REl - 0600397-87.2024.6.21.0062 - Voto Relator(a) - Sessão: 25/09/2025 00:00 a 26/09/2025 23:59

VOTO

ADMISSIBILIDADE

O recurso é tempestivo, estando presentes os demais requisitos ínsitos à tramitação processual; assim, dele conheço.

 

MÉRITO

A controvérsia central do presente recurso cinge-se a definir a consequência jurídica da utilização de recursos do FEFC, destinados a candidaturas femininas, para o pagamento de despesas de natureza advocatícia e contábil comuns a todos os candidatos da agremiação.

De início, é incontroversa a irregularidade material apontada.

A legislação eleitoral é clara ao estabelecer que os recursos do FEFC destinados ao custeio das campanhas femininas e de pessoas negras deve ser aplicada exclusivamente nestas campanhas, vedado seu uso para despesas genéricas, ressalvadas aquelas despesas coletivas que tragam também benefício para campanhas femininas e de pessoas negras.

A correta aplicação desses recursos é essencial para garantir a efetividade da política afirmativa e a transparência na prestação de contas.

Ocorre que, no caso em tela, a materialidade da irregularidade é patente.

Conforme detalhado na sentença e admitido pelo próprio recorrente, recursos oriundos do FEFC que deveriam ter sido aplicados exclusivamente no fomento de candidaturas femininas tiveram destinação diversa e foram usados para o pagamento de despesas gerais do partido, assim violando as disposições da Resolução TSE n. 23.607/19, consoante destaco de seu art. 17:

Art. 17. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral e distribuído aos diretórios nacionais dos partidos políticos na forma disciplinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º).

[...]

§ 6º A verba do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) destinada ao custeio das campanhas femininas e de pessoas negras deve ser aplicada exclusivamente nestas campanhas, sendo ilícito o seu emprego no financiamento de outras campanhas não contempladas nas cotas a que se destinam. (Redação dada pela Resolução nº 23.665/2021)

§ 7º O disposto no § 6º deste artigo não impede: o pagamento de despesas comuns com candidatos do gênero masculino e de pessoas não negras; a transferência ao órgão partidário de verbas destinadas ao custeio da sua cota-parte em despesas coletivas, desde que haja benefício para campanhas femininas e de pessoas negras. (Redação dada pela Resolução nº 23.665/2021)

§ 8º O emprego ilícito de recursos do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) nos termos dos §§ 6º e 7º deste artigo, inclusive na hipótese de desvio de finalidade, sujeitará os (as) responsáveis e beneficiárias ou beneficiários às sanções do art. 30-A da Lei nº 9.504/1997, sem prejuízo das demais cominações legais cabíveis.

§ 9º Na hipótese de repasse de recursos do FEFC em desacordo com as regras dispostas neste artigo, configura-se a aplicação irregular dos recursos, devendo o valor repassado irregularmente ser recolhido ao Tesouro Nacional pelo órgão ou candidata ou candidato que realizou o repasse tido por irregular, respondendo solidariamente pela devolução a pessoa recebedora, na medida dos recursos que houver utilizado.

[...]

Neste sentido, registro que o juízo de origem examinou com precisão a movimentação dos recursos do FEFC, demonstrando na sentença a ocorrência de desvio de finalidade no encaminhamento dado aos recursos do FEFC em prol de candidatas mulheres pelo Diretório Municipal do PL de Camargo.

A decisão não se limitou a constatar a irregularidade. Ao contrário, detalhou o cálculo que resultou no montante de R$ 2.424,32 a ser devolvido, partindo do valor total gasto com honorários (R$ 5.700,00) e abatendo as parcelas que, de forma razoável, poderiam ser atribuídas às candidaturas femininas e aos ressarcimentos parciais feitos por candidatos masculinos.

Essa análise pormenorizada afastou a tese de que os serviços teriam beneficiado a todos indistintamente, evidenciando que a verba da cota de gênero foi, na prática, utilizada para cobrir despesas comuns do partido, o que é vedado pela legislação, assim configurando falha não meramente formal, mas material, pois atinge o núcleo da fiscalização exercida por esta Justiça especializada.

