REl - 0600025-53.2023.6.21.0037 - Voto Relator(a) - Sessão: 02/10/2025 00:00 a 03/10/2025 23:59

VOTO

 

Da Tempestividade

O recurso é tempestivo, pois interposto dentro do tríduo legal.

Da Preliminar de Violação do Princípio da Dialeticidade

Em preliminar deduzida em contrarrazões, o Ministério Público Eleitoral suscita a violação do princípio da dialeticidade, sob a alegação de que o recurso "se limitou a repetir os argumentos já esposados no ID 127089721 e ID 127157903, sem guardar nenhuma relação com os fundamentos da sentença”.

Ocorre que, tanto em alegações finais (ID 46004492) quanto nas razões de recurso (ID 46004497), o representado limitou sua argumentação defensiva à alegação de modificação unilateral do objeto ou da causa de pedir após a citação, o que, segundo entende, deveria conduzir à improcedência da ação ou à anulação da sentença.

Em alegações finais, registrou-se:

 

Versa o presente feito sobre suposta doação realizada ao Cargo de DEPUTADO ESTADUAL nas eleições de 2022.

[...].

Durante a tramitação do feito, o ora Requerente TROCOU O OBJETO DO FEITO, passando a alegar: "DOAÇÃO REALIZADA A PARTIDO POLÍTICO", no caso, o PSDB.

Com a máxima vênia, a TROCA DE OBJETO DA AÇÃO, SOMENTE PODERÁ OCORRER ANTES DA CITAÇÃO, ou com a anuência do Requerido.

 

Contudo, a questão referente à suposta violação ao princípio da estabilização objetiva da demanda não foi expressamente enfrentada na sentença. Dessa forma, renovado o argumento como único ponto das razões recursais, não houve correspondência entre a argumentação recursal e os fundamentos da sentença.

Nada obstante, ainda que não tenha havido o saneamento da omissão sentencial por meio da oposição de embargos de declaração, implicando na ausência de análise da questão pelo juízo de primeiro grau, cabe ao tribunal proceder ao enfrentamento imediato da matéria, conforme previsto no art. 1.013, §§ 1º e 3º, inc. III do CPC, cuja lógica é a prevalência dos princípios da instrumentalidade das formas, da primazia da decisão de mérito e da economia processual, in verbis:

 

Art. 1.013. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.

§ 1º Serão, porém, objeto de apreciação e julgamento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no processo, ainda que não tenham sido solucionadas, desde que relativas ao capítulo impugnado.

[...].

§ 3º Se o processo estiver em condições de imediato julgamento, o tribunal deve decidir desde logo o mérito quando:

[...].

III - constatar a omissão no exame de um dos pedidos, hipótese em que poderá julgá-lo;

[...].

 

Nessa linha, ao comentar o dispositivo processual, a doutrina de Alexandre Câmara bem explicita a possibilidade de devolução ao Tribunal de matéria sobre a qual a sentença foi omissa e em que não se opuseram embargos de declaração:

 

[...]. Pense-se, desse modo, no caso de ter sido discutida no processo alguma questão que deveria ter sido apreciada e resolvida na sentença (e que diga respeito ao conteúdo impugnado da sentença e que foi devolvido ao tribunal pela apelação). Não tendo sido a questão enfrentada na sentença, será esta omissa, o que permitirá a oposição de embargos de declaração. Tenham ou não sido opostos os embargos declaratórios, porém, incumbirá ao tribunal de segundo grau manifestar-se a respeito da questão sobre a qual a sentença se omitiu. (CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de Direito Processual Civil. Barueri [SP]: Atlas, 2024. p. 1.025).

 

Dessa forma, na hipótese, a ausência de enfrentamento na sentença da matéria devolvida pelo recurso não obsta ao conhecimento do apelo, razão pela qual rejeito a preliminar de violação do princípio da dialeticidade recursal.

Com essas considerações, atendidos os demais pressupostos recursais, conheço do recurso.

 

Do Mérito

No mérito, trata-se de recurso interposto por JEFFERSON LUIZ DE FREITAS LOPES contra sentença que julgou procedente a representação ajuizada pelo Ministério Público Eleitoral por doação de campanha acima do limite legal e condenou o ora recorrente ao pagamento de multa no valor de R$ 2.855,97.

Segundo a sentença, no curso da instrução, ficou demonstrado que o representado realizou doação de campanha no valor de R$ 5.000,00, excedendo o limite legal de 10% sobre os rendimentos brutos auferidos no ano anterior às eleições, estabelecido em R$ 21.440,32 (ID 46004462), havendo excesso de R$ 2.144,03, em violação ao art. 23, § 1º, da Lei n. 9.504/97:

 

Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)

§ 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a 10% (dez por cento) dos rendimentos brutos auferidos pelo doador no ano anterior à eleição. (Redação dada pela Lei nº 13.165, de 2015)

[...].

