais como a obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para candidaturas de pessoas pretas e pardas (art. 2º); a anistia por irregularidades atinentes à aplicação de recursos em candidaturas de pessoas pretas e pardas realizadas até a data da sua promulgação (art. 3º); o reforça a imunidade tributária dos partidos políticos conforme prevista na Constituição Federal (art. 4º), bem como parâmetros e condições para regularização e refinanciamento de débitos de partidos políticos, criando um Refis aos partidos políticos (art. 5º).

Assim, o art. 7º em questão, que não trata em específico de certo ou determinado artigo, deve receber um interpretação sistemática do texto de toda a Emenda Constitucional. Desse modo os preceitos da nova Emenda, de modo global, possuem incontestável aplicabilidade imediata sobre os processos de contas partidárias ou eleitorais, independentemente da fase processual em que se encontrem.

Todavia, esse dispositivo não implica retroatividade automática das novas regras sobre situações já consolidadas, uma vez que o princípio da irretroatividade, por ser uma garantia constitucional (art. 5º, inc. XXXVI, da CF), somente pode ser ressalvado de forma clara e expressa, o que não ocorre na hipótese.

A interpretação sistemática do texto da EC n. 133/24 impõe a aplicação prospectiva das normas de natureza material que não instaurem expressamente alguma espécie de anistia de irregularidades, ainda que com eficácia direta e imediata sobre os fatos futuros em processos de contas eleitorais e partidárias em qualquer fase.

Nesse sentido, o acórdão embargado consignou que “deve ser aplicada à solução do caso concreto a legislação vigente ao tempo dos fatos em análise, que vedava o uso de recursos do Fundo Partidário para o pagamento multa, juros e/ou encargos”.

Nada obstante, a agremiação poderá utilizar os recursos do Fundo Partidário para o pagamento de eventuais consectários legais havidos no curso do cumprimento de sentença.

Na mesma linha do entendimento, o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal, em julgado de caso análogo, proclamou:

[…]. Outrossim, não se aplica ao caso a Emenda Constitucional nº 133/2024. Referida emenda ampliou hipóteses de aplicação de recursos do Fundo Partidário, conforme disposto em seu artigo 6º. Contudo, a regra é aplicável a partir da promulgação da emenda, podendo o partido utilizar recursos públicos do Fundo Partidário para pagamento de sanções impostas. […].

(TRE-DF - PC-PP: 06003697220226070000 BRASÍLIA - DF 060036972, Relator.: RENATO GUSTAVO ALVES COELHO, Data de Julgamento: 23/09/2024, Data de Publicação: DJE-188, data 08/10/2024)

 

De modo semelhante, o Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo concluiu que:

A Emenda Constitucional n. 133/2024 anistia apenas a irregularidade relacionada à não aplicação de recursos em candidaturas de pessoas pretas e pardas. As demais irregularidades, como as das contas desaprovadas, não são alcançadas pela anistia. O embargante poderá buscar o refinanciamento dos débitos via Refis Eleitoral, inclusive com o uso de recursos do Fundo Partidário.

(TRE-ES; Embargos De Declaração No(a) Pc-pp 060042056/ES, Relator(a) Des. Alceu Mauricio Junior, Resolução de 09/10/2024, Publicado no(a) Diário Eletrônico da Justiça Eleitoral do ES 251, data 14/10/2024)

 

Logo, não se verifica qualquer omissão no acórdão embargado, porquanto a mera previsão de aplicação direta, imediata e integral do art. 7º da EC n. 133/24 não afasta a necessidade de respeito às situações jurídicas consolidadas e ao princípio do tempus regit actum.

Diante disso, não se constatando a existência de qualquer omissão ou outro vício de clareza e de integridade no julgado, as alegações da embargante não devem ser acolhidas.

Por fim, nos termos do art. 1.025 do Código de Processo Civil, consideram-se “incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou, para fins de pré-questionamento”.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo não acolhimento dos embargos de declaração.