Peço vênia para transcrever os seguintes trechos do ato sentencial, que bem elucidam a questão:

A análise dos documentos constantes dos autos permite aferir que, do total recebido pelo partido proveniente do FEFC, o valor de R$5.700,00 foi utilizado para despesas com serviços advocatícios e de contabilidade, tendo sido devolvido ao Tesouro Nacional, em 05/11/2025, o valor de R$ 6.291,36 (ID 125908960).

Cabe, portanto, analisar a regularidade do uso dos recursos do FEFC no valor total de R$5.700,00, desprezando e tendo por regular a devolução dos valores à título de recursos públicos recebidos, não utilizados e devolvidos ao Tesouro Nacional.

Intimada, a agremiação justificou que foi contratado serviço de advocacia pelo valor de R$5.000,00, tendo sido o valor dividido entre quatro candidatos do partido e o Diretório Municipal do PL, totalizando R$1.000,00 cada. Com relação aos R$700,00 remanescentes, o partido não se manifestou (ID 126911742).

Com efeito, os §§6° e 7° do art. 17 da Resolução 23.607/2019 assim dispõem:

[...]

Denota-se, da análise dos autos, que a agremiação não logrou êxito em demonstrar que atendeu ao disposto no artigo supracitado. Em sua manifestação, o prestador de contas informou que todos os candidatos, candidatas e o partido foram beneficiados da mesma forma pelos serviços contratados (IDs 126911741 e 126911742).

Entretanto, os candidatos Gelson Maurina e Delvandro Zanardi repassaram ao partido R$497,84 cada (IDs 125908953 e 125908955), sendo tais valores inferiores a R$1.000,00, declarado como gasto individual de cada um. A soma totaliza R$995,68. Em contrapartida, as candidatas Zilah Terezinha Fioravanso e Rosane Cristina Cucolotto repassaram, cada uma R$ 5.497,84.

Resta claro, portanto, que a utilização de R$5.700,00 para pagamento de honorários advocatícios e contábeis extrapola a quota parte que cada uma das candidatas tinha a disposição para utilizar com o FEFC destinado ao custeio de candidatura feminina, caracterizando, portanto, desvio de finalidade (art. 17, §8° da Resolução 23.607/2019).

No ponto, é razoável considerar o valor devolvido pelos dois candidatos do gênero masculino, no total de R$995,68, como parte do montante utilizado para o pagamento das despesas com honorários advocatícios e contábeis. Essa quantia, proporcionalmente distribuída entre essas despesas, reduz a parcela correspondente ao montante indevidamente utilizado (e que deveriam beneficiar apenas as candidatas).

Com isso, embora o valor de R$ 5.700,00 tenha sido originalmente empregado para tais pagamentos, a compensação parcial advinda da devolução dos candidatos masculinos será levada em conta. Ainda, é preciso considerar que foram aplicados em favor das candidaturas femininas o total de R$2.000,00, ou seja, R$1.000,00 para cada uma, consoante sustentado na defesa apresentada.

Não obstante a defesa silencie acerca dos gastos com honorários contábeis, entendo também razoável efetuar a divisão proporcional com essa espécie de despesa, sendo que cada candidato, candidata e o Partido foram beneficiados individualmente no valor de R$140,00.

Dessa maneira, a análise sobre o uso indevido dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) é realizada considerando esse ajuste proporcional nos valores, o que configura um gasto não comprovado e irregular no total de R$2.424,32 (dois mil, quatrocentos e vinte e quatro reais e trinta e dois centavos).

Essa irregularidade compromete a transparência e a confiabilidade das contas prestadas, uma vez que a utilização indevida dos recursos do FEFC representa um desvio em relação à sua finalidade legal. A ausência de comprovação adequada dos gastos fragiliza a prestação de contas e dificulta a fiscalização, prejudicando a correta aplicação dos recursos públicos destinados ao financiamento das candidaturas.

[...]

Não obstante o argumento do partido recorrente de que a devolução do montante ao erário teria o condão de sanar a irregularidade, permitindo a aprovação das contas, ainda que com ressalvas, tal tese não encontra amparo na jurisprudência pacífica deste Tribunal.

