RecCrimEleit - 0600193-49.2020.6.21.0073 - Voto Relator(a) - Sessão: 25/02/2025 às 15:00

VOTO

O Ministério Público apresentou denúncia em 23.8.2022, narrando que, em 15.11.2020, às 04h57, na Rua Doutor Hillebrand, n. 1270, em São Leopoldo/RS, o denunciado teria jogado na via pública “santinhos” contendo seu nome e número de candidato, no contexto das eleições municipais de 2020. O veículo utilizado no ato, conforme a denúncia, era de propriedade de terceira pessoa.

Após instrução processual, foi proferida sentença condenatória aplicando ao réu a pena de seis meses de detenção, em regime aberto, substituída por prestação de serviços à comunidade, além de multa equivalente a 10 dias-multa. Transcrevo as razões da sentença:

(…)

A materialidade delitiva está demonstrada pelo material de propaganda eleitora apreendido (pgs. 155/161), bem como pela certidão de juntada da pg. 154, ID 122185717.

A autoria igualmente recai na pessoa do réu.

As testemunhas ouvidas em juízo, mais notadamente os policiais militares que efetuaram a apreensão dos santinhos, confirmaram a narrativa da denúncia.

Fernando Lucas Galvão estava com a colega passando na frente do colégio, e constataram o veículo parado em frente ao colégio, com pessoas espalhando santinhos. No carro havia caixas de santinho. Havia quatro pessoas jogando santinhos “pra fora”. Tentou evitar a lavratura do termo de apreensão dizendo que ia conversar com “o pessoal da Brigada”, mas não sabe se isso ocorreu. Pelo que se recorda o veículo era um Golf.

A testemunha policial militar Jéssica Vieira da Rocha confirmou que estava de serviço com o colega Fernando e que ao final da ronda flagraram quatro pessoas em um veículo parados em frente a uma escola jogando santinhos na calçada. Na escola funciona uma seção eleitoral. Havia uma caixa de santinhos no carro, e o réu estava junto. As pessoas tentaram impedir a apreensão, especialmente Gildo, alegando suposta influência na Brigada Militar, de modo que solicitaram apoio e registraram a ocorrência. Não recorda da cor e modelo do veículo, devido ao tempo decorrido desde a ocorrência. Tem uma farmácia na frente da escola.

A testemunha Rafael dos Anjos Flores disse que não é policial militar, não conhece o réu, desconhece o fato e aduziu ter sido arrolado por engano.

O informante Juliano Córdova dos Santos, cunhado do réu, falou que estava junto no momento da abordagem e que foram abordados ao retornar de uma festa “num amigo nosso”, na madrugada do dia 15/11/2020. Embora tivesse material de campanha dentro do carro, não estavam jogando na rua. Quem estava no volante era um amigo, e a abordagem “foi do nada”. Ninguém falou que ia intervir na ocorrência através de contatos na Brigada. Só beberam água na festa. No carro estavam ainda os amigos Marcos Felipe e Ismael. Há duas farmácias no local, e a abordagem ocorreu a uma quadra da escola. Estavam com o veículo em movimento no momento da abordagem, num Golf azul.

O réu, em seu interrogatório, negou a acusação da denúncia. Disse que foram abordados em movimento, que não foi na frente da escola e que estavam voltando de um churrasco na casa de um amigo. A abordagem se deu no caminho de sua casa. Com o réu estavam Juliano Córdova dos Anos, Marcos Filipe Sávia e Ismael Ost. Não conhecia os policiais que o abordaram. O material era sobra de campanha, que foi distribuído na véspera da eleição. Falou das dificuldades em cumprir as condições da suspensão. Estavam em Golf azul. Estavam voltando da casa de Marlon, que fica na rua Arambaré.

Contudo, a justificativa do réu não se mostra robusta o suficiente para afastar a imputação que lhe é feita, sobretudo pela prova trazida aos autos pelo MP, aliada às circunstâncias da abordagem.

O réu admite que no momento da abordagem estava com material de campanha, justificando que estava voltando de um churrasco na casa de um amigo, de nome Marlon, que sequer foi arrolado como testemunha.

Os policiais militares responsáveis pela lavratura do termo circunstanciado foram uníssonos ao afirmar que flagraram o réu e as pessoas que o acompanhavam espalhando santinhos na via pública no dia do pleito, nas primeiras horas da manhã.

