MSCiv - 0600489-57.2024.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 24/10/2024 às 14:00

VOTO

Conforme relatado, a Coligação impetrante requereu a cassação de decisão prolatada pelo Juízo da 161ª Zona Eleitoral de Porto Alegre, que indeferiu a liminar na representação RP 0600060-92.2024.6.21.0161, que buscava a proibição de veiculação da propaganda, tida por irregular, de autoria da COLIGAÇÃO ESTAMOS JUNTOS, PORTO ALEGRE, por meio de inserções em rádio com os seguintes dizeres:

“A Mariazinha esqueceu quem criou o mensalão.

A Mariazinha esqueceu que existiu o petrolão.

Mas a gente não esquece da lista da Odebrecht, nem daquele companheiro da cueca com dinheiro.

A Mariazinha tentou falar em corrupção, mas esqueceu que o PT

nesse assunto, é campeão.

Coligação Estamos Juntos Porto Alegre, MDB/PL/PP/PSD,

Solidariedade, Podemos e Republicanos.”

Preliminarmente, a COLIGAÇÃO ESTAMOS JUNTOS, PORTO ALEGRE suscita o não cabimento do mandamus, por entender que a concessão liminar da segurança representou, em realidade, reforma da decisão de primeiro grau, sem o manejo do recurso competente, previsto no art. 22 da Resolução 23.608/2019, o que ofenderia a Súmula 22 do Tribunal Superior Eleitoral, segundo a qual “Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial recorrível, salvo situações de teratologia ou manifestamente ilegais".

Por isso, registro que, nos termos do já apreciado na decisão monocrática proferida por este Juízo, somente em situações excepcionais de manifesta abusividade, teratologia ou ilegalidade, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral admite a impetração de mandado de segurança contra decisão interlocutória, conforme prevê o enunciado da Súmula n. 22 do TSE.

Estabelecidas essas premissas, tenho que o ato atacado constitui-se em flagrante ilegalidade, merecendo, por conseguinte, o conhecimento do mandado de segurança e, por via de consequência, o afastamento da preliminar suscitada.

A controvérsia dos autos consiste, portanto, em aferir se há teratologia, ilegalidade ou abusividade na decisão liminar prolatada pelo Juízo a quo que concluiu não haver, prima facie, no jingle produzido pela COLIGAÇÃO ESTAMOS JUNTOS PORTO ALEGRE, configuração de propaganda eleitoral negativa ou eventual ofensa à honra ou imagem da candidata MARIA DO ROSÁRIO.

Inicialmente, nos exatos termos da decisão prolatada pelo digno Magistrado a quo, e no mesmo sentido do parecer do douto Procurador Regional Eleitoral, não identifico na aludida propaganda argumentação relacionada à divulgação de fato sabidamente inverídico, sendo as manifestações relativas a acontecimentos pretéritos imputados ao Partido dos Trabalhadores, a apoiadores ou agentes envolvidos nas situações narradas.

Não se conformam tais assertivas em ataques pessoais à candidata MARIA DO ROSÁRIO, tampouco em fatos sabidamente inverídicos, visto serem de amplo conhecimento da sociedade.

Ademais, conforme já discorrido na decisão monocrática que deferiu a tutela de urgência, consigno que, de longa data, o TSE firmou entendimento de que, para fins de propaganda eleitoral, a informação falsa é aquela que se evidencia de plano, incontroversa e inconteste, e que a reprodução de informações que levem a situações, ainda que controversas, não são taxadas imediatamente de falsas.

Lembro, ainda, que esta Casa, para esta eleição, assentou que “Afirmações duras e críticas veiculadas no contexto de disputa política, desde que não configuradas como fato sabidamente inverídico ou ofensivo à honra, estão protegidas pela liberdade de expressão e não justificam a concessão de direito de resposta” (TRE/RS, REl n. 0600021-62, Relator Desembargador Eleitoral Nilton Tavares da Silva, publicado em sessão, 17.9.2024). Nesse ponto, não há reparos à decisão do Magistrado a quo, ao entender que os fatos narrados não são imputados diretamente à candidatada adversária e podem ser mais bem avaliados quando do estabelecimento do devido contraditório.

Entretanto, repisando o que já foi dito na liminar proferida, tenho que a decisão impugnada não observa a legislação ao não valorar adequadamente a existência de eventual conteúdo sexista e misógino na inserção.

Ao analisarmos a inserção, que nomina a candidata MARIA DO ROSÁRIO como “Mariazinha”, vê-se possível caráter discriminatório em razão de gênero, ao se tratar a adversária com reducionismo.

Peço vênia para discordar da conclusão alcançada pelo sempre diligente Procurador Regional Eleitoral que, alinhado ao Excelentíssimo Magistrado a quo, considerou não ser possível inferir do contexto de embate qualquer manifestação misógina, de incitação ao ódio ou ofensivo à honra da candidata, ou qualquer prática de assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça no jingle impugnado.

Não desconheço o teor do decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.451, a qual declarou inconstitucionais os incs. II e III (em parte) do art. 45, da Lei n. 9.504/97 que vedavam a realização de sátira a candidatos. Nesse sentido, “o direito fundamental e a liberdade de expressão não se direcionam somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias” (STF, ADI n. 4451/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 06.3.2019).

A decisão objeto do mandamus declara, nesse sentido, que se vislumbra, tão somente, “um desconforto e um descontentamento com relação ao conteúdo do jingle, que remete, de forma irônica, eventualmente debochada, mas não agressiva ou claramente ofensiva, a fatos passados, relacionados ao partido ao qual filiada a representante”.

Entretanto, a utilização da sátira, do humor ou do deboche nas campanhas eleitorais deve ser cercado de responsabilidade e cuidado, a fim de se garantir o respeito à imagem e à dignidade dos adversários, bem como não poder servir de guarida para a propagação de discurso odioso ou preconceituoso. Em tal perspectiva, é válido rememorar a declaração de voto da Excelentíssima Ministra Carmen Lúcia na RP TSE n. 0601146-52.2022.6.00.0000/DF, Relator: Ministro Carlos Horbach, ressalvando que “cada vez mais, as palavras têm se transformado em espaços de ação política a suscitar mais e mais ódios, experiências gravíssimas na sociedade”.

Em especial, qualquer forma de humor ou sátira que desmereça ou ridicularize a condição feminina em si deve ser rechaçada, tendo em vista que a proteção e a promoção da dignidade da mulher no espaço político é um imperativo que deve ser respeitado por todos os agentes envolvidos no processo eleitoral, garantindo-se uma disputa justa e equitativa entre os gêneros.

É justamente por se entender relevante, aos olhos do legislador pátrio, estabelecer condições para mitigar a distorção histórica e sistêmica com relação à sub-representação feminina na política que a política de cotas para a participação feminina na política brasileira começou a ganhar maior destaque. A promulgação da Lei n. 9.504/97, introduziu a necessidade de assegurar uma representatividade mínima de 30% das candidaturas para o sexo feminino nas eleições proporcionais, refletindo um avanço significativo no reconhecimento da desigualdade de gênero na política. A Resolução n. 23.373/11 do TSE reforçou essa obrigatoriedade, determinando que os partidos políticos apresentassem, no mínimo, 30% de candidaturas femininas, além de prever sanções para aqueles que não cumprissem essa exigência.

A política de cotas foi aprofundada com a Lei n. 13.165/15, que trouxe modificações no sistema eleitoral e aumentou a exigência para que os partidos, ao promoverem suas candidaturas, garantissem uma distribuição mais equilibrada entre os gêneros. Essa lei possibilitou, ainda, a criação de mecanismos de incentivo à participação feminina, como a destinação de parte do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para campanhas de candidatas. Essa mudança no arcabouço legal demonstra um compromisso robusto com a equidade de gênero, buscando não apenas assegurar vagas em disputa, mas garantir condições materiais para essas candidaturas.

O aperfeiçoamento desse sistema de proteção à participação política feminina, seja pela edição das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral e por reiteradas decisões no âmbito da Justiça Eleitoral, têm contribuído para a consolidação da política de cotas como um meio eficaz de fomentar e consolidar a participação das mulheres na política.

No entanto, para além do estabelecimento de diretrizes para a aplicação das cotas, seja no âmbito da obrigatoriedade de um quantum mínimo de candidaturas em disputa, ou da destinação recursos financeiros para campanhas ou para o fomento da promoção e conscientização da participação feminina pelos partidos políticos, há a necessidade de manutenção de um ambiente político mais inclusivo.

Aproveito para rememorar a fala do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Luís Roberto Barroso, quando da solenidade de instalação do Comitê de Enfrentamento à Fraude à Cota de Gênero do TRE-RS, ocorrida recentemente, em 01.7.2024. Nas palavras do Ministro Barroso, "a história da condição feminina tem sido marcada por uma luta contínua contra a discriminação. A sub-representação feminina na política, não é apenas um reflexo da desigualdade de gênero, mas também contribui para perpetuar a sua continuidade".

Como dito, garantir que mulheres participem ativamente do processo eleitoral vai além da reserva de candidaturas e de recursos financeiros. É preciso romper com um ambiente marcado pela desigualdade, pela discriminação e pela violência em todas as suas variantes.

Na mesma senda, vale trazer a lume o “Guia Mulheres na Política”, lançado pelo Tribunal Superior Eleitoral, pela bancada feminina do Congresso Nacional, pela empresa Meta e pela organização Women’s Democracy Network (disponível em https://www.tse.jus.br › comunicacao › noticias),

Destaco desse Guia a seguinte passagem:

“O direito das mulheres de viver uma vida política sem violência inclui:

a) Ser livre de todas as formas de discriminação no exercício de seus direitos políticos.

b) Ser livre dos padrões estereotípicos de comportamentos e de práticas políticas, sociais e culturais baseadas em conceitos de inferioridade”.

Nesse sentido, a Resolução TSE n. 23.610/19 é objetiva ao dar especial tratamento às mulheres no que concerne a reprimir propaganda eleitoral que deprecie a condição feminina:

Art. 22. Não será tolerada propaganda, respondendo a pessoa infratora pelo emprego de processo de propaganda vedada e, se for o caso, pelo abuso de poder (Código Eleitoral, arts. 222, 237 e 243, I a X; Lei nº 5.700/1971; e Lei Complementar nº 64/1990, art. 22): (Redação dada pela Resolução nº 23.671/2021)

I - que veicule preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, cor, idade, religiosidade, orientação sexual, identidade de gênero e quaisquer outras formas de discriminação, inclusive contra pessoa em razão de sua deficiência (Constituição Federal, art. 3º, IV e art. 5º, XLI e XLII; Lei nº 13.146/2015). (Redação dada pela Resolução nº 23.671/2021)

(...)

XII - que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia. (Incluído pela Resolução nº 23.671/2021)

Recordo, também, que a Lei n. 14.192/21 foi editada com o fim de prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher. A norma, dentre outras providências, alterou o Código Eleitoral, incluindo no rol das propagandas que não podem ser toleradas, a depreciação da condição feminina e prescrevendo o crime de stalking político-eleitoral contra a mulher. Leia-se:

“Art. 243. Não será tolerada propaganda:

X – que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia.”

“Art. 326-B. Assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar, por qualquer meio, candidata a cargo eletivo ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com a finalidade de impedir ou de dificultar a sua campanha eleitoral ou o desempenho de seu mandato eletivo.

Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.”

Como se observa, as candidatas e detentoras de cargo eletivo têm especial proteção normativa, sendo vedada a ridicularização, a degradação, a depreciação e o menosprezo da condição feminina durante a campanha eleitoral e no exercício do mandato eletivo.

No caso dos autos, a redução do nome da candidata, em fala musicada jocosa, claramente produz o efeito de “diminuir” e depreciar a sua condição de mulher.

A linguagem é uma ferramenta poderosa que molda percepções e comportamentos. O uso de diminutivos, quando não apropriados diretamente pela pessoa, utilizados em contextos de grande concorrência, podem reforçar estereótipos para perpetuar a ideia de que mulheres são menos respeitáveis ou capazes. Isso se alinha a estigmas que historicamente têm limitado o papel das mulheres em várias esferas, como no trabalho e na política.

A perspectiva de gênero nas campanhas eleitorais deve ser encarada como um reflexo dos avanços sociais. O uso de humor que contribua para a objetificação ou desvalorização da mulher não deve ser apenas desaprovado, mas também coibido por meio de mecanismos legais eficazes.

Ademais, não há na decisão ora combatida qualquer menção de sua valoração quando à observância do protocolo de julgamento sob perspectiva de gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que visa alcançar a superação dos percalços que impossibilitam a percepção de uma igual dignidade entre mulheres e homens, em todos os cenários e, especialmente, no que é pertinente à esta Justiