REl - 0600402-79.2024.6.21.0072 - Voto Relator(a) - Sessão: 04/12/2025 às 16:00

VOTO

ADMISSIBILIDADE

O recurso é tempestivo e preenche os demais pressupostos de admissibilidade, razão pela qual dele conheço.

 

PRELIMINAR

Os recorridos suscitam, em contrarrazões, a preliminar de ilicitude das provas digitais (vídeos e imagens de redes sociais) apresentadas pela parte autora, sob o argumento de quebra da cadeia de custódia, por não terem sido coletadas com o uso de softwares forenses como o Cellebrite e por não apresentarem códigos hash de validação.

A preliminar não merece acolhida.

A recorrente demonstrou, de forma pormenorizada, que a coleta do material probatório foi realizada por meio da plataforma Verifact, a qual, segundo informado, adota procedimentos em conformidade com a norma ABNT NBR ISO/IEC n. 27037:2013 e utiliza certificação digital no padrão ICP-Brasil. Os relatórios de captura técnica incluem códigos hash (SHA512 e SHA3-512) para garantir a integridade e imutabilidade dos dados, preservando a cadeia de custódia em conformidade com o art. 158-A do Código de Processo Penal:

Art. 158-A. Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.      (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

A legislação brasileira não exige o uso exclusivo de uma ferramenta específica, como o Cellebrite, para a coleta de prova digital, mas sim que os métodos utilizados sejam confiáveis e preservem a cadeia de custódia, o que foi observado no caso concreto. Ademais, o Supremo Tribunal Federal reconhece a validade de provas digitais coletadas por meios tecnicamente confiáveis e certificados, como o utilizado nos presentes autos pela parte recorrente, ao reconhecer que “as matérias publicadas não apresentam clara identificação das fontes dos ‘prints’ utilizados, nem evidências de conferência de autenticidade por mecanismos de verificação confiáveis, como sistemas de certificação, a exemplo do verifact, entre outros” (STF - Rcl: n. 74690 RO, Relator.: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 18.12.2024, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 07.01.2025 PUBLIC 08.01.2025) (Grifei.)

Dessa forma, os documentos apresentados são tecnicamente íntegros e juridicamente válidos, não havendo que se falar em ilicitude ou inadmissibilidade da prova.

Rejeito, pois, a preliminar.

Passo a examinar o mérito.

 

MÉRITO

Inicialmente, tenho que a controvérsia central do recurso ora em análise reside na natureza do evento ocorrido em 14 de setembro de 2024, no Centro de Eventos do Parque Saint Hilaire, em Viamão.

Destaco ser público e notório que no início de 2023 foi sancionado pelo Poder Executivo de Porto Alegre o Projeto de Lei n. 004/22, que cedeu o uso e a administração de parte do Parque Municipal Saint Hilaire e áreas de lazer à Prefeitura de Viamão. A justificativa reside no fato de que 82% do território está localizado na cidade da Região Metropolitana, e o acesso ao parque é feito pelo município vizinho.

Por ocasião da solenidade oficial vinculada ao ato, o então prefeito de Viamão manifestou: "Este é um grande momento para Viamão. Nossa gestão tem trabalhado para oferecer à população mais qualidade de vida e opções de lazer. Com a sanção, poderemos tirar o projeto do papel e transformar o Saint Hilaire no espaço que os viamonenses merecem". Tal fala encontra-se registrada em matéria veiculada no site da Prefeitura de Porto Alegre, no endereço <https://prefeitura.poa.br/gp/noticias/prefeito-sanciona-lei-que-cede-o-uso-do-parque-saint-hilaire-prefeitura-de-viamao>.

Enquanto os recorridos descrevem o evento como mera reabertura para visitação em meio a obras e à celebração do aniversário da cidade, a parte recorrente o caracteriza como uma inauguração de obra pública com fins eleitorais.

Assiste razão à recorrente.

A prova carreada aos autos demonstra que, embora o Parque Saint Hilaire ainda estivesse em obras, o evento alusivo ao aniversário da cidade marcou, também, a entrega e a abertura ao público do "Centro de Eventos", uma obra nova e de grande porte, custeada com recursos públicos.