Em relação ao valor probatório dos depoimentos dos policiais, destaco que merecem credibilidade, pois não há nos autos qualquer motivo concreto para se colocar em dúvida a veracidade dos depoimentos prestados por eles. Destaco que os policiais não estão proibidos de depor (art. 207 do CPP), não estão dispensados do compromisso (art. 208 do CPP), nem mesmo foram alvo de contradita ou arguição de circunstâncias ou defeitos que os tornem suspeitos de parcialidade ou indignos de fé (art. 214 do CPP).

Nesse sentido, destaco a decisão do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

 

APELAÇÃO-CRIME. TRÁFICO DE DROGAS E ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO DE DROGAS. LEI 11.343/06. (...) PROVA. CONDENAÇÃO MANTIDA. (...) VALIDADE DOS DEPOIMENTOS DOS POLICIAIS. Os depoimentos dos policiais são elementos de convicção válidos, mormente quando não resta evidenciado que tivessem motivos escusos para imputação de crime tão grave a inocentes. Precedentes. (...) Agravante afastada. Apelos defensivos parcialmente providos. (Apelação Crime Nº 70030243232, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marlene Landvoigt, Julgado em 29/06/2010) (sem grifos no original)

Assim, diante do robusto conjunto probatório formado, mormente com fulcro no depoimento dos policiais militares Jéssica Vieira da Rocha e Fernando Lucas Galvão, aliado à apreensão substancial de material de campanha na posse do réu em circunstâncias, é caso de afastamento da tese de insuficiência probatória, sendo irrelevantes eventuais discrepâncias envolvendo a descrição do local da abordagem e do veículo envolvido na ocorrência.

(…)

Inicialmente, analiso as prefaciais suscitadas.

Quanto à alegada falta de interesse de agir pelo ajuizamento da ação penal após a data das eleições, entendo que tal argumento não se sustenta. É clara a distinção entre ações de natureza cível, como representações eleitorais, das ações penais eleitorais.

No caso das primeiras, a propositura da representação deve ocorrer até 48h da data do pleito, sob pena de extinção por falta de interesse processual, conforme § 8º-A do art. 19 da Resolução TSE n. 23.610/19. Contudo, tal restrição não se aplica às ações penais, que visam à apuração de condutas tipificadas como crime eleitoral e não estão sujeitas a essa limitação temporal. Assim, a ação penal foi tempestivamente ajuizada, sendo plenamente cabível.

No que tange à nulidade da sentença por suposta violação ao princípio da correlação, também não verifico irregularidade. A sentença limitou-se a examinar os fatos descritos na denúncia, sem inovação que pudesse caracterizar mutatio libelli. O reconhecimento da participação de terceiros no evento, mencionado nos depoimentos, não configura alteração da narrativa acusatória, mas apenas contextualização do fato principal, que permaneceu inalterado. Ademais, não houve qualquer prejuízo à defesa do recorrente, que teve plena oportunidade de contraditar as provas e apresentar sua versão dos fatos.

Em relação à alegação de cerceamento de defesa pela ausência de oitiva de testemunhas mencionadas nos autos, observo que a defesa não as arrolou no momento processual oportuno, configurando preclusão. Não há elemento que indique justificativa plausível para o não arrolamento tempestivo, tampouco requerimento formal para produção de novas provas que pudesse ser apreciado pelo juízo de primeiro grau. Portanto, inexiste qualquer nulidade processual a ser reconhecida.

Dessa forma, não identifico vícios capazes de macular a validade da ação penal ou da sentença condenatória.

Rejeito as preliminares.

No mérito, a defesa apontou ausência de provas conclusivas para materialidade e autoria do delito: a) as imagens fornecidas mostram os materiais de campanha dentro do veículo, sem comprovação de que foram arremessados; b) as testemunhas policiais não foram precisas quanto ao momento e local exatos do suposto delito; c) não há fotos ou registros dos "santinhos" no chão, sendo que o material apreendido estava encaixotado no veículo; d) as testemunhas de defesa e o réu afirmaram que ele estava apenas retornando de uma confraternização.

Para a configuração do crime eleitoral descrito no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, é necessária prova robusta e incontroversa.

