REl - 0600317-91.2024.6.21.0105 - Voto Relator(a) - Sessão: 23/09/2025 às 16:00

VOTO

Da Admissibilidade

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento.

Da Ilegitimidade Passiva da Coligação Recorrida

Preliminarmente, reconheço a ilegitimidade da COLIGAÇÃO UMA CAMPO BOM DE TODOS para figurar no polo passivo de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE).

As consequências jurídicas dessa espécie de ação são restritas à cassação do registro ou diploma e à sanção de inelegibilidade às pessoas físicas. Assim, é inviável que partido, coligação, federação ou qualquer outra pessoa jurídica integrem o polo passivo da demanda, uma vez que não podem sofrer qualquer das consequências próprias desse meio processual.

Com esse posicionamento, colho julgado deste Tribunal:

RECURSOS. ELEIÇÕES 2020. AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL # AIJE. IMPROCEDENTES. REUNIÃO DE PROCESSOS. JULGAMENTO CONJUNTO. IDENTIDADE PARCIAL ENTRE OS FATOS. CANDIDATURA MAJORITÁRIA. PREFEITO E VICE ELEITOS. PRELIMINAR DEOFÍCIO. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA COLIGAÇÃO DEMANDADA. PENALIDADES APLICÁVEIS EXCLUSIVAMENTE A PESSOAS FÍSICAS. MÉRITO. USO DE BENS E SERVIDORES PÚBLICOS MUNICIPAIS EM BENEFÍCIO DOS CANDIDATOS. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. CONDUTAS VEDADAS. IN DUBIO PRO SUFRAGIO. EXECUÇÃO DE OBRAS E SERVIÇOS. TRÂMITE REGULAR. DESVIO DE FINALIDADE PÚBLICA NÃO DEMONSTRADA. PUBLICIDADE INSTITUCIONAL EM PERÍODO VEDADO NÃO CONFIGURADA. CONTEÚDOS DESTINADOS AO ENFRENTAMENTO DA PANDEMIA. BURLA ÀS REGRAS DE ARRECADAÇÃO DERECURSOS E DESPESAS ELEITORAIS NÃO COMPROVADAS. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO E ABUSO DE PODER POLÍTICO E ECONÔMICO NÃO CONFIGURADOS. AUSÊNCIA DE PROVAS ROBUSTAS. GRAVIDADE DOS FATOS NÃO DEMONSTRADA. IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS CONDENATÓRIOS.DESPROVIMENTO. […]. Preliminar de ofício: ilegitimidade passiva ad causam da coligação. O Tribunal Superior Eleitoral consolidou orientação de que os partidos políticos e as coligações partidárias não ostentam legitimidade passiva ad causam para asações de investigação judicial eleitoral por uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, fundadas no art. 22, caput, da LC n. 64/90, porquanto as penalidades decassação do registro de candidatura ou do diploma e a declaração de inelegibilidade são aplicáveis exclusivamente a pessoas físicas, não abrangendo as pessoas jurídicas. […]. 9. Declarado extintas, de ofício, sem resolução de mérito, por ilegitimidade passiva ad causam, forte no art. 485, inc. VI, do CPC, as AIJEs pertinentes ao REL n. 0600350-16.2020.6.21.0172 e ao REL n. 0600617-85.2020.6.21.0172 ,quantoà coligação representada, relativamente às imputações de abuso de poder político ou de autoridade e de utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, fundadas no art. 22, caput, da LC n. 64/90.10. Provimento negado aos recursos interpostos nos autos dos REL n. 0600350-16.2020.6.21.0172, REL n. 0600617-85.2020.6.21.0172 e REL n. 0600624-77.2020.6.21.0172.

(Recurso Eleitoral nº060061785, Acórdão, Des. AMADEO HENRIQUE RAMELLA BUTTELLI, Publicação: PJE - Processo Judicial Eletrônico-PJE.) Grifei.

 

Na mesma linha, o Tribunal Superior Eleitoral reconhece "a ilegitimidade das agremiações para figurarem, no polo passivo, em ação de investigação judicial eleitoral, dada a impossibilidade fática de se lhes impor - assim como a qualquer outra pessoa jurídica - as sanções decorrentes da procedência da representação, nos termos do art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/90" (Agravo em Recurso Especial Eleitoral n. 060017063, Acórdão, Relator Min. Floriano De Azevedo Marques, Publicação: DJe - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo n. 189, Data 25.9.2023).

