HCCrim - 0600567-51.2024.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 10/03/2025 às 10:00

VOTO

Cuida-se de analisar habeas corpus contra ato do Juízo da 083ª Zona Eleitoral – Sarandi/RS, que determinou a quebra de sigilo de dados de aparelho telefônico móvel apreendido em procedimento preparatório de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ajuizada para apurar ilícitos previstos nos arts. 41-A, 73, §§ 4º e 5º, todos da Lei n. 9.504/97, sob o rito do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, equivocadamente nominado como notícia-crime (ID 124373752, autos n. 0600354-87.2024.6.21.0083, PJe 1º grau).

Inicialmente, faz-se necessário destacar que a Ação de Investigação Judicial Eleitoral deve ter como objeto a apuração de ilícitos de natureza cível, ou seja, somente podem ser indicados na petição inicial os pedidos que tenham como objeto a prática de condutas de abuso do poder.

Durante a tramitação do feito, o Juízo identificou possível crime eleitoral, em tese, remetendo a totalidade dos autos ao recente instalado Juiz Eleitoral das Garantias (ID 124420366, autos n. 0600354-87.2024.6.21.0083, PJe 1º grau).

Por entender constar a apuração de ilícito civil, o Juízo das Garantias da 033ª Zona Eleitoral – Passo Fundo/RS determinou o retorno do feito a 083ª Zona Eleitoral (ID 124420366, autos n. 0600354-87.2024.6.21.0083, PJe 1º grau).

Destaco que de tal decisão não houve oposição por parte do Juízo da 083ª Zona Eleitoral de Sarandi/RS. Portanto, não há falar em conflito negativo de competência, permanecendo, portanto, a natureza cível da ação, a despeito de erroneamente nominada como “TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE c/c REPRESENTAÇÃO CRIMINAL ELEITORAL/NOTÍCIA CRIME”, visto que adota o rito previsto no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90 e os pedidos encartados na inicial pedem o reconhecimento das condutas ilícitas de natureza cível.

Sobreveio a impetração de habeas corpus em favor do paciente Vilmar Azeredo, vulgo “Alemão Azeredo”, aduzindo, sinteticamente, ausência de justa causa para ação penal e incompetência do Juízo para conhecimento da mesma, pleiteando o trancamento da ação penal e a declaração da ilegalidade da decisão de ID 124377860, por falta de fundamentação específica, e da determinação de busca e apreensão contra Ryan Azeredo, por derivar de prova ilícita, bem como o desentranhamento das demais provas, com a suspensão imediata da quebra do sigilo bancário por meio da execução do sistema SIMBA em desfavor do paciente e de familiares (ID 45847233).

A ausência de justa causa compreenderia a falta de descrição objetiva e subjetiva dos elementos do tipo, nulidade de decisão genérica e sem lastro probatório mínimo, vedação da pescaria probatória e contaminação da prova pela teoria do fruto da árvore envenenada.

Pois bem.

O presente writ objetiva o trancamento de procedimento investigatório supostamente irregular, que culminou com a autorização de quebra de sigilo telemático e bancário, originada a partir das determinações constantes da decisão de ID 124377860, a qual transcrevo:

“Vistos, etc.

Trata-se de representação criminal/notícia de crime ajuizada pela "Coligação Somos Todos Sarandi" contra a coligação "Sarandi Pode Mais", bem como contra candidatos a cargos de vereador e prefeito, em que alega-se a prática de captação ilícita de sufrágio, consubstanciada na realização de pagamentos a eleitores em troca de apoio eleitoral, em desacordo com a legislação eleitoral vigente.

Os representantes instruíram a petição inicial com fotos, vídeos e documentos comprobatórios do alegado, requerendo, dentre outras medidas, a concessão de tutela cautelar antecedente, com a imediata ordem de busca e apreensão de valores em espécie, aparelhos celulares e lista de eleitores, bem como o acompanhamento policial para efetivação da diligência.

Relatei.

Decido.

Preliminarmente, verifico que a matéria tratada nesta representação se enquadra nas hipóteses de captação ilícita de sufrágio, previstas no art. 41-A da Lei nº 9.504/97, que dispõe sobre as normas para as eleições. Ressalta-se que a captação ilícita de sufrágio ocorre com a comprovação de que houve oferecimento, promessa ou entrega de vantagem ao eleitor com o fim de obter-lhe o voto, sendo a livre vontade do eleitor o bem jurídico tutelado por esta norma.

Diante dos documentos acostados aos autos e das alegações apresentadas, verifico a existência de indícios suficientes que justificam a adoção das medidas urgentes pleiteadas pelos representantes. A possibilidade de eventual prejuízo ao processo eleitoral e à lisura das eleições torna premente a intervenção deste Juízo para que se assegure a igualdade de oportunidades entre os candidatos.

Ante o exposto, defiro a tutela cautelar antecedente requerida, determinando a expedição de mandado de busca e apreensão a ser cumprido no imóvel localizado na Rua Viana da Silva, nº 554, Bairro Vicentinos, em Sarandi/RS, bem como no veículo Corolla Dourado, placas EBO1F34. Determino, ainda, a busca pessoal itinerante do candidato Alemão Azeredo e de seu pai, restringindo a busca e apreensão aos seguintes objetos: dinheiro em espécie, listas de eleitores e cabos eleitorais, documentos físicos ou digitais que possam comprovar a prática de captação ilícita de sufrágio.

Em sendo encontrados quaisquer desses elementos durante a diligência, fica autorizada, na sequência, a apreensão dos aparelhos celulares do candidato e de seu pai para análise. No entanto, caso tais elementos não sejam localizados, a apreensão dos celulares não deverá ser realizada. Autorizo, desde já, o acompanhamento por força policial para garantir a segurança e efetividade da diligência.

Autorizo, desde já, o acompanhamento por força policial para garantir a segurança e efetividade da diligência. Nomeio a Oficial de Justiça Plantonista Maria Eduarda Sangalli para o cumprimento do ato.

Citem-se os representados para que, no prazo de cinco dias, apresentem defesa, nos termos do art. 22, inciso I, alínea “a”, da Lei Complementar nº 64/90.

Intime-se o Ministério Público Eleitoral para acompanhar a diligência, caso assim entenda necessário, bem como, para se manifestar no pleito.

Cumpra-se.

Retifique-se a autuação.

Utilize-se o presente despacho como mandados de citação e de busca e apreensão.

Diligências Legais.

Sarandi, data da assinatura eletrônica.

ANDREIA DOS SANTOS ROSSATTO

JUÍZA ELEITORAL”

Estabelecidas as bases da natureza jurídica e do rito de tramitação da ação originária, objeto do presente habeas corpus, cabem as seguintes considerações.

Tenho que não se pode qualificar a petição inicial como representação criminal ou notícia-crime, visto que se trata de petição inicial claramente destinada a produção de prova para lastrear Ação de Investigação Judicial Eleitoral. E como a persecução é de natureza cível, deve ser observada a norma estabelecida no art. 23 da Lei Complementar n. 64/90, ou seja, de que a convicção do julgador será formada pela livre apreciação dos fatos públicos e notórios, dos indícios e presunções e das provas que ainda poderão ser produzidas, atentando para circunstâncias ou fatos, ainda que não indicados ou alegados pelas partes, mas que preservem o interesse público de lisura eleitoral.

Diante disso, deve ser rejeitada a alegação de incompetência do Juízo para processar e julgar a ação eleitoral proposta.

Por consequência, a ação de habeas corpus torna-se medida judicial inadequada para que seja impugnada a referida ação, uma vez que a produção da prova não incide em qualquer risco à liberdade de locomoção do paciente. Em igual sentido, destaco julgado que convalida o entendimento quanto à inadequação do meio utilizado para atacar a decisão do Juízo ora impetrado:

HABEAS CORPUS. ELEIÇÕES 2016. AIJE. CARGO. PREFEITO. DOIS PEDIDOS INDICADOS NA AIJE. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. CONDENAÇÃO CRIMINAL DOS PACIENTES . DEFESA ALEGA PRELIMINARES PERANTE A JUÍZA ELEITORAL. INÉPCIA DA INICIAL. ILEGITIMIDADE DA PARTE AUTORA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO . PEDIDOS REJEITADOS. ATO COATOR. PEDIDO LIMINAR. DEFERIMENTO . SOBRESTAMENTO DA AÇÃO ATÉ O JULGAMENTO DO MÉRITO DA PRESENTE AÇÃO. FUNDAMENTOS DA PRESENTE AÇÃO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ILEGITIMIDADE DA PARTE AUTORA NA AIJE . INCOMPETÊNCIA DA ZONA ELEITORAL. IMPOSSIBILIDADE DE INDICAR PEDIDO DE NATUREZA CRIMINAL EM AIJE. AÇÃO CÍVEL-ELEITORAL. PEDIDO DE NATUREZA CRIMINAL EXIGE PROCEDIMENTO ESPECÍFICO. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA. LEGITIMIDADE EXCLUSIVA DO MPE. PREJUDICADA A ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE DO AUTOR NA AIJE. LEGITIMIDADE EXCLUSIVA DO MPE OCORRE SOMENTE EM AÇÕES CRIMINAIS. PREJUDICADA A ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO. PREFEITO NÃO POSSUI FORO ESPECIAL POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO EM AÇÕES ELEITORAIS DE NATUREZA CÍVEIS. PREJUDICADA A ALEGAÇÃO DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. PEDIDO DE NATUREZA CRIMINAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO. CONVICÇÃO DO JULGADOR SERÁ FORMADA PELA LIVRE APRECIAÇÃO DOS FATOS PÚBLICOS E NOTÓRIOS, DOS INDÍCIOS E PRESUNÇÕES, E DAS PROVAS QUE AINDA PODERÃO SER PRODUZIDAS. HABEAS CORPUS. MEDIDA JUDICIAL DE NATUREZA PENAL. INADEQUADA PARA IMPUGNAR PETIÇÃO INICIAL DE NATUREZA CÍVEL. INEXISTÊNCIA DE RISCO À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO DOS PACIENTES. CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM PARA DETERMINAR O TRANCAMENTO DA AIJE Nº 609-75 NO QUE SE REFERE AO PEDIDO DE NATUREZA CRIMINAL. DETERMINADO O REGULAR PROCESSAMENTO DA AÇÃO NO QUE SE REFERE AO PEDIDO DE NATUREZA CÍVEL-ELEITORAL. (TRE-RJ - HC: 0000165-20.2017.6.19 .0000 ITATIAIA - RJ 16520, Relator.: Raphael Ferreira De Mattos, Data de Julgamento: 17/07/2017, Data de Publicação: DJERJ- 191, data 21/07/2017) (Grifei.)

Ademais, mesmo que se considerasse que a prova obtida até o momento poderá ter reflexos na liberdade de ir e vir do paciente, isso não justificaria a impetração de habeas corpus, na medida em que, efetivamente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) corrobora o entendimento de que decisões que autorizam a quebra de sigilo bancário, fiscal ou telefônico não implicam, por si só, em restrição à liberdade de locomoção, mas sim na obtenção de provas necessárias ao esclarecimento de fatos investigados em processos judiciais. Dessa forma, tais medidas não são passíveis de impugnação por meio de habeas corpus.

No julgamento do Habeas Corpus n. 6412, o STJ considerou incabível o uso de habeas corpus para afastar procedimento de quebra de sigilo bancário e fiscal, ressaltando que o instrumento adequado para questionar tais medidas seria o mandado de segurança: “evidentemente que a via adequada é o mandado de segurança, tendo em vista que o ato impugnado não se refere a direito de locomoção” [PROCESSUAL PENAL - "HABEAS CORPUS" - QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO – VIA ADEQUADA. O "HABEAS CORPUS" VISA A PROTEÇÃO QUE SE RESTRINGE A LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO, NÃO SENDO A VIA ADEQUADA PARA OBSTACULARIZAR A QUEBRA IRREGULAR DE SIGILO BANCÁRIO. ORDEM NÃO CONHECIDA. (STJ - HC: 6412 GO 1997/0072530-8, Relator.: Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI, Data de Julgamento: 10.3.1998, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 13.4.1998 p. 130)].

Assim, não vendo como se utilizar do habeas corpus para impedir ou mesmo trancar procedimento investigatório cível com base em decisão supostamente irregular, o não conhecimento da ordem é medida que se impõe.

Diante do exposto, VOTO por NÃO CONHECER da ordem de habeas corpus.