Este TRE-RS tem entendido que o recolhimento voluntário do montante irregular, após o início da análise técnica, não basta para a descaracterização da falha, uma vez que houve a efetiva aplicação irregular dos recursos, não saneada durante a campanha, mesmo que se trate de cifras módicas.

Assim, a jurisprudência deste Eleitoral é clara ao afirmar que a devolução posterior não afasta a irregularidade constatada, como se vê no julgado a seguir selecionado:

DIREITO ELEITORAL. RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS ANUAIS. EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 2023. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE FONTES VEDADAS E DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA. IRREGULARIDADES DE ELEVADA MONTA. CONTAS DESAPROVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. CASO EM EXAME 1.1. Recurso Eleitoral interposto por diretório municipal de partido político contra sentença que desaprovou a prestação de contas referente ao exercício de 2023. 1.2. Irregularidades concernentes ao recebimento de a) Recursos de Origem Não Identificada (RONI), oriundos da comercialização de ingressos para eventos, sem a devida individualização dos doadores originários; e b) recursos de fontes vedadas, especificamente de pessoas ocupantes de cargos públicos de livre nomeação e exoneração. 1.3. Determinado o recolhimento de valores ao Tesouro Nacional, acrescido de multa de 20% sobre o montante irregular; II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO 2.1. Definir se o recolhimento voluntário ao Tesouro Nacional de valores recebidos de fonte vedada é suficiente para sanar a irregularidade; 2.2. Estabelecer se a arrecadação de recursos por meio da venda de ingressos em eventos, sem individualização dos doadores originários, configura irregularidade grave, apta a ensejar a desaprovação das contas. III. RAZÕES DE DECIDIR 3.1. Recebimento de recursos de fonte vedada. Conforme reiteradamente decidido por este Tribunal, “o recolhimento voluntário do montante irregular, após o início da análise técnica, não basta para a descaracterização da falha, uma vez que houve a efetiva aplicação irregular dos recursos, não saneada durante a campanha, mesmo em cifras módicas”. 3.2. A quitação correspondente à determinação de recolhimento da falha deverá ser oportunamente comprovada em eventual procedimento de cumprimento de sentença. Indeferido o provimento do recurso quanto ao tópico. 3.3. Recebimento de recursos de origem não identificada. A legislação eleitoral, notadamente a Resolução TSE n. 23.604/19, exige a identificação precisa e individualizada do doador originário, não bastando a mera identificação de quem efetuou o depósito. 3.4. No caso, os extratos demonstram que os valores creditados na conta da agremiação são superiores ao custo individual dos ingressos, indicando que um único CPF foi responsável pela compra de múltiplos bilhetes, o que impede a fiscalização da Justiça Eleitoral sobre a origem lícita e a identidade de cada um dos doadores. 3.5. Impossibilidade de aferir-se a regularidade das doações recebidas pela agremiação, como exige o art. 5°, inc. IV, da Resolução TSE n. 23.604/19, não se tratando de falha meramente formal. Comprometidas a transparência e a confiabilidade das contas. 3.6. A irregularidade representa 86,44% do total da receita arrecadada, suplantando os parâmetros utilizados pela Justiça Eleitoral para aplicação dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade. IV. DISPOSITIVO E TESE 4.1. Recurso desprovido. Teses de julgamento: “1. O recolhimento voluntário ao Tesouro Nacional dos valores recebidos de fonte vedada não descaracteriza a irregularidade, a qual deve ser considerada para o juízo de correção das contas. 2. A ausência de individualização de doadores em eventos de arrecadação, quando compromete percentual expressivo das receitas, Dispositivos relevantes citados: CF/88, art. 37; Lei n. 9.096/95, arts. 12, inc. IV, e 37; Res. TSE n. 23.604/19, arts. 5º, inc. IV, 13, 14, 45, inc. III, al. "b", e 48. Jurisprudência relevante citada: TRE-MS, RE n. 00002556320176120019, Rel. Elizabete Anache, j. 30.8.2018; TRE-RS, RE n. 060024490, Rel. Oyama Assis Brasil de Moraes, j. 27.7.2021.