A divulgação do evento foi amplamente veiculada por figuras políticas apoiadoras dos então candidatos RAFAEL BORTOLETTI DALLA NORA e MARCIEL FAURI BERGMANN, como o Deputado Estadual Professor Bonatto, que convidava a população a "conhecer a situação do parque, as obras que estão prontas", o que denota o caráter inaugural do ato, ainda que não formalizado com descerramento de placa.

No vídeo de ID 45900992, capturado do perfil de Professor Bonatto na rede Instagram (o qual foi publicado em colaboração com o perfil pessoal de NILTON JOSE SICA MAGALHAES), é mostrado um plano aéreo das obras do Parque Saint Hilaire, com destaque para o prédio do centro de eventos. Na narração e no comentário fixado na publicação é possível inferir tratar-se do evento alusivo ao aniversário da cidade, com destaque para a “abertura do Centro de Eventos do Parque Saint Hilaire”:

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Ainda, em matéria veiculada no site da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (https://ww4.al.rs.gov.br/noticia/337232), destacada da exordial, a fala do Deputado também demonstra que o evento seria a ocasião de “entrega” (mesmo que parcial) de obras do Parque:

“O Parque Saint Hilaire, na divisa de Viamão com Porto Alegre, com 1.148 hectares de área total, está desde 2023 passando por reformas e melhorias. Na tarde de quinta-feira (22), o líder da bancada do PSDB na Assembleia Legislativa, deputado Professor Bonatto, esteve visitando o parque e o andamento das obras.

Nas duas gestões como prefeito de Viamão, Bonatto (PSDB) atuou no processo de cedência do Parque para a administração da prefeitura de Viamão, bem como a concepção do projeto de reforma.

“No dia do aniversário da cidade, em 14 de setembro, vamos entregar um Parque revitalizado, com estruturas modernas para que a população de Viamão e da região metropolitana possam aproveitar o lazer e o turismo na região”, ressalta Bonatto.

A cedência do Parque permitiu investimentos do executivo municipal e do governo do Estado, que somam mais de R$ 10 milhões. Além da área verde revitalizada, o local já conta com um novo ginásio coberto e um centro de eventos na fase final de conclusão. Quadras poliesportivas, praças e espaço ao esporte náutico completam o novo complexo da cidade.

“É gratificante ver obras já prontas, que em breve poderão ser utilizadas pelos viamonenses e a todos aqueles da nossa região que buscam um lugar agradável, junto a natureza, para aproveitar os bons momentos da vida”, lembra o deputado.

O Parque, que faz parte da história de Viamão, também faz parte do programa Avançar no Turismo, ação do governo do Estado que destina recursos para parques urbanos, visando a promoção do turismo regional. Desde 2022, mais de R$ 130 milhões foram investidos em todas as regiões do estado.” (Grifei.)

 

Também, a publicação no perfil pessoal mantido pelo então Prefeito NILTON JOSE SICA MAGALHAES na rede social Instagram (https://www.instagram.com/reel/C_6nhJFJZvm/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA%3D%3D) demonstra que o evento marcaria a inauguração, para a população, do referido centro de eventos. Consta da publicação o texto, do qual destaco o excerto:

[...]

Tenho um convite muito especial para os nossos viamonenses. Neste sábado, 14 de setembro, aniversário de Viamão, estaremos abrindo os portões do Parque Municipal Saint Hilaire para que todos possam conhecer o nosso Centro de Eventos, além de conferir de perto o Ginásio, quadras e outras obras que estão sendo realizadas. E pra marcar a data, teremos um show especial de João Luiz Corrêa e Grupo Campeirismo. Os portões estarão abertos a partir das 14 horas e o show inicia às 15hs.

[...]