Assim, em preliminar, de ofício, reconheço a ilegitimidade passiva da COLIGAÇÃO UMA CAMPO BOM DE TODOS, em relação à qual julgo extinto o processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, inc. VI, do CPC.

 

Do Mérito

O cerne da controvérsia reside na acusação de que os investigados teriam planejado e iniciado a produção de vídeos com tecnologia deepfake, manipulando imagem e voz do candidato recorrente, com o propósito de induzir o eleitor a erro e assim desequilibrar a disputa eleitoral.

De acordo com a narrativa exposta na petição inicial, o candidato Faisal Karam teria realizado dois encontros com Fábio Rocha, suposto especialista em informática, a fim de produzir vídeos falsos contra Giovani Feltes, por meio da tecnologia deepfake, de forma a associar o adversário à prática de condutas criminosas.

As reuniões foram gravadas por Fábio Rocha, sem o conhecimento dos demais interlocutores, e, posteriormente, entregues aos assessores de campanha de Giovani Feltes e ao Ministério Público Eleitoral.

Quanto ao primeiro encontro, que teria ocorrido em 24.8.2024, por volta das 8h45min, dentro de uma cafeteria localizada no interior do Mercado Schneider, consta na peça inicial com a seguinte transcrição:

Fabio: Vamos utilizar um nome que ninguém conhece, tá? É o deepfake. Aí, ninguém sabe o que é deepfake. Pessoal tá meio atrasado ainda. O deepfake é o seguinte. O deepfake, ele pega a imagem, de um indíviduo em questão, a imagem original. Pega essa imagem e transforma no que a pessoa quiser. Não descaracterizando, fala labial, com sincronicidade. O que é sincronia de lábio. Tipo assim, se tu utilizar um tipo de inteligência artificial pra utilizar a fala, mudando a fala, por exemplo. Por exemplo, ó. Quer ver os vídeos que eu tô publicando no TikTok? Eu publico vídeos motivacionais, tá? Só que eu fiz uma vez só o vídeo. Então, eu replico. É, eu não tenho tempo. Às vezes eu vou lá e... Ó. O vídeo do carro ali. É só o movimento da cabeça. Todos os vídeos aqui, ó. A mesma camiseta, tá vendo aqui? A mesma camiseta, ó. Ó. Som do vídeo: Vou te falar uma coisa que aprendi a duras penas. Muitas pessoas, evidentemente, nunca, jamais, irão gostar de você. Sabe por que?

Fábio: Aqui, ó. Olha aqui, ó. Mesma voz.

Som do vídeo: Uma vez, um sábio me disse uma coisa. Meu amigo, você tem sonhos grandiosos pra sua vida? Eu disse. Mas, é claro, quem não tem sonhos grandiosos? Ele me disse. Então, pare de ficar sonhando e vá ficar atrás deles. Se não te falar isso, pega visão.

Fábio: Luz, luminosidade. Olha outra camisa. Aqui. Esse aqui. Esse aqui foi só uma amostrinha que eu fiz pra brincar, pra divertir. Pra me divertir. Então, assim, ó. O céu é o limite, pode colocar o que quiser em Paris. Já mostrei o vídeo que eu tava na França. Pode jogar pra divertir, pra brincar. Mas, isso é muito bonito. Pô, entendeu? Usar pra uma boa causa. Só que tem que ter em mente que as pessoas... O que acontece? Eu vi que rolou um deep fake, na internet, e eu passei aqui, eu baixei o deep fake pra ver assim, a sincronia dele que ficou dividido a imagem do Giovani pedindo apoio, não, não não, mas eu tô dizendo assim, eu vi o amadorismo dele, entendeu, e totalmente rastreável, totalmente rastreável. Eu vou pegar aqui, ó. Eu tenho meus dedos aqui, ó. Tenho meus dedos. Meus dedos. Se eu botar a minha mão aqui, ó, e ir embora, e outro vir botar a mão aqui, e ir embora, e outro botar a mão aqui, vai ter vários digitais. E vai criar isso uma assinatura digital. Faisal: Sim, sim.

