REl - 0600638-08.2024.6.21.0015 - Voto Relator(a) - Sessão: 16/12/2025 às 16:00

VOTO

1. Tempestividade.

O recurso é tempestivo, obedece ao prazo de três dias concedido pela legislação, art. 258 do Código Eleitoral, e atende aos demais pressupostos processuais, de forma que merece conhecimento.

2. Preliminar do recorrido. 

VILSON ALTMANN suscita, em preliminar, que houve a juntada extemporânea de documentos de parte de IVO GIRARDELLO - vale dizer, após o encerramento da instrução. 

Com razão. Antecipo que não serão analisados petição e documentos juntados aos autos pelo autor/recorrente juntamente às razões recursais, pois há de ser observada a preclusão. 

Explico.  

O rito das AIJES é especialíssimo, regrado pelo art. 22 da Lei Complementar n. 64/90. Cuida de demanda altamente contenciosa por natureza – e gera sanções graves.  

Diante de tais elementos, a produção de provas nesta classe processual deve ser balizada de forma estrita, em respeito aos princípios do devido processo legal e do contraditório. Os documentos que acompanham o recurso vieram aos autos em absoluto destempo.   

Para além de tecnicismo – ou formalismo em excesso –, a necessidade da observância temporal na apresentação de provas visa a proteger, inclusive, o princípio da boa-fé processual e da colaboração das partes no desfecho da demanda. Nas ações cassatórias não é permitida a flexibilidade de apresentação de provas como, por exemplo, ocorre nas ações de prestações de contas – classe processual, cuja decisão é predominantemente declaratória, ao passo que, aqui, há a predominância de efeitos constitutivos negativos – vale dizer, modificadores de situação jurídica do eleito, detentor de cargo eletivo, via cassação de diplomas e/ou mandatos.  

Ademais, no caso posto, sequer poderia se cogitar de documentos novos. Não é caso, portanto, de abertura de prazo para manifestação da parte adversa, pois encerrada a instrução no grau originário, obviamente.  

Dessa forma, destaco que não serão considerados no presente julgamento os documentos juntados pelo recorrente de forma conjunta ao recurso.

Acolho a preliminar.

3. Mérito.

3.1. Abuso de Poder. Legislação. Doutrina. Precedentes.

O sistema legislativo busca a proteção da normalidade e legitimidade do pleito, bem como o resguardo da vontade do eleitor, para que não seja alcançada pela prática nefasta do abuso.

Para tanto, a Constituição Federal, art. 14, § 9º, dispõe:

Art. 14. (…) § 9.º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

E, para a configuração do abuso de poder, saliento que deve ser considerada, precipuamente, a gravidade da conduta, sem a necessidade da demonstração de que o resultado das urnas foi – ou poderia ser - influenciado.

É o que preconiza o art. 22, inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(...) (Grifei.)

Ademais, é certo que esta gravidade deve ser aferida sob uma ótica dúplice: o aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e o aspecto quantitativo (sua significativa repercussão para influenciar o equilíbrio da disputa). 

Nesse sentido é também a posição da doutrina, aqui representada pela lição de Rodrigo Lopez ZILIO:

O relevante, in casu, é a demonstração é a demonstração de que o fato teve gravidade suficiente para violar o bem jurídico que é tutelado, qual seja, a legitimidade e a normalidade das eleições. Vale dizer, é bastante claro que a gravidade como critério de aferição do abuso de poder apresenta uma característica de correlação com o pleito, ou seja, tem-se por necessário examinar o fato imputado como abuso de poder e perscrutar a sua relação com a eleição, ainda que essa análise não seja realizada sob um aspecto puramente matemático. (Manual de Direito Eleitoral. São Paulo: JusPodivm, 10ª ed. 2024, p. 756). (Grifei.)

Com tal sistemática - que pode ser denominada "gradiente da gravidade" -, a lupa do julgador passou a examinar as circunstâncias do ato tido como abusivo - quem, quando, como, onde, por exemplo - com o fito de avaliar diversos fatores, dentre os quais a existência de repercussão na legitimidade e normalidade das eleições e o grau de reprovabilidade da conduta sob o ponto de vista social, em exame do meio fático e do meio normativo sob aspectos quantitativos e qualitativos (em lição de ALVIM, Frederico, in Abuso de Poder nas competições eleitorais. Curitiba, Juruá Editora, 2019).

Nessa ordem de ideias, a análise da gravidade consubstancia uma questão de ser "menos" ou "mais", e não um dilema dual - de "ser" ou "não ser". O e. Tribunal Superior Eleitoral tem demonstrado inclusive, via precedentes, a necessidade de entrosamento entre (1) a constatação de abusos de poder e uso indevido dos meios de comunicação social com (2) princípios constitucionais como a liberdade de expressão, por exemplo:

“[...] Ação de investigação judicial eleitoral. [...] Eleições 2022 [...] Presidente. Abuso de poder político. Uso indevido de meios de comunicação. Ato de campanha. Participação de artistas, intelectuais e lideranças políticas. Transmissão pela internet . Retransmissão livre. Liberdade de manifestação e engajamento político. Licitude. Jingles executados ao vivo. [...] 12. Esta Corte tem entendimento no sentido de que ‘a utilização de forma reiterada de showmício e eventos assemelhados como meio de divulgação de candidaturas, com intuito de captação de votos, é grave e caracteriza abuso do poder econômico’ [...] 13. Também, já foi assinalado que a proibição se estende aos livemícios , em que a promoção a candidaturas se utiliza de shows realizados em plataformas digitais [...] 14. As restrições, contudo, não alcançam a liberdade de engajamento político da classe artística, já havendo o STF fixado que tais pessoas podem manifestar ‘seu posicionamento político em seus shows ou em suas apresentações’ (ADI 5970, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 08/03/2022) [...]”. Acórdão de 29.9.2022 no Ref-AIJE n. 060127120, rel. Min. Benedito Gonçalves.

Estabelecidas tais premissas legais, jurisprudenciais e doutrinárias, passo à análise das alegações recursais.

3.2. Fatos. Sopesamento de gravidade.

A inicial (ID 45871013), posteriormente emendada (ID 45871030), descreveu fatos que podem ser compreendidos por meio dos seguintes trechos:

Durante o debate eleitoral transmitido no canal do YouTube "Grupo Ceres" no dia 24 de setembro de 2024, link: (https://www.youtube.com/watch?v=ZpiZyJlPkPw), o investigado proferiu graves acusações contra o Investigante, afirmando que este teria uma dívida ativa com a municipalidade no valor de R$ 400.000,00 (quatrocentos mil reais), sem apresentar qualquer prova ou fundamento que sustentasse tal alegação. (...) As afirmações são manifestamente inverídicas, já que a dívida mencionada, conforme provado pela decisão judicial proferida no processo de Cumprimento de Sentença n.º 5000092-65.2004.8.21.0009, da Comarca de Carazinho, foi extinta por prescrição em 30 de julho de 2021, nos termos do artigo 174 do Código Tributário Nacional e do artigo 924, inciso V, do Código de Processo Civil, como demonstram os documentos anexos. (...) Como se não bastasse, o Investigante constatou que, após o debate, o documento que supostamente comprovava a dívida foi removido do portal do contribuinte da Prefeitura de Santo Antônio do Planalto. Link (http://177.22.83.194:8080/PortalContribuinteJavaEnvironment/com.tc he.portalcontribuinte.whome), caminho: informações do contribuinte, inscrição 796, CPF 126427460-20. (...) Conforme se verifica, na data de 25/09/2024, o único documento que constava era a certidão anexa, em que se depreende que o autor não possui débitos com a fazenda municipal, não constando mais o boleto referente à dívida. (...)

Em síntese, conforme alegado pelo recorrente, o recorrido teria utilizado de forma ilegal a "máquina pública" ao excluir, do portal de contribuintes da Prefeitura de Santo Antônio do Planalto, um boleto que permanecia disponível até o dia do debate eleitoral,  e fora retirado logo após a veiculação pública do debate que VILSON acusara IVO de possuir dívida para com o município. Na sentença, o juízo da origem se alinhara ao posicionamento do Ministério Público Eleitoral com atuação junto ao 1º grau,  e julgou improcedente a ação nos termos da fundamentação abaixo transcrita:

(...) No caso em análise, o plano fático está bem delimitado pelos Ofícios de ID 124522546 e 125782916. O Ofício do ID 124522546 revela que “o boleto bancário indicado na missiva encaminhada pela Justiça Eleitoral estava disponível no portal do contribuinte até a data de 24/09/2024, no entanto, no dia 25/09/2024, o mesmo foi excluído, sem ter sido exarado ato administrativo pertinente expedido pelo Prefeito Municipal, fato ocorrido por equívoco interno”. Atesta também que, depois de orientações jurídicas, o boleto bancário foi novamente incluído no Portal do Contribuinte, aguardando os procedimentos administrativos formais para baixa da dívida ativa. Por sua vez, o Ofício do ID 125782916, em complementação das informações, atesta que a exclusão do boleto foi consequência de ato praticado por Fiscal Municipal que procedeu ao cancelamento da inscrição da respectiva dívida ativa (em face de declaração judicial de prescrição). Em cotejo das questões de direito e de fato apresentadas, constata-se que a solução da questão pode ser realizada pela valoração de uma informação não questionada processualmente e contida no Ofício do ID 124522546: “informamos ainda que toda a dívida tributária somente pode ser acessada pelo próprio contribuinte, no portal específico, não estando disponibilizada para terceiros”.

Como o boleto era de acesso, exclusivamente, do investigante, não há como ter havido comprometimento da regularidade das eleições (isonomia), por influência ao eleitor, pelo simples fato de sua exclusão de portal de acesso restrito, ainda mais quando o próprio investigante já tinha conseguido o prévio acesso ao boleto, tanto que o acostou à inicial. Trata-se de uma circunstância (a exclusão do boleto) sem nenhuma repercussão eleitoral, haja vista que se trata de dado sensível cujo acesso só poderia ser realizado pelo titular. Além disso, a informação contida no Ofício do ID 125782916 é capaz até de indiciar a regularidade administrativa do ato (não sugerindo, sequer, ato de improbidade, como ventilado pelo Ministério Público Eleitoral): a indisponibilidade do boleto foi decorrência automática da exclusão da dívida ativa pela declaração judicial da prescrição. Se a inscrição da dívida ativa havia de ser cancelada por prescrição declarada judicialmente, era consequência natural a exclusão do boleto. Por todo o exposto, constata-se que é caso de improcedência da presente ação de investigação judicial eleitoral, em termos distintos, mas semelhantes ao opinado pelo Ministério Público Eleitoral no parecer do ID 26407272, cujas razões integro a esta sentença como razão de decidir: "A ação não deve proceder. Na verdade, os fatos alegados na petição eleitoral são capazes de gerar a procedência de representação por propaganda eleitoral, mas não uma AIJE baseada em abuso do poder político. O requerido praticou propaganda irregular quando faltou com a verdade do debate político e, depois, ao retirar documento do portal da transparência, pode ter incorrido em improbidade administrativa, mas não abuso do poder político. O abuso de poder político é uma infração que se caracteriza pela utilização indevida da estrutura pública ou da máquina administrativa em benefício de uma candidatura, comprometendo a lisura do processo eleitoral e violando o princípio da isonomia entre os candidatos. No caso, alega o autor, em síntese, que o demandado utilizou indevidamente a máquina pública ao excluir do portal de contribuintes da Prefeitura de Santo Antônio do Planalto/RS um boleto que, até o dia do debate eleitoral, permanecia disponível, mas foi retirado logo após a veiculação pública do debate com o fim de propagar informação falsa. O referido fato, embora não tenha sido comprovado, se verdade fosse, por si só, não pode ser considerado abuso do poder político, eis que este acontece quando existe conduta de tamanha envergadura capaz de desequilibrar o pleito. A remoção do documento do sistema público não configura o abuso de poder político capaz de induzir um número indefinido de eleitores em erro. Diferentemente seria se fossem beneficiados eleitores com a isenção da dívida ou alterado o boleto indicando valores diversos, o que não ocorreu. Desse modo, não verificada a caracterização do abuso de poder econômico, até porque não se sabe quem são e quantos foram os eleitores consultaram no portal a fim de conferir informações proferidas no debate.” Com esses fundamentos, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO INICIAL, na forma do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil.

O recurso não merece provimento, antecipo. A presente AIJE foi manejada em razão de suposto abuso de poder político. A caracterização dessa infração depende da gravidade de suas circunstâncias, conforme disposto no inc. XVI do art. 22 da LC n. 64/90.

Situações irrelevantes ou de menor impacto não devem influenciar substancialmente o resultado da eleição. A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral reforça essa exigência:

(...) 4. Nos termos da jurisprudência desta Corte, o abuso de poder político configura–se quando a legitimidade das eleições é comprometida por condutas de agentes públicos que, valendo–se de sua condição funcional, beneficiam candidaturas mediante desvio de finalidade. Requer–se, ainda, nos termos do art. 22, XVI, da LC 64/90, a "gravidade das circunstâncias que o caracterizam", a ser aferida a partir de aspectos qualitativos e quantitativos do caso concreto. Precedentes. TSE. AgR no Agravo em REspe Eleitoral 060072049/RJ, Rel(a). Min. Isabel Gallotti, Acórdão de 17/10/2024, Publicado no DJE 191, data 24/10/2024.

No caso em tela, as circunstâncias fáticas, avaliadas sob o prisma da gravidade, revelam-se insuficientes para caracterizar o abuso de poder político, conforme os tópicos que passo a discorrer: 

3.2.1) a conduta imputada como abuso de poder político é a exclusão do boleto do portal do contribuinte municipal no dia seguinte ao debate. No entanto, conforme atestado nos autos, a dívida tributária somente poderia ser acessada pelo próprio contribuinte, pois se tratava de "dado sensível", permeado de informações de cunho pessoal. Dessa forma, a repercussão do ato é diminuta - vale dizer, localizada na seara típica das bravatas de candidatos, em debates eleitorais. Os fatos narrados — a falta com a verdade no debate e a posterior remoção de documento — são capazes de gerar representação por propaganda eleitoral irregular, mas não caracterizam o abuso de poder político;  

3.2.2) debate eleitoral e contraditório: o recorrente alega que o vídeo do debate alcançara 2.900 visualizações, número superior ao eleitorado local, o que é verdade. Contudo, o teor do vídeo  - que pode ter alcançado a dimensão quantitativa, carece de dimensão qualitativa do abuso de poder, vale dizer, que a informação veiculada tivesse o condão de afetar os bens jurídicos tutelados pela norma, qual seja, a normalidade e a legitimidade das eleições, pois a conduta dos recorridos se resumiu a alegar uma dívida que já era sabidamente extinta por prescrição. Note-se que a referência (inverídica) ocorrera em debate eleitoral, onde o fato poderia ser, e efetivamente o foi, desmentido. A inexistência de débito poderia ser facilmente comprovada pela certidão negativa, que estava sempre disponível; 

3.2.3) a remoção do documento do sistema público, mesmo que deliberada para encobrir a verdade (conforme alegação de IVO), não pode configurar abuso de poder político de tamanha envergadura capaz de desequilibrar o pleito - ou gerar cassação de mandato. Aqui, o ato carece de ambas as dimensões - qualitativa e quantitativa. Ora, o abuso de poder político não se configura por mera retirada de documento do sistema, mas sim por ações que beneficiam eleitores ou alteram o processo de maneira substancial. 

Portanto, a conduta, desacompanhada de gravidade suficiente para comprometer a legitimidade e a normalidade das eleições, não atende ao requisito legal do art. 22, inc. XVI, da LC n. 64/90. A manutenção da sentença de improcedência é medida que se impõe.

4. Conclusão.

Diante do exposto, VOTO para acolher a preliminar de juntada extemporânea de documentos e, no mérito, negar provimento ao recurso de IVO GIRARDELLO.