§ 3º A doação de quantia acima dos limites fixados neste artigo sujeita o infrator ao pagamento de multa no valor de até 100% (cem por cento) da quantia em excesso. (Redação dada pela Lei nº 13.488, de 2017)

 

Em suas razões, o recorrente se restringe a alegar violação ao art. 329, inc. I, do CPC, que consagra o princípio da estabilização objetiva da demanda, defendendo que houve a modificação unilateral da causa de pedir, sem o consentimento do réu, após a citação, tornando nula a sentença condenatória.

A suposta alteração ilícita envolve a indicação do beneficiário da doação eleitoral e está assim deduzida no recurso:

 

[...] O primeiro parágrafo “DOS FATOS”, da petição inicial, narra o seguinte:

A pessoa física representada efetuou doação eleitoral em favor de candidato ao cargo de DEPUTADO ESTADUAL nas eleições realizadas no ano de 2022, sendo que o valor doado excedeu o limite legal de 10% (dez por cento) de seus rendimentos brutos auferidos no ano anterior às eleições (ano-calendário de 2021), conforme verificado em cruzamento de dados efetuado pela Receita Federal na forma do art. 24-C, § 3º, da Lei nº 9.504/1997 e do art. 27, § 5º, III da Res.-TSE nº 23.607/2019 (vide doc. anexo).” O grifo é nosso.

 

Por sua vez, a MANIFESTAÇÃO do Ministério Público Eleitoral – MPE, que instrui a inicial, denominada de PROCEDIMENTO PREPARATÓRIO ELEITORAL, nº 00854.001.498/2023, na descrição do possível crime eleitoral, afirma o seguinte:

“Potencial irregularidade consistente em doação ou contribuição estimável em dinheiro acima do limite legal, relativamente às eleições ocorridas no município de RIO GRANDE/RS no ano de 2022, tendo como beneficiário HALLEY LINO DE SOUZA (PT) e como doador Jefferson Luiz de Freitas Lopes.” O grifo também é nosso.

 

Ou seja, a CAUSA DE PEDIR DO PRESENTE FEITO, FOI SUPOSTA DOAÇÃO A ELEIÇÃO PARA O CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL – mais especificamente ao então candidato HALLEY LINO SOUZA do Partido dos Trabalhadores – PT.

Devidamente citado, o ora Recorrente, no dia 09/04/2025, contestou o feito, alegando que NÃO HAVIA REALIZADO NENHUMA DOAÇÃO ELEITORAL PARA O CARGO DE DEPUTADO ESTADUAL, muito menos a candidato do Partido dos Trabalhadores.

Após a contestação, adveio a Certidão de folhas 19, com o seguinte teor:

“CERTIFICO que, em consulta ao Processo PCE 0602439-72.2022.6.21.0000, do PARTIDO DA SOCIAL DEMOCRACIA BRASILEIRA – RIO GRANDE DO SUL – RS – ESTADUAL, constata-se que a doação mencionada na inicial tem como beneficiário o partido e não o citado HALLEY LINO SOUZA.” O grifo é nosso.

 

No dia 12/04/2025, o MPE, propõe PROMOÇÃO COMPLEMENTAR, visando inserir a doação realizada ao Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB, como causa de pedir no presente feito.

Ora, com a máxima vênia, NÃO PODERIA A CAUSA DE PEDIR TER SIDO ALTERADA APÓS A CONTESTAÇÃO, sem anuência do Requerido, assim dispõe o art. 339 do Código de Processo Civil – CPC: [...].

 

De fato, a petição inicial da representação narrou o fato ilícito nos seguintes termos (ID 46004461):

 

A pessoa física representada efetuou doação eleitoral em favor de candidato ao cargo de DEPUTADO ESTADUAL nas eleições realizadas no ano de 2022, sendo que o valor doado excedeu o limite legal de 10% (dez por cento) de seus rendimentos brutos auferidos no ano anterior às eleições (ano-calendário de 2021), conforme verificado em cruzamento de dados efetuado pela Receita Federal na forma do art. 24-C, § 3º, da Lei nº 9.504/1997 e do art. 27, § 5º, III da Res.-TSE nº 23.607/2019 (vide doc. anexo).

 

Por sua vez, o referido documento produzido pela Receita Federal, anexo à exordial e que deu base à representação, informa que o beneficiário da doação é o PSDB (ID 46004462, fl. 5-7):

 

Portanto, é bastante claro que ocorreu um equívoco material na petição inicial da demanda na indicação do real beneficiário da doação, o qual também constou registrado na capa do procedimento preparatório eleitoral instaurado pelo Ministério Público Eleitoral, em que se qualificou como beneficiário da doação “Halley Lino de Souza (PT)” (ID 46004462, fl. 1).

Ocorre que no tipo infracional previsto no art. 23, § 3º, da Lei n. 9.504/97 os elementos essenciais à configuração do ilícito são a qualificação do doador (pessoa física), o valor da doação de natureza eleitoral, a aferição dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição e a constatação de que o valor doado excede o limite legal de 10% desses rendimentos.