Fábio: Essa assinatura também. Isso se propaga no mundo digital também. Qualquer coisa que você... Que você fale, ou enfim, ou crie, ele cria uma assinatura digital. Tem camadas. Isso com o SpyBot e o... e o... e o... e o (inaudível) Video. Consegue rastrear desde o primeiro item até o final. Você está me entendendo? Desde a primeira criação. E tendo acesso a máquina criada, ou seja, computador criado, consegue rastrear o IP utilizado para o primeiro envio. Até o compartilhamento com o telefone celular. Então, o que faz isso? O que faz? Existe um software que apaga tudo isso. Que coloca o vídeo em camadas, em cima de camadas, gerando um endereço de IP de uma localização completamente diferente do que a gente está vendo aqui. Exatamente. Entendeu? E vai criar camadas em cima de camadas, camadas em cima de camadas.

Faisal: Do que tu demonstrou ali. Eu consigo botar daqui a pouco algum exemplo. O Angelo, o Angelo num campo de futebol.

Fabio: Consegue Faisal: Consegue? Eu consigo botar o Angelo atrás das grades?

Fabio: Consegue. Qualquer coisa. Lembra o que fizeram com o Alexandre de Moraes agora?

Faisal: Eu vi a placa.

Fabio: Mas eu posso fazer esse vídeo.

Faisal: Eu posso pegar, digamos assim, o Angelo, e colocar..

Fábio: Chama-se CGI o nome disso.

Fábio: Você vai falar disso?

Faisal: Posso colocar o Angelo fazendo algo ilícito em uma mesa?

Fábio: Dá para utilizar. Dá para utilizar. Dá para utilizar na mesa. Esse é um processo complexo, é um nível complexo, mas dá para fazer.

Faisal: Leva tempo?

Fabio: Um dia.

Faisal: Isso é interessante para ter para as últimas semanas quando for necessário. Entendeu?

Fabio: Cinco dias antes da edição.

Faisal: Essa campanha, nós vamos precisar de uma imagem. Isso é importante. O Angelo vai me ajudar a pegar e vai dar muita confusão. Mas eu falo assim, se necessário, se necessário, para contrapor que invente na última hora. Tem que ter um banquinho de dados Fabio: Pra mim gerar esse tipo de imagem, o senhor tem ideia do tipo de roupa que ele estava naquele? Faisal: mas tem que cuidar…

Fabio: Eu tenho que ter uma imagem referente à época aqui em questão. Porque agora causa envelhecimento. A pessoa muda. Pode ser uma contraprova de qualquer coisa. Pegar uma imagem do senhor 20 anos atrás, e acusar o senhor de um crime 20 anos atrás, vai ter vazão, vai ter credibilidade. Se eu pegar uma imagem do senhor agora e ele fizer um crime de 20 anos atrás, então eu vou ter que buscar uma referência à época, descrever o que que é, porque isso eu coloco tudo no prompt de comando. Entendeu? Um prompt de comando é uma descrição sistemática para a inteligência artificial entender o que eu quero.

Faisal: Busca uma imagem do Giovani Feltes, homem público e o nosso alvo tem que ser dinheiro em cima de uma mesa, Por que isso? Tá junto de alguém ligado a uma empreiteira.

Fábio: Eu preciso de todos esses dados. Não escreve no digital. Manda um papel pra mim. Entendeu? Manda um digital. Não manda nada no digital. Manda um papel. Manda um papel, manda um papel. Um papel aleatório, qualquer. Sabe? Escreve ali, ponto um, ponto dois, ponto três, ponto quatro. Ver o que quer, coloca na ordem certa, eu meto tudo isso aí, eu crio o prompt de comando, desenvolvo, crio Faisal: Eu vou tentar achar alguma imagem de alguma empreiteira no município.

Fábio: Vendi meu ônix agora nas eleições. Porque eu fiquei com medo de algo de passado. Sabe? Entendeu? É complicado, né? Sabe? É complicado.

 

Posteriormente, teria havido outro encontro no Comitê Central de Campanha de Faisal, no dia 02.9.2024, assim transcrito na petição inicial:

Fábio: Não podemos falar muito alto aqui, hein? Opa! Ó, eu separei umas imagens... Da dos 20 anos, mais ou menos. Faisal: Uhum. Fabio: Hum? Faisal: Essa aí é mais atual. Fabio: Essa aqui? É. Aqui...

Faisal: Essa é a mais antiga. Fabio: Tá .E a roupa? Uma jaqueta preta? Aham. Faisal: Aham? E ele não usa mais. Tá usando muita coisa azul claro. Camisa azul claro. Fabio: Tá. Faisal: Camisa azul claro. Fabio: Tá. E a mesa de madeira? O senhor tá falando de uma mesa de madeira. Essa mesa de madeira... Onde é que é essa sala? Faisal: Mesa de madeira? Fábio: O senhor disse numa mesa? Uma mesa? Porque é o seguinte... Pra aparecer valores, tem que colocar a quantidade de valores. Ali pra contar. Minha ideia é que conte valor. Faisal: não era uma escrivaninha? Fabio: Ó, essa aqui... Essa aqui também do Giovani. Ó. O que o senhor acha? Faisal: Essa aqui é a mais antiga, mas ela é boa. E a gente tá retrocedendo.

Fabio: Porque assim, eu vou ter que rendenizar todo o processo. Eu vou ter que dar um corpo. Entendeu? Busquei muitas imagens na internet. Busquei e assim fiz. Madrugada trabalhando. Aqui... Faisal: nós temos que ter uma dele secretário da fazenda. Pois é. Aqui. Faisal: na Assembleia, como era deputado estadual. Fabio: Tá próximo, né?

Faisal: Só que tem que ser uma coisa atrelada ao município.

Fabio: Sim, não, mas o cenário esquece. O cenário se monta. Entendeu? Eu vou pegar... Mudou muito a prefeitura? O gabinete?

Faisal: Cara, eu acredito que sim, eles pintaram tudo de azul.

Fabio: Antes, que cor era antigamente?

Faisal: Ela tinha uma pintura na cor... Ocre. Um marrom, uma amarela. Antigamente, tá? Fabio: E o senhor lembra a empreiteira que era? Nome? Faisal: Brasfalto… Não sei se existe ainda.

Fabio: Aqui ó. Que legal. Pois é, tem que pensar. Tem que ser... Sem lacunas. Fabio: Entendeu? Faisal: Brasfalto.

Fabio: Essa aqui então já... Essa aqui tá morta. Essa aqui o senhor disse que tá mais próxima. Até aqui só bota um corpo.

Faisal: Essa aí tá mais próxima.

Fabio: Tá. Eu peguei aqui porque tá o outro aqui do lado. E essa aqui também?

Faisal: Também, essa é mais antiga.

Fabio: E aqui também? Daí eu pego os perfis de costas.

Faisal: É que eu só (inaudível).

Fabio: Não, mas aqui não vai ter (inaudível) aqui. Não, sim. É só pra pegar a estrutura, a estrutura corporal. Você já viu o filme de Vingadores? Que o bicho fez tudo aí? Superman voando? Não? Nunca viu o filme do super-homem?

Faisal: Não, isso sim. Fabio: Os caras não parecem que tá lá mesmo. Esse é o CGI. Entendeu? Eu pego uma pessoa do CGI. Remodelo ela, toda ela. E transformo ela em vida. Joga pra inteligência artificial. Ela é da vida. Entendeu? A pessoa como se estivesse caminhando na rua normalmente. Esse é o processo CGI. Tá? Tá bom? Faisal: Tá bom. Fábio: Aqui ó, minha filha fazendo vídeo. Então tá beleza. Pra quando é que o senhor quer esse vídeo? Faisal: Se conseguir aí nos 10 dias tá ótimo. Nos 10 dias, tá? Eu faço todo o processo, monta essa aula. O senhor só me diz a quantidade de valor que o senhor quer que eu coloque pra ele. Que ele tá pegando, contando. Faisal: O ideal é que fosse tantos macinhos. Macinhos. Borrachinhas.

Fabio: Sim. Tá, mas é tipo assim, eu tenho que ter uma quantidade. Porque cada macinho... Exemplo assim ó, tem que ser notas mais ou menos atuais. Assim, ou mais da época, entendeu? Porque elas mudaram, né? Não pode ter nota de... Nota de 100, né? 50. Faisal: Nota de cem. Fabio: Isso é todos os detalhes, entendeu? São detalhes que sempre tem que ser pensados, né? Não pode ser detalhes que tipo, ah, a nota aqui é dúvida. Entendeu? Eu tenho que pegar notas. Faisal: Eu pesquiso a nota de 100, quando é que saiu.

Fabio: Hum. Tá, aqui, eu redenizo aqui. Redenizo aqui. Redenizo aqui. Ele era gordo? Faisal: Ele já teve altos e baixos, mas nada de gordo. Era mais forte, né?

Fabio: Conseguir uma estrutura, sabe assim? Que o senhor me entende, pra não fugir.