(TRE-RS - REl: 06000240520246210079, São Francisco de Assis-RS, Relator.: FRANCISCO THOMAZ TELLES, Data de Julgamento: 29.08.2025, Data de Publicação: DJE/TRE-RS, edição n. 163, 03.09.2025)

Portanto, a devolução dos valores, ainda que levada a efeito pelo recorrente, não tem o condão de apagar a mácula, que consiste no desvio de finalidade de verba pública, afetando a lisura e a transparência do processo de prestação de contas.

Dessa forma, a sentença que desaprovou as contas está em plena conformidade com o entendimento desta Corte. A irregularidade é de natureza grave e o ressarcimento ao erário, embora obrigatório, não possui efeito saneador capaz de alterar o juízo de reprovação.

Destarte, corroboro com o parecer do eminente Procurador Regional Eleitoral acerca da desaprovação da presente prestação de contas; no entanto, entendo que a arguição no sentido de que o recorrente comprovou a devolução da quantia aos cofres públicos não deve prosperar nesta Instância de julgamento.

Com efeito, é assente o entendimento neste TRE-RS de que a quitação correspondente à determinação de recolhimento de falha acoimada em processo de prestação de contas deverá ser oportunamente comprovada em eventual procedimento de cumprimento de sentença no juízo de origem, em atenção à regra de que a execução da sentença é de competência do juízo onde o processo se iniciou, sendo a ele que os autos devem retornar após o julgamento de eventuais recursos, para as providências cabíveis, incluindo a verificação do pagamento da dívida, na conformidade do disposto no art. 516 do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável no âmbito do processo eleitoral:

Art. 516. O cumprimento da sentença efetuar-se-á perante:

I - os tribunais, nas causas de sua competência originária;

II - o juízo que decidiu a causa no primeiro grau de jurisdição;

[...]

Por outro lado, cabe perquirir acerca da possibilidade de aplicação ao caso dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade a fim de eventual aprovação das contas com ressalvas e com o dever de repor ao erário.

No ponto, impende gizar que tais princípios são aplicados sempre que possível relevar falhas que, embora existentes, não comprometem a análise geral das contas.

Assim, a jurisprudência da Justiça Eleitoral é pacífica em admitir a aplicação desses princípios para aprovar, com ressalvas, prestações de contas que contenham irregularidades de baixo valor.

Porquanto sabido, este Regional tem admitido a análise para a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade considerando dois critérios principais, que podem ser avaliados de forma isolada ou conjunta: (a) valor percentual, quando irregularidade não ultrapassar 10% do total de recursos arrecadados ou de despesas realizadas na campanha; e (b) valor absoluto, quando a falha for de valor diminuto, estabelecido pela jurisprudência como o montante de até 1.000 UFIRs - R$ 1.064,10.

Porém, não é essa a realidade do caso em apreço.

Analisada a regularidade do uso dos recursos do FEFC no valor total de R$ 2.424,32, este corresponde a 20,22% dos recursos manejados pelo partido (R$ 11.991,36) e, em termos absolutos, a referida quantia também supera o valor de R$ 1.064,10. Tem-se que tal montante, tanto em valor nominal quanto percentual, a toda evidência, de longe suplanta os parâmetros utilizados pela Justiça Eleitoral para aplicação dos postulados da proporcionalidade e da razoabilidade visando mitigar o juízo de desaprovação de contas.

Destarte, no caso concreto, não vislumbro espaço apto a autorizar o acolhimento do recurso em tela, devendo, assim, ser mantida a sentença de primeiro grau pela desaprovação das contas, uma vez que a utilização indevida dos recursos do FEFC destinado às candidaturas femininas representa um desvio em relação à sua finalidade legal, prejudicando a correta aplicação dos recursos públicos, de modo que a impropriedade constatada afeta a regularidade da prestação de contas, devendo a aferição da quitação do pagamento eventualmente já realizado ficar a cargo do juízo sentenciante, em eventual procedimento de cumprimento de sentença.

Ante o exposto, VOTO por NEGAR PROVIMENTO ao recurso interposto pelo Diretório Municipal do PARTIDO LIBERAL – PL de Camargo/RS, nos termos da fundamentação.