Vale dizer: o objeto da representação por doação acima do limite legal recai sobre a capacidade contributiva do doador e o valor efetivamente transferido a título de doação eleitoral, aspectos fáticos que permaneceram inalterados durante todo o processo, possibilitando o exercício do direito de defesa.

Desse modo, não houve afronta ao art. 329 do CPC, uma vez que a causa de pedir remota (fatos) e a causa de pedir próxima (fundamento jurídico) estão suficientemente indicadas desde a inicial e permanecem inalteradas: a realização de doação eleitoral no valor de R$ 5.000,00, em 13.9.2022, valor esse que extrapolou o limite legal de 10% da renda bruta anual do doador, infringindo o § 1º do art. 23 da Lei n. 9.504/97.

A identificação do beneficiário da doação, seja candidato ou partido político, não integra a estrutura normativa do tipo infracional, tampouco é elemento essencial à subsunção da conduta à norma sancionadora. Trata-se, portanto, de dado acessório ou complementar, passível de ser apurado no curso da instrução processual, desde que os demais elementos relativos à pessoa do doador estejam devidamente delineados na peça inicial da representação.

No caso dos autos, os documentos que instruem a exordial, especialmente o relatório da Receita Federal e o extrato do Sistema de Divulgação de Contas Eleitorais (ID 46004462, fls. 5-7), já apontavam corretamente o partido como beneficiário.

Ademais, restou incontroverso que o recorrente realizou uma única operação de doação eleitoral no ano de 2022, no valor de R$ 5.000,00, conforme comprovado pelo Relatório da Receita Federal do Brasil e pelos dados do Sistema de Divulgação de Contas Eleitorais. Logo, a identificação do beneficiário da doação não constitui elemento essencial à defesa do representado, pois não há pluralidade de operações que pudesse gerar confusão ou exigir esclarecimentos sobre destinatários diversos.

A defesa do recorrente, portanto, não foi prejudicada pelo ajuste na referência ao beneficiário que não alterou o núcleo da conduta imputada: a doação de natureza eleitoral, o valor doado, a data de realização e a constatação de que esse valor excedeu o limite legal de 10% dos rendimentos brutos do doador auferido no ano anterior à eleição.

O direcionamento da doação foi definitivamente esclarecido ainda no curso da instrução, a partir da juntada de demonstrativo contábil extraído da prestação de contas eleitorais do próprio Diretório Regional do PSDB (IDs 46004479 e 46004480).

Após isso, o representado teve aberta nova oportunidade de manifestação específica sobre a prova (ID 46004484), sem prejuízo das alegações finais apresentadas com o término da instrução (ID 46004492).

Ocorre que, durante todo o procedimento, a única linha defensiva adotada sobre o mérito da demanda consistiu na negativa de doação ao candidato “Halley Lino de Souza (PT)”, ignorando que o Diretório Estadual do PSDB já estava indicado como beneficiário da doação nos documentos anexos à peça inicial que deram lastro à representação.

Assim, o ora recorrente foi devidamente intimado, apresentou defesa e teve ampla oportunidade de requerer provas e de manifestar-se sobre todos os elementos probatórios encartados; inclusive após a confirmação do efetivo beneficiário da doação no decorrer do processo, não ocorrendo inovação da causa de pedir ou prejuízo concreto ao exercício do contraditório ou à ampla defesa.

Por outro lado, consoante bem observou a Procuradoria Regional Eleitoral, houve um erro material no dispositivo sentencial que condenou o ora recorrente “ao pagamento de multa fixada em 100% do valor em excesso, ou seja, R$ 2.855,97”.

Verifica-se um equívoco em relação aos valores tomados na sentença para o arbitramento da multa, uma vez que o percentual de 100% não incidiu sobre o “valor em excesso” (R$ 2.144,03), mas sobre o teto lícito de doação para o caso (R$ 2.855,97), o que não se coaduna com o teor do art. 23, § 1º, da Lei n. 9.504/97 e impõe ao doador uma sanção mais gravosa do que aquela prevista na legislação.

À luz do art. 494, inc. I, do CPC, este Tribunal Regional tem entendido pela possibilidade de correção, de ofício, de sanções impostas na sentença quando evidenciado manifesto erro material no dispositivo sentencial (Recurso Eleitoral n. 0600566-79/RS, Relator: Des. Volnei dos Santos Coelho, Acórdão de 21.3.2025, Publicado no Diário de Justiça Eletrônico n. 56, data 27.3.2025).

Dessa forma, sem alteração no percentual fixado na sentença, a multa deve ser ajustada para 100% sobre o valor de R$ 2.144,03, que efetivamente representou o excesso de doação eleitoral realizado.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo conhecimento e pelo desprovimento do recurso, retificando, de ofício, o dispositivo sentencial para que a multa de 100% do valor em excesso incida sobre a quantia de R$ 2.144,03.