Destaco que não há referência à divulgação do evento atribuído pelos recorridos (celebração do aniversário da cidade de Viamão) nos canais oficiais da Prefeitura Municipal de Viamão, como houve em edições anteriores. Tal situação, que, se ocorresse, poderia, em tese, violar o disposto no art. 73, inc. VI, al. “b”, da Lei n. 9.504/97, causa estranheza e reforça os argumentos trazidos pela parte recorrente.

Conforme é de amplo conhecimento, questões envolvendo a realização de eventos já tradicionais dos calendários municipais e que fazem parte do patrimônio cultural local, não são associados a um determinado governo específico, como podemos extrair de diversas autorizações desta Justiça Especializada quando deparada com situações semelhantes (a título de exemplo, Processo n. 00000276220186210000, decisão de 24.7.2018, Rel. Desembargador Jorge Luís Dall’Agnol).

Ainda, o artista designado para realizar o show na festividade também destaca em sua agenda, mantida na mesma rede social (https://www.instagram.com/reel/C_qErIhJoM_/?igsh=eHd4N29xa3c2cGt1), tratar-se de verdadeira inauguração do espaço:

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Por derradeiro, nos termos trazidos no parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, a testemunha trazida pelos recorridos, Vinícius dos Santos, então chefe de gabinete do prefeito e atual secretário municipal da cultura, admitiu que “foi a primeira vez que [o centro de eventos] foi aberto ao público, e a partir dali em diante, já foi aberto todos os finais de semana” (ID 45901093), corroborando a tese de que se tratou de inauguração de um novo espaço no referido parque.

Nesse passo, não prospera a tese dos recorridos de que não houve a inauguração de obra pública. Da doutrina, da qual destaco a obra de Rodrigo López Zilio (ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral, 10ª Ed. pp. 875-876), se extrai que, para a proteção do bem jurídico alvo do art. 77 da Lei n. 9.504/97, o conceito de “obra pública” deve ser o mais amplo possível. Vejamos:

“Para uma eficaz proteção do bem jurídico protegido, a concepção de obra pública deve ser a mais ampla possível. O próprio legislador, no art. 6º, XII, da Lei nº 14.133/2021, traz um conceito largo, ao definir obra como “toda atividade estabelecida, por força de lei, como privativa das profissões de arquiteto e engenheiro que implica intervenção no meio ambiente por meio de um conjunto harmônico de ações que, agregadas, formam um todo que inova o espaço físico da natureza ou acarreta alteração substancial das características originais de bem imóvel”. Essa inovação no espaço físico ou alteração substancial das características originais de bem imóvel pode ocorrer mediante uma construção, recuperação ou mesmo reforma, situações em que o comparecimento de candidato no evento, durante o período crítico, pode configurar a conduta vedada em apreço.”

Como corretamente salientado pela doutrina eleitoral, a fim de que a vedação não se torne ineficaz e possa minimamente alcançar a finalidade visada pela norma em tela, a concepção de obra pública a ser aqui adotada deve ser ampla, não se podendo confundir com a de bem de uso comum.

Lembro, ainda, que o conceito de obra pública já foi tema de julgado deste Regional, em voto de relatoria do Desembargador Eleitoral Ingo Wolfgang Sarlet, ficando assentado que caracteriza conduta vedada a presença de candidato em inauguração de obra custeada com recursos públicos do Município (TRE/RS - Recurso Eleitoral n. 56760, Acórdão de 27.5.2014, Relator DR. INGO WOLFGANG SARLET, Publicação: DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo n. 94, Data 29.5.2014, Páginas 2-3).

Não se tratou, portanto, de uma simples celebração, mas da entrega de uma obra pública significativa à comunidade feita em pleno período crítico eleitoral, três semanas antes do pleito, configurando o fato gerador de eventual vedação legal contida no art. 77 da Lei n. 9.504/97. Diz o referido artigo:

Art. 77.  É proibido a qualquer candidato comparecer, nos 3 (três) meses que precedem o pleito, a inaugurações de obras públicas. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)

Parágrafo único.  A inobservância do disposto neste artigo sujeita o infrator à cassação do registro ou do diploma. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)