Faisal: Ele sempre, fisicamente, ele é grande, né?

Fabio: Porque eu não tenho, eu não... Eu não sei, eu tenho que... Onde é que eu resgato um vídeo, um acervo? Entendeu? Tem que ter um... Sabe, se tivesse um vídeo, um acervo... Melhor ainda.

Faisal: Tu já foi nas fotos dele?

Fabio: Entrei lá, é só coisa atual. Porque é remoldado pela campanha. O máximo que eu consegui buscar foi isso aqui.

Faisal: Eu acho que eu tenho em casa alguma coisa de campanha dele.

Faisal: Dele? Do passado?

Faisal: É na época que a Suzana... Deve ter sim, tá bom. Vou fazer então. Fábio: tá, eu vou fazer então.

Faisal: Deve ter sim tá. Fabio: Tá bom então.

Faisal: (inaudível)

Fabio: Eu te aviso que eu vou... Eu vou... Dar bastante trabalho, mas... Tá bom. Vamos aí, cara. Tá bom? Obrigado.

Fabio: Deus abençoe todos nós

 

Embora a prova tenha sido produzida por meio de captação ambiental clandestina, o Magistrado a quo considerou as gravações lícitas, sob o fundamento de que "inexistentes elementos a corroborar a ilicitude da gravação realizada, já que ocorrente em local público, sem acesso vedado e ausente situação em que o representado pudesse concluir ou acreditar estar em ambiente de privacidade".

Com efeito, no julgamento do RE n. 1.040.515 (Tema n. 979), em 26.4.2024, o Supremo Tribunal Federal assentou a tese de que "são ilícitas as gravações ambientais clandestinas no âmbito do direito eleitoral, salvo se autorizadas judicialmente, ou realizadas em local aberto, desde que não haja qualquer controle de acesso".

As gravações em tela estão amoldadas à exceção da regra da ilicitude da gravação ambiental realizada sem o conhecimento de um dos interlocutores e sem autorização judicial.

O primeiro encontro ocorreu em um estabelecimento comercial aberto ao público (cafeteria), sendo perceptível na gravação a existência de um fluxo de pessoas e vozes ao fundo. Da mesma maneira, a reunião ocorrida nas dependências do Comitê de Campanha deu-se em um espaço sem controle de acesso, e não em sala reservada ou ambiente fechada, pois os próprios interlocutores ressaltam entre si a necessidade de se falar baixo, ante a possibilidade de outras pessoas acessarem o local.

Durante a oitiva judicial, Faisal confirmou que o segundo encontro ocorreu no "diretório de campanha", dizendo que "foi 5 ou 10 minutos, o diretório estava cheio, o pessoal estava tirando materiais, não dei a atenção devida, acho, que ele imaginava" (ID 45834887), o que corrobora natureza pública do local.

Cabe ressaltar que a questão atinente à eventual violação à intimidade ou quebra de expectativa de privacidade não foi sequer suscitada pelos investigados em alegações finais ou nas contrarrazões ao recurso, de modo que o tópico está superado.

A impugnação à prova está fundada no argumento de indícios de induzimento e de parcialidade na ação de Fábio Rocha e na suposta manipulação dos vídeos, "com supressão e inserção de trechos, além da possível utilização de recursos de separação de áudio para modificar diálogos".

Ouvido em juízo, Faisal confirmou que os encontros com Fábio Rocha ocorreram. Relata que, em agostou ou setembro de 2023, procurou Fábio para o serviço de montagem de um computador e que, pago o serviço, o equipamento nunca foi entregue. Disse que, em abril de 2024, foi procurado por Fábio para a devolução do dinheiro, quando combinaram pela restituição em espécie em uma cafeteria dentro do Mercado Schneider (ID 45834878). Relatou que, no encontro, Fábio afirmou que perdeu o dinheiro e perdeu na aduana as peças que seriam utilizadas para a montagem do computador, passando a perguntar sobre a campanha e a demonstrar recursos de inteligência artificial com o seu celular (IDs 45834879 e 45834880). Faisal reconheceu que se interessou sobre o assunto e prosseguiu perguntando sobre as possibilidades daquela tecnologia (ID 45834881).

Perguntado sobre os aspectos essenciais da conversa apresentada como prova, incluindo as referências à camisa de Giovani Feltes, à sua imagem de 20 anos atrás e à discussão sobre o cenário com notas de R$ 100,00 em uma mesa, Faisal confirmou tais diálogos, asseverando que tudo ocorreu em um contexto de curiosidade, pois não produziu, não mandou produzir e não remunerou ninguém para tanto (IDs 45834882 e 45834883). O depoente também admitiu que perguntou se seria possível criar materiais com imagens passadas de Giovani Feltes, questionando: "e se a gente pudesses voltar ao passado, é possível?", quando passaram a conversar sobre exemplos de situações (45834884). Admitiu, também, que cogitou utilizar a possibilidade da tecnologia como um "soldado de reserva", tendo em consideração diversos fatos supostamente ilícitos e não esclarecidos envolvendo o seu adversário (IDs 45834885 e 45834886).

Na audiência, enfatizou, também, que o depoimento de Fábio no Ministério Público demonstra que houve uma "armação muito grande" para prejudicá-lo, envolvendo outras pessoas, tais como a chefe de gabinete do prefeito Giovani, Beatriz Fagundes, e o vereador Joceli, ressaltando que Fábio foi cargo de confiança do prefeito Feltes. Declara que não usou nem mandou fazer o material e que tudo foi uma armação premeditada passo a passo (IDs 45834888 e 45834889).

Assim, a despeito das sustentadas manipulações e cortes nos vídeos apresentados pelos demandantes, o que não restou comprovado por perícia, o próprio recorrido Faisal não nega os aspectos essenciais dos diálogos relatados na peça inicial. Contudo, alega que a conversa se deu no plano da curiosidade e da cogitação, uma vez que não produziu e não mandou produzir o material.

Tal circunstância e a ausência de impugnação específica aos trechos reproduzidos na exordial autoriza o conhecimento da prova, apesar de os arquivos digitais dos diálogos gravados não estarem juntados dentro do sistema de processo eletrônicos, mas em nuvem de arquivos compartilhados na internet (Google Drive).

Ouvido na sede do Ministério Público Eleitoral, Fábio se identificou como engenheiro de software e narrou que foi buscado por Faisal para a produção do vídeo. Apontou que "o que ele queria era impossível", mas que "deu corda" para que ele "se respingasse", a fim de levar ao conhecimento do Ministério Público. Enfatizou que começou a "dar corda, dar gás para ele", "para que ele liberar as informações que eu queria que liberasse". Questionado pela Promotora de Justiça se confirmou que iria fazer o vídeo, Fábio respondeu que não, que disse que "iria ver a melhor forma, para poder dar vazão para ele". Ressaltou que não fez o vídeo (IDs 45834821 a 45834823).

Assim, os diálogos transcritos nos autos e os depoimentos de Faisal e Fábio revelam tratativas em torno da confecção de um vídeo artificialmente manipulado, inclusive com referência expressa à inserção do adversário em situações supostamente ilícitas, como o manuseio de elevadas cifras em espécie recebidas de empreiteira, mediante a utilização de ferramentas de inteligência artificial generativa, além de discussões sobre contexto, figurino e ambientação da cena.

Todavia, constata-se a inexistência de qualquer prova da efetiva produção, difusão ou utilização de qualquer peça de deepfake.

Também não se observa comprovação mínima de que tenha havido alguma retribuição ou promessa de retribuição, de qualquer espécie, pela tarefa, que não foi sequer iniciada pelo suposto contratado.

A responsabilização por abuso de poder político ou uso indevido dos meios de comunicação exige a comprovação de atos concretos revestidos de gravidade e de repercussão apta a comprometer a paridade de armas no pleito.

A ação fundada em abuso de poder não se presta a sancionar intenções, ideações ou hipóteses não concretizadas, ainda que perversas e bastante reprováveis sob a ótica da moral comum.

A jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral tem reiteradamente afirmado que a caracterização do abuso de poder exige "que a gravidade dos fatos seja comprovada de forma robusta e segura a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo)" (Agravo em Recurso Especial Eleitoral n. 060098479, Acórdão, Min. Floriano De Azevedo Marques, Publicação: DJe - Diário de Justiça Eletrônico, 31.5.2024).

No caso em exame, a divulgação do material é elemento essencial, pois somente a partir dela seria possível aferir a dimensão da gravidade do fato. Não há conteúdo a ser examinado e nem a demonstração de disseminação mínima, seja para um grupo restrito de dirigentes partidários, seja para grandes veículos de comunicação social, seja para o eleitorado em geral. 