Após análise detida dos autos, concluo que o recurso merece provimento, pois a sentença condenatória de primeiro grau carece de suporte probatório adequado para confirmar a materialidade e autoria do delito imputado ao recorrente.

No caso em tela, as provas produzidas são insuficientes para comprovar a materialidade e a autoria. Os “santinhos” apreendidos estavam armazenados no veículo, e não há registros ou imagens que demonstrem que foram espalhados na via pública. Os depoimentos dos policiais também não apresentam detalhes suficientes para corroborar a tese acusatória.

Embora seja pacífico que o depoimento de policiais militares pode ser considerado um meio idôneo de prova, é igualmente imperioso que sua valoração siga critérios rigorosos. Como bem destacado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do AREsp 1.936.393/RJ, de relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, o testemunho policial, assim como qualquer prova testemunhal, deve ser analisado sob os prismas da coerência interna, coerência externa e sintonia com as demais provas dos autos (STJ - AREsp: 1936393 RJ 2021/0232070-2, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 25/10/2022, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 08/11/2022).

Essa prova deve ser acompanhada de outros elementos que corroborem a narrativa apresentada. A condenação não pode se basear exclusivamente em testemunhos de agentes públicos que participaram diretamente da abordagem, sob pena de afronta ao princípio do contraditório e da ampla defesa.

No presente caso, os policiais afirmaram ter visualizado o recorrente e outras pessoas supostamente espalhando santinhos na via pública. Entretanto, tal narrativa não apresenta suficiente coerência interna, tampouco encontra respaldo externo em elementos objetivos do processo. Não há registros fotográficos, filmagens ou depoimentos de testemunhas independentes que validem essa versão. As imagens anexadas aos autos apenas demonstram a presença de material de campanha dentro do veículo abordado, não havendo qualquer evidência objetiva de que esses santinhos foram arremessados na via pública.

Não há demonstração de registro de derrame de santinhos no chão ou de movimentação compatível com a acusação.

Ademais, a ausência de testemunhas independentes que pudessem corroborar a versão dos policiais enfraquece ainda mais o suporte probatório. Nenhuma das pessoas que supostamente acompanhavam o recorrente foi ouvida, seja na fase policial ou judicial. Além disso, a tese defensiva, amparada por depoimentos consistentes, indicou que o recorrente estava retornando de uma confraternização com santinhos no interior de seu veículo, conduta que, por si só, não configura ilícito eleitoral.

As declarações das testemunhas apresentadas pela defesa são convergentes ao afirmar que o recorrente estava retornando para sua residência após uma confraternização de campanha, transportando santinhos em seu veículo, conduta que, por si só, não configura crime eleitoral. Essa versão dos fatos não foi efetivamente desconstituída pela acusação, sendo insuficiente o relato dos policiais para afastar a dúvida razoável quanto à inexistência do delito.

No presente caso, não se verifica essa segurança probatória, sendo a narrativa acusatória insuficiente para sustentar a imputação com base nos parâmetros de avaliação de coerência estabelecidos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

No Estado Democrático de Direito, a presunção de inocência impõe que a condenação criminal seja sustentada por prova robusta, apta a eliminar qualquer incerteza quanto à responsabilidade do acusado. Em respeito ao princípio do in dubio pro reo, a dúvida razoável quanto à materialidade e à autoria deve ser interpretada em favor do recorrente, impondo sua absolvição. É imperativo que o Estado não imponha sanção penal sem que os elementos probatórios apresentem clareza inequívoca, o que não ocorre no caso sob exame.

Não sendo este o caso dos autos, prevalece o princípio do in dubio pro reo, que determina a absolvição diante de dúvidas fundadas acerca da materialidade ou autoria do crime.

Portanto, à míngua de elementos probatórios suficientes para sustentar o édito condenatório, e considerando que a sentença baseou-se essencialmente em depoimentos policiais desprovidos de corroboração por outras provas objetivas, a condenação não pode subsistir, sendo caso de absolvição com fundamento no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal (não existir prova suficiente para a condenação).

 

Diante do exposto, rejeito a matéria preliminar e VOTO pelo provimento do recurso interposto para reformar a sentença e julgar improcedente a denúncia com fundamento no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal, afastando a condenação imposta.