REl - 0600151-02.2024.6.21.0027 - Voto Relator(a) - Sessão: 16/12/2025 às 16:00

VOTO

1. Admissibilidade. 

O presente recurso é tempestivo e tem presentes todos os demais pressupostos recursais relativos à espécie, de modo que está a merecer conhecimento.  

2. Preliminar de ofício. 

Antecipo que não serão analisados petição e documentos juntados aos autos pelo autor/recorrente após a apresentação das contrarrazões pelo recorrido, pois há de ser observada a preclusão. 

Explico.  

O rito das AIJES é especialíssimo, regrado pelo art. 22 da Lei Complementar n. 64/90. Cuida de demanda altamente contenciosa por natureza – e gera sanções graves.  

Diante de tais elementos, a produção de provas nesta classe processual deve ser balizada de forma estrita, em respeito aos princípios do devido processo legal e do contraditório. A petição de ID 45713342 e os documentos que a acompanham vieram aos autos em absoluto destempo – repito, após a apresentação de contrarrazões.   

Para além de tecnicismo – ou formalismo em excesso –, a necessidade da observância temporal na apresentação de provas visa a proteger, inclusive, o princípio da boa-fé processual e da colaboração das partes no desfecho da demanda. Nas ações cassatórias não é permitida a flexibilidade de apresentação de provas como, por exemplo, ocorre nas ações de prestações de contas – classe processual cuja decisão é predominantemente declaratória, ao passo que, aqui, há a predominância de efeitos constitutivos negativos – vale dizer, modificadores de situação jurídica do eleito, detentor de cargo eletivo, via cassação de diplomas e/ou mandatos.  

Ademais, no caso posto, sequer poderia se cogitar de documentos novos – cuida-se de planilha de repasse de valores que remonta aos anos de 2017 a 2024. Não é caso, portanto, de abertura de prazo para manifestação da parte adversa, pois encerrada a instrução no grau originário, obviamente.  

Dessa forma, destaco que não serão considerados no presente julgamento a petição de ID 45713342 e os oito documentos (IDs em sequência) juntados por ocasião do peticionamento, pois precluso o momento de apresentação. 

3. Mérito. 

3.1. Abuso de poder e conduta vedada. 

A Ação de Investigação Judicial Eleitoral tem por finalidade apurar o uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político. O sistema legislativo busca a proteção da normalidade e da legitimidade do pleito, bem como o resguardo da vontade do eleitor, para que não sejam elas alcançadas pela nefasta prática do abuso de poder. 

A Constituição Federal, art. 14, § 9º, dispõe: 

Art. 14. (…) § 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. 

E, para a configuração do abuso de poder, deve ser considerada a gravidade da conduta, sem a necessidade da demonstração de que o resultado das urnas fora – ou poderia ter sido - influenciado. Para a procedência da AIJE, exige-se a demonstração de gravidade do fato — um desvalor relevante de conduta. O Tribunal Superior Eleitoral exige, para a caracterização do abuso de poder, que a gravidade dos fatos seja comprovada de forma robusta e segura. É o que preconiza o art. 22, inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90: 

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito: (...)

Importante salientar que a gravidade das circunstâncias do abuso de poder não se confunde com o critério de alteração do resultado, já que pode ser proposta inclusive contra candidato não eleito, e pouco importa investigar aspectos psicológicos dos infratores – dolo ou culpa, por exemplo. Frederico ALVIM explica: 

[…] estamos com Gomes, quando afirma que o que importa é a demonstração objetiva da existência de abuso que comprometa de modo indelével as eleições. Além da especial importância dos bens jurídicos tutelados, nota o autor que tal responsabilização, além da aplicação de sanção, tem o sentido de prevenção geral, objetivando a defesa da ordem jurídico-eleitoral e a intimidação social, para desestimular a realização de condutas ilícitas. Reconhece-se que, como disse José Saramago, “o melhor guarda da vinha é o medo deque o guarda venha”. Nada que Foucault já não houvesse identificado(Frederico Franco Alvim.O abuso de poder político por omissão- Revista Jurídica do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás. Nº VI (Maio2010/Maio2011) - Goiânia:TRE/GO,2011 ISSN 2177 – 4110p. 23) 

No campo dos precedentes, consigno: o Tribunal Superior Eleitoral indica ocorrência de abuso de poder político quando o agente público, "valendo-se de sua condição funcional e em manifesto desvio de finalidade, compromete a igualdade e a legitimidade da disputa eleitoral, em benefício de candidatura própria ou de terceiros" - RO n. 172365-DF, Rel. Min Admar Gonzaga, DJe de 27.02.2018, bem como “a mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não constitui mais fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento”, conforme decidido no REspEl n. 0601779-05, Rel. Min. Lu´ss Felipe Salomão, DJe de 11.3.2021.

Ademais, é certo que esta gravidade deve ser aferida sob uma ótica dúplice: o aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e o aspecto quantitativo (sua significativa repercussão para influenciar o equilíbrio da disputa). 

Por oportuna, registro a posição de Rodrigo López ZILIO: 

O relevante, in casu, é a demonstração é a demonstração de que o fato teve gravidade suficiente para violar o bem jurídico que é tutelado, qual seja, a legitimidade e a normalidade das eleições. Vale dizer, é bastante claro que a gravidade como critério de aferição do abuso de poder apresenta uma característica de correlação com o pleito, ou seja, tem-se por necessário examinar o fato imputado como abuso de poder e perscrutar a sua relação com a eleição, ainda que essa análise não seja realizada sob um aspecto puramente matemático. (Manual de Direito Eleitoral. São Paulo: JusPodivm, 10ª ed. 2024, p. 756). (grifei)

Com tal sistemática - que pode ser denominada "gradiente da gravidade" - a lupa do julgador passou a examinar as circunstâncias do ato tido como abusivo - quem, quando, como, onde, por que - com o fito de avaliar diversos fatores, dentre os quais a existência de repercussão na legitimidade e normalidade das eleições e o grau de reprovabilidade da conduta sob o ponto de vista social, em exame do meio fático e do meio normativo sob aspectos quantitativos e qualitativos (novamente ALVIM, Frederico, in Abuso de Poder nas competições eleitorais. Curitiba, Juruá Editora, 2019). 

   Nessa ordem de ideias, a análise da gravidade se trata de uma questão de ser "menos" ou "mais", e não um dilema dual, binário de "ser" ou "não ser". Especificamente no que toca ao abuso de poder político, trago trecho da obra de Luiz Carlos dos Santos GONÇALVES, que em elegante pena bem sintetiza a moderna faceta dessa modalidade de abuso:

Todo o abuso de poder de autoridade envolve um mau uso de recursos públicos, que por disposição constitucional devem ser utilizados com igualdade, eficiência, economicidade, impessoalidade e transparência. Não é sem razão que esses abusos eleitorais consistem, concomitantemente, em atos de improbidade administrativa”. (Ações Eleitorais, São Paulo: Publique Edições, 2ª ed. 2024, p. 171). 

 

Por seu turno, e o recorte conceitual é de alta relevância, a legislação de regência concernente às condutas vedadas visa a tutelar o bem jurídico da isonomia entre os concorrentes ao pleito. Já há algum tempo, o Tribunal Superior Eleitoral tem como pacífico que as hipóteses relativas às condutas vedadas são objetivas, taxativas e de legalidade restrita, sendo que “a conduta deve corresponder ao tipo definido previamente” (REspEle n. 24.795, Rel. Luiz Carlos Madeira, julgado em 26.10.2004), como “nas condutas vedadas previstas nos arts. 73 a 78 da Lei das Eleições imperam os princípios da tipicidade e da legalidade estrita, devendo a conduta corresponder exatamente ao tipo previsto na lei” (Respe n. 626-30/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 04.02.2016, bem como o AgR-REspe n. 1196-53, Rel. Min. Luciana Lóssio, DJe de 12.9.2016, e o AgR-REspe n. 0600456-50/SE, Rel. Min. Carlos Horbach, DJe de 06.6.2022. 

Na seara do entendimento doutrinário, o abuso de poder político é gênero e as condutas vedadas são espécies. Trago, como lição inicial, a noção de Frederico Franco Alvim: 

Há que se diferenciar, ainda, o abuso de poder político das condutas vedadas aos agentes públicos, como fazem com acuidade Luciano Sato e Sérgio de Souza, a partir da análise dos diferentes bens jurídicos protegidos. Percebem os autores que as condutas constantes dos arts. 73 e ss. da lei 9.504/97 são vedadas aos agentes públicos com o objetivo de tutelar a igualdade de oportunidade entre os candidatos, ao passo que o combate a abuso do poder político, constante do art. 14, §9º, da Constituição Federal, pretende tutelar a normalidade e a legitimidade das eleições (Frederico Franco Alvim. O abuso de poder político por omissão- Revista Jurídica do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás. Nº VI (Maio2010/Maio2011) - Goiânia: TRE/GO,2011 ISSN 2177 – 4110, p. 21) 

José Jairo GOMES vaticina, com precisão, que "a conduta vedada traduz a ocorrência de ato ilícito eleitoral. Uma vez caracterizada, com a concretização de seus elementos, impõe-se a responsabilização tanto dos agentes quanto dos beneficiários do evento", pois "tendem a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais", eis que no aspecto subjetivo "a conduta inquinada deve ser realizada por agente público" (Direito Eleitoral, 12ª Ed. Atlas, São Paulo, p.741).  

Aqui, por relevante, repito: há uma tipicidade estrita, fechada, diferentemente dos casos de abuso de poder, em que o gradiente permite a análise das circunstâncias, do, assim digamos, "conjunto da obra", de forma que a constatação da prática de conduta vedada exige apenas a consunção do fato na legislação que o tipifica, sem a necessidade de análise de outros elementos, sejam subjetivos ou de efeito no resultado da competição eleitoral. 

Dito de outro modo, a escolha do legislador foi a de entender determinadas práticas como tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos. Por se tratarem de tipos eleitorais fechados, os casos de condutas vedadas não admitem, obviamente, interpretação ampliativa. 

Com tais premissas fáticas, legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, passo ao exame do caso propriamente dito, e indico que os recortes conceituais acima explicitados serão fundamentais para a resolução da demanda. De fato, as condutas vedadas podem ser consideradas espécies de abuso de poder. Mas, como visto, possuem requisitos próprios para a configuração, forma de subsunção diversa e visam a proteger bens jurídicos distintos das práticas abusivas. 

3.2. A controvérsia em grau recursal. 

Trago, das razões recursais, a narrativa dos fatos: 

(...) 

Para tanto, por meio de sua página na rede social Instragram , o candidato à Vereador LUCAS DIAS tem publicou vídeo onde diz ao público que conseguiu verba junto à Deputados Federais para destinação ao Hospital Bernardina Salles de Barros. Ocorre que o vídeo supracitado foi gravado no espaço interno do Hospital, trazendo captação de imagens do candidato junto a um equipamento de tomógrafo utilizado pelos pacientes do nosocômio, que inclusive é mantido com verbas do Poder Público castilhense. (sic) 

Ou seja, o recorrente JOÃO VESTENA busca que a Justiça Eleitoral entenda configurada a prática de abuso de poder político e de autoridade ou, forma alternativa, a prática da conduta vedada prevista no art. 73, inc. I, da Lei n. 9.504/97, que proíbe o agente público de "ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios".  

O juízo de primeiro grau, ao proferir a sentença que extinguiu a AIJE, fundamentou com vistas na fragilidade do material probatório carreado e na ausência de justa causa para o prosseguimento da ação. 

Com a atribuição de efeito devolutivo ao recurso – e, sobretudo, com o estabelecimento do actum trium personarum com a apresentação de contrarrazões ao recurso (pois na origem a demanda fora julgada antecipadamente), penso que este Plenário pode ir além da constatação de fragilidade do material probatório, e decidir no sentido de inocorrência de ilícitos.  

Explico. 

O vídeo anexado como prova estampa fato incontroverso: LUCAS DIAS DE OLIVEIRA, então vereador e candidato à reeleição, adentrou ao Hospital Bernardina Salles de Barros (ID 45681408) e registrou imagens de equipamentos hospitalares que, segundo o próprio recorrido narrou, provinham de emendas parlamentares. 

O referido vídeo, igualmente fato incontroverso, fora retirado do ar por LUCAS, logo após a publicação - como afirmado pelo próprio recorrente JOÃO. O fato ocorreu em data distante da eleição - a petição inicial, que serve como baliza temporal objetiva, fora protocolada aos 26.8.2024 - ou seja, a quase 40 (quarenta) dias da eleição. 

Convido os colegas a visualizarem o vídeo. Trata-se de uma manifestação simples, de cerca de um minuto e meio, no qual LUCAS agradece a dois deputados federais que destinaram, juntos, R$ 300.000,00 para a implementação da “Sala do Tomógrafo”. LUCAS inicialmente visita sozinho as instalações e, ao final, parece acompanhar um exame desde a cabine de controle do aparelho hospitalar. 

Não há gravidade apta a caracterizar abuso de poder, o qual, como visto, exige modo inafastável, que o ato malfira a normalidade e a legitimidade do pleito. Ora, o ocorrido nitidamente não teve tal condão, seja pela simplicidade das circunstâncias, seja pela curta duração na qual esteve publicado, seja pela distância temporal em relação ao dia da eleição.

Obviamente, LUCAS intencionara obter dividendos eleitorais, ao vincular seu nome à “conquista” da comunidade de Júlio de Castilhos – um tomógrafo. Contudo, sequer prosseguiu no intento - não há, nessa linha, qualquer prova de repercussão relevante do vídeo perante o eleitorado – que, arrisca este julgador, talvez tenha sido mais conhecido pela comunidade de Júlio de Castilhos em decorrência do ajuizamento da demanda, do que pela publicação em si. Para que se dimensione objetivamente a repercussão, há ainda hoje no perfil de Instagram “lucasdias97” uma publicação similar, relativa ao tomógrafo, com data de 04.9.2024 - mais próxima, portanto, da eleição.  

A postagem recebeu 09 (nove) “curtidas”.  

Sem gravidade, portanto.  

E, no que diz respeito à alegada incidência do art. 73, inc. I, da Lei das Eleições, adianto que não assiste melhor sorte ao recorrente. Isso porque o Hospital Bernardina Salles de Barros comprovadamente não pertence ao poder público - à administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal.  

Ao contrário.

Os documentos trazidos em sede de contrarrazões comprovam que se trata de uma entidade privada que, eventualmente, recebe recursos do poder público. A simples recepção de verbas municipais ou a prestação de serviços via SUS não é suficiente, por si só, para qualificar o bem como pertencente à administração direta ou indireta para os fins do art. 73, inc. I, da Lei n. 9.504/97, pois, conforme igualmente constatado acima, as fattispecies de condutas vedadas devem obedecer a interpretação estrita. Cuida-se de local privado, e não um bem público; nele não se encontram servidores públicos. O que ocorreu, nitidamente, é que LUCAS se valera de algum “prestígio” para adentrar ao hospital privado e poder realizar a filmagem, mas isso não pode ser considerado prática de conduta vedada, à míngua de previsão legal nesse sentido.  

Nessa mesma linha de ideias é o posicionamento externado pela d. Procuradoria Regional Eleitoral, que se manifesta pelo desprovimento do pedido. Os fatos - incontroversos - não possuem gravidade suficiente para caracterização de abuso ou desvio de poder político, e nem sofrem subsunção de qualquer norma de conduta vedada. 

Os fatos constituem um indiferente eleitoral para fins de ações cassatórias - por exemplo, os argumentos de infração à LGPD, trazidos pelo recorrente, devem ser objeto de debate na esfera cível comum, pelos eventuais interessados.

 

Diante do exposto, VOTO para, de ofício, acolher preliminar de juntada extemporânea de documentos e, no mérito, negar provimento ao recurso de JOÃO VESTENA.