Conquanto se reconheça a gravidade potencial do uso de tecnologias de manipulação audiovisual no processo eleitoral, é imprescindível a demonstração inequívoca da sua repercussão sobre a legitimidade do pleito, sob pena de se instaurar um regime de responsabilização por meras intenções.

Ademais, o art. 9º-C da Resolução TSE n. 23.610/19, incluído pela Resolução n. 23.732/24, veda expressamente a "utilização" de conteúdo fabricado ou manipulado com potencial para comprometer a lisura do pleito:

Art. 9º-C É vedada a utilização, na propaganda eleitoral, qualquer que seja sua forma ou modalidade, de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

§ 1º É proibido o uso, para prejudicar ou para favorecer candidatura, de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake). (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

§ 2º O descumprimento do previsto no caput e no § 1º deste artigo configura abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, acarretando a cassação do registro ou do mandato, e impõe apuração das responsabilidades nos termos do § 1º do art. 323 do Código Eleitoral, sem prejuízo de aplicação de outras medidas cabíveis quanto à irregularidade da propaganda e à ilicitude do conteúdo. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

No presente caso, é incontroverso que não houve utilização ou uso de qualquer conteúdo manipulado ou sintético, circunstância que afasta a incidência da norma e impede o reconhecimento de ilícito eleitoral, pois os fatos não ultrapassaram o plano da intenção e da abstração. 

De seu turno, o recorrente defende que “o recorrido Faisal somente não teve em mãos o vídeo que desejava e não o publicou pois Fabio desistiu de cometer a conduta, por medo”. A alegação, porém, não se confirma a partir do conjunto probatório produzido. 

Ocorre que Fábio Rocha declarou, perante o Ministério Público Eleitoral, que jamais teve intenção de realizar o vídeo, tendo apenas “dado corda” ao interlocutor para que este se “respingasse”, com o objetivo de levar os fatos ao conhecimento das autoridades, afirmando expressamente: “O que ele queria era impossível”; “Comecei a dar corda, dar gás para ele”; para que ele “se respingasse”, “para que ele liberar as informações que eu queria que liberasse”; “Disse que iria ver a melhor forma, para poder dar vazão para ele” (IDs 45834821 a 45834823). 

Essas declarações evidenciam que não houve sequer início de execução dos atos preparatórios e que o interlocutor técnico agiu como mero agente provocador, sem qualquer intenção de realizar o objeto da conversa, tornando impossível a consumação do ilícito nas circunstâncias retratadas nos autos. 

A ausência de qualquer entrega de conteúdo, promessa de pagamento ou movimentação concreta para a produção do vídeo reforça que os fatos permaneceram no plano da mera cogitação, que, juridicamente, não embasa a responsabilização eleitoral. 

Por fim, quanto ao pedido dos recorridos de condenação do recorrente por litigância de má-fé, entendo que não se encontram presentes os requisitos legais para aplicação da penalidade.

A litigância de má-fé exige demonstração clara de dolo processual, conduta temerária ou alteração consciente da verdade dos fatos (art. 80 do CPC). Ainda que a pretensão dos autores se revele improcedente, a tese jurídica nele sustentada encontra respaldo em indícios mínimos e no desvalor do tema tratado nas conversas captadas, bem como se trata de matéria envolvendo a manipulação de conteúdos digitais por meio de inteligência artificial generativa (deepfakes), que ainda desafia a tutela eleitoral em sociedades democráticas contemporâneas.

É da própria essência da jurisdição que a parte possa submeter ao crivo do Judiciário teses jurídicas novas ou ainda em consolidação, sobretudo em matéria marcada por inovações tecnológicas que demandam interpretação jurisprudencial em construção. Punir o exercício do direito de ação, nesse contexto, equivaleria a inibir o debate jurídico em área de fronteira do Direito Eleitoral.

Assim, ausentes elementos que demonstrem alteração dolosa da verdade, uso abusivo do processo ou intuito de causar dano à parte adversa, afasto o pedido de condenação do recorrente por litigância de má-fé.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO, preliminarmente, de ofício, pela extinção do processo sem resolução de mérito em relação à COLIGAÇÃO UMA CAMPO BOM DE TODOS, por ilegitimidade passiva, com fundamento no art. 485, inc. VI, do CPC; e, no mérito, pelo desprovimento do recurso, bem como pelo indeferimento do pedido de condenação do recorrente por litigância de má-fé.