Importante destacar que a redação original do referido art. 77 da Lei das Eleições dispunha a proibição aos candidatos a cargos do Poder Executivo de participar, nos três meses que precedem o pleito, de inaugurações de obras públicas, sendo que a inobservância do disposto no artigo sujeitava o infrator à cassação do registro. Atualmente, por força da redação atualizada pela Lei n. 12.034/09, o citado art. 77 estabelece que é vedado a qualquer candidato comparecer, nos três meses que precedem o pleito, a inauguração de obras públicas, sob pena de cassação do registro ou do diploma. Portanto, além da ampliação do rol de candidatos atingidos pela vedação, há também a alteração do verbo nuclear da conduta: participar (tomar parte de) para comparecer (aparecer ou apresentar-se em local determinado).

O art. 77 da Lei n. 9.504/97 é taxativo: "É proibido a qualquer candidato comparecer, nos 3 (três) meses que precedem o pleito, a inaugurações de obras públicas". Tal dispositivo encontra-se regulamentado na Resolução TSE n. 23.735/24, que assim dispõe:

Art. 22. É proibido a candidata ou candidato comparecer, nos 3 (três) meses que precedem a eleição, a inaugurações de obras públicas (Lei nº 9.504/1997, art. 77, caput).

§ 1º A inobservância do disposto neste artigo sujeitará a infratora ou o infrator à cassação do registro ou do diploma (Lei nº 9.504/1997, art. 77, parágrafo único).

§ 2º A realização de evento assemelhado ou que simule inauguração de obra pública será apurada na forma do art. 6º desta Resolução.

No caso dos autos, a presença dos candidatos RAFAEL BORTOLETTI e MARCIEL FAURI BERGMANN é fato incontroverso e, ademais, confirmado pelas provas documentais. As imagens e os vídeos juntados aos autos, cuja licitude já foi reconhecida, demonstram não uma presença discreta ou protocolar, mas uma participação ativa com nítida conotação eleitoral.

Conforme fotos retiradas da própria rede social de RAFAEL BORTOLETTI, o candidato pode ser visto circulando no interior e fora da obra inaugurada, com um adesivo de campanha colado ao peito, saudando eleitores e posando para fotos com apoiadores e com o Deputado Estadual Bonatto. Havia apoiadores com bandeiras na entrada do evento. Tais atos configuram, sem margem para dúvidas, uma posição ostensiva de campanha, utilizando a inauguração da obra pública como palco para promoção eleitoral.

Pessoas andando na frente de um prédioO conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Palco com banda pessoas cantando e tocando guitarraO conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

Homem sentado em aeroportoO conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.

A tese defensiva de que os candidatos estavam em outro local, o restaurante Zé Restobar, não se sustenta para afastar a ilicitude. O próprio parecer técnico juntado pela defesa indica a presença no restaurante até as 15h54, enquanto o evento se estendeu para além desse horário. As provas fotográficas e de vídeo demonstram inequivocamente a presença deles no Parque Saint Hilaire, no dia do evento, interagindo com o público e associando suas imagens à obra entregue.

Tal associação fica mais evidente quando vemos a postagem constante no ID 45900986, extraída do perfil do Deputado Estadual Professor Bonatto na rede social Instagram, onde consta o comentário de RAFAEL BORTOLETTI e a presença de MARCIEL FAURI BERGMANN:

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“No aniversário da nossa Viamão, tivemos o lançamento de alguns espaços do nosso parque. Mas é só a primeira semente de tudo que ele vai se tornar.

Queremos transformar ele em referência para eventos culturais, para o Acampamento Farroupilha, como para shows, eventos de esporte, e o lazer dos viamonenses aos finais de semana. Um espaço qualificado e de alto nível como a nossa população merece.”

Nesse sentido, afasta-se a tese arguida pelos recorridos de que não houve ostensividade na presença dos recorridos no evento. Mesmo não havendo prova da existência de fala direcionada aos candidatos ou enaltecimento de suas qualidades pelas autoridades que fizeram uso da palavra, a presença ostensiva dos candidatos e de sua militância, com identificação de suas candidaturas, com bandeiras e bottons e a vinculação das autoridades presentes com os candidatos de sua corrente política no transcorrer do evento afastam a possibilidade de aplicação de qualquer juízo de proporcionalidade para afastamento da tipicidade da conduta. Essa é a posição que podemos extrair da jurisprudência do colendo Tribunal Superior Eleitoral, que colaciono a título de exemplo:

ELEIÇÕES 2014. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. CONDUTA VEDADA AO AGENTE PÚBLICO (LEI DAS ELEICOES, ART. 77). CANDIDATO. DEPUTADO ESTADUAL. COMPARECIMENTO À INAUGURAÇÃO DE OBRA PÚBLICA. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. INCIDÊNCIA. NÃO CONFIGURAÇÃO DO ILÍCITO. ACÓRDÃO REGIONAL EM CONSONÂNCIA COM JURISPRUDÊNCIA DESTE TRIBUNAL SUPERIOR. DECISÃO MANTIDA. DESPROVIMENTO. 1. O princípio da proporcionalidade aplicado no âmbito do art. 77 da Lei nº 9 .504/97 é admitido para afastar a configuração do ilícito eleitoral, quando a presença do candidato se dá de forma discreta e sem sua participação ativa no evento, porquanto, nessas hipóteses, não se verifica a quebra da igualdade de chances entre os candidatos na disputa eleitoral (AgR-REspe nº 473-71/PB, Redator para o acórdão Min. João Otávio de Noronha, DJe de 27.10.2014 e AgR-AI nº 1781-90/RO, Rel. Min. Henrique Neves, DJe de 6.12.2013) . 2. In casu, consta do aresto regional que a presença da candidata deu-se de forma discreta, sem qualquer destaque ou manifestação perante o reduzido número de presentes, não havendo sua participação ativa no evento. Dessa forma, aplica-se ao caso o princípio da proporcionalidade, a fim de que seja afastada a caracterização do ilícito eleitoral, ex vi da jurisprudência sedimentada por esta Corte Superior. 3. Agravo regimental desprovido. (TSE - RESPE: 00012602520146250000 ARACAJU - SE, Relator.: Min. Luiz Fux, Data de Julgamento: 09/06/2016, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Data 05/09/2016) (Grifei.)

Veja-se que a ampla divulgação do evento – antes e após a sua realização – nas redes sociais dos candidatos e das autoridades presentes, trouxe destaque aos candidatos e visou captar votos de eleitores, desequilibrando, assim, a igualdade de oportunidades entre os disputantes dos cargos Executivos.

Portanto, concluo que os fatos alegados na inicial restaram suficientemente demonstrados ao longo da instrução, assim como a repercussão da conduta que, propagada pelas redes sociais, ampliou a capacidade de afetar a igualdade de oportunidades entre os participantes do certame eleitoral, razão pela qual tenho por reformar a sentença no que diz respeito ao enquadramento do fato na hipótese prevista no art. 77 da Lei n. 9.504/97.

Ainda, a parte recorrente aponta que a realização de show artístico durante a inauguração configuraria conduta vedada (mesmo tendo sido comprovada a sua gratuidade). É sabido que o art. 75 da Lei das Eleições veda a contratação de shows artísticos pagos com recursos públicos.

Os recorridos apresentaram declaração do músico João Luiz Corrêa, na qual ele afirma que o concerto foi oferecido gratuitamente, como um "presente" em razão do aniversário do Município de Viamão. Tal prova não foi impugnada ou desconstituída pela recorrente, que se limitou a afirmar ser "irrelevante se gratuito".

Como bem apontado pela Procuradoria Regional Eleitoral, a recorrente não se desincumbiu do ônus de provar que o show foi custeado com verbas públicas, elemento essencial para a tipificação da conduta. Logo, não restou configurada a violação ao art. 75 da Lei n. 9.504/97.

Por último, a Coligação recorrente defende que houve gravidade no ato em grau suficiente a caracterizar, também, abuso de poder político pelo recorrido NILTON JOSE SICA MAGALHAES.

Da capitulação pretendida pela recorrente, preocupou-se o legislador constitucional com os efeitos deletérios que a influência e o uso abusivo de poder (seja político, econômico ou de outra ordem) pudessem exercer no processo eleitoral. Para isso, determinou a criação de um conjunto próprio de normas, por edição de Lei Complementar, com o fito de proteger “a normalidade e a legitimidade das eleições”, notadamente “contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (conforme previsto na Constituição Federal, art. 14, § 9º).

O abuso de poder encontra-se normatizado no art. 22, caput e incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

[...]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; (Redação dada pela Lei Complementar n. 135, de 2010)

[...]

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (Incluído pela Lei Complementar n. 135, de 2010)

Na lição de José Jairo Gomes (GOMES, José Jairo. Direito eleitoral / José Jairo Gomes. - 20. ed., rev., atual. e reform. - Barueri [SP]: Atlas, 2024.), o abuso de poder, especificamente na categorização do poder político, é assim caracterizado:

“O substantivo abuso (do latim abusu: ab + usu) diz respeito a mau uso, uso errado, desbordamento do uso, ultrapassagem dos limites do uso normal, exorbitância, excesso, uso inadequado ou nocivo. Haverá abuso sempre que, em um contexto amplo, o poder – não importa sua origem ou natureza – for manejado com vistas à concretização de ações ilícitas, irrazoáveis, anormais ou mesmo injustificáveis diante das circunstâncias que se apresentarem e, sobretudo, ante os princípios e valores agasalhados no ordenamento jurídico. Por conta do abuso, ultrapassa-se o padrão normal ou esperado de comportamento, realizando-se condutas que não guardam relação lógica com o que, à luz do Direito, normalmente ocorreria ou se esperaria que ocorresse. A análise da razoabilidade do evento e a ponderação de seus motivos e finalidades oferecem importantes vetores para sua apreciação e julgamento; razoável, com efeito, é o que está em consonância com a razão e com os valores em voga.

Já o vocábulo poder, em seu sentido comum, expressa a força bastante, a energia transformadora, a faculdade, a capacidade, a possibilidade, enfim, o domínio e o controle de situações, recursos, estruturas ou meios que possibilitem a realização ou a transformação de algo. Revela-se o poder na força, na robustez, na potencialidade de se realizar algo. Implica a efetiva capacidade de transformar uma dada realidade ou a faculdade de colocar em movimento novas energias ou procedimentos tendentes a modificar um estado de coisas ou uma dada situação.

Na esfera política, em que se destacam as relações estabelecidas entre indivíduos e entre grupos, compreende-se o poder como a capacidade de orientar, condicionar ou determinar o comportamento humano. Isso também se dá por meio de influência ou interferência exercida na mente das pessoas, resultando na conformação da maneira como sentem, agem, pensam, percebem e interpretam as coisas e o mundo à sua volta, o que pode ocorrer tanto no plano individual quanto no coletivo.

No Direito Eleitoral, por abuso de poder compreende-se o mau uso de direito, situação ou posição jurídico-social com vistas a se exercer indevida e ilegítima influência em processo eleitoral. Isso ocorre seja em razão do cerceamento de eleitores em sua fundamental liberdade política, seja em razão da manipulação de suas consciências políticas ou indução de suas escolhas em direção a determinado candidato ou partido político”.

Como pode-se perceber, a capitulação dos atos como abusivos não é definida a partir de condutas taxativas, mas pela sua capacidade do comportamento de extrapolar o exercício regular e legítimo da capacidade econômica ou de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito. E essa quebra da normalidade do pleito está vinculada à gravidade dessa conduta ser capaz de alterar de forma derradeira a normalidade da campanha, sem a necessidade da demonstração de que sem a prática abusiva o resultado das urnas seria diferente, mas que deve estar alicerçada em prova inconteste. In verbis:

ELEIÇÕES 2018. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. DEPUTADO FEDERAL. SUPOSTO ABUSO DE PODER ECONÔMICO. PROVA ROBUSTA E GRAVIDADE DOS FATOS. INEXISTÊNCIA. DESPROVIMENTO. 1. Inexiste ofensa ao art. 36, § 7º do RITSE, amparada a decisão na legislação aplicável à espécie e na jurisprudência deste Tribunal. 2. Imprescindível para a configuração do abuso de poder prova inconteste e contundente da ocorrência do ilícito eleitoral, inviabilizada qualquer pretensão articulada com respaldo em conjecturas e presunções. Precedentes. 3. Além disso, a quantia de R$ 10.300,00 (dez mil e trezentos reais), ainda que utilizada com o escopo de obter apoio político, é incapaz de afetar os bens jurídicos da normalidade e legitimidade, bem como da isonomia entre os candidatos, considerando o contexto de eleições gerais para o cargo de Deputado Federal, com abrangência em todo o estado da federação. 4. Agravo Regimental desprovido. (TSE - RO-El: 060000603 PORTO ALEGRE - RS, Relator.: Min. Alexandre de Moraes, Data de Julgamento: 10/12/2020, Data de Publicação: 02/02/2021) (Grifei.)

Nesse ponto, a fim de evitar tautologia, acompanho as bem lançadas razões trazidas no parecer da Procuradoria Regional Eleitoral ao apontar a ausência de prova apta ao enquadramento da conduta do recorrido NILTON no que diz respeito ao suposto abuso de poder perpetrado:

[...]

convém dar-se eco ao Ministério Público no primeiro grau, o qual, com exatidão, assinalou que:

[...] o compulsar dos autos denota que não há arcabouço probatório que demonstre, sem sombra de dúvidas, que o evento realizado pela Administração Pública destinava-se ao fomento de campanha eleitoral, conjuntura indispensável à configuração de uso indevido, desvio ou abuso de poder político, que se perfectibiliza na utilização das instituições públicas, ou na realização de qualquer atividade administrativa, no contexto de um pleito, com o propósito oculto de impulsionar ou desqualificar candidaturas. (ID 45901106)

[...]

Portanto, em linha com o parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, tenho que não cumprida a exigência da prova inequívoca para a configuração do ato como abusivo, devendo ser mantida a sentença de improcedência da AIJE quanto a este ponto.

Assim, restando configurada a conduta vedada do art. 77 da Lei n. 9.504/97, com gravidade apta a ensejar as mais severas sanções, tenho que o recurso eleitoral merece parcial provimento para reformar a sentença de primeiro grau e julgar parcialmente procedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral, reconhecendo a prática de conduta vedada para cassar os diplomas de RAFAEL BORTOLETTI DALLA NORA (Prefeito) e MARCIEL FAURI BERGMANN (Vice-Prefeito), com fundamento no art. 77, parágrafo único, da Lei n. 9.504/97.

DIANTE DO EXPOSTO, VOTO por DAR PARCIAL PROVIMENTO ao recurso interposto pela COLIGAÇÃO VIAMÃO DA RECONSTRUÇÃO para julgar parcialmente procedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral, reconhecendo a prática de conduta vedada para:

a) CASSAR OS DIPLOMAS de RAFAEL BORTOLETTI DALLA NORA (Prefeito) e MARCIEL FAURI BERGMANN (Vice-Prefeito), com fundamento no art. 77, parágrafo único, da Lei n. 9.504/97.

b) DETERMINAR, nos termos do art. 224 do Código Eleitoral, a comunicação ao Juízo da 072ª Zona Eleitoral de Viamão/RS para que adote as seguintes providências, após o julgamento de eventuais embargos de declaração opostos ao presente acórdão ou do esgotamento da instância ordinária:

b.1) Afastamento dos titulares dos cargos de prefeito e vice-prefeito, com a consequente assunção ao cargo de chefe do Poder Executivo Municipal pelo Presidente da Câmara de Vereadores de Viamão; e

b.2) Realização de novas eleições majoritárias no Município de Viamão, conforme Resolução a ser expedida por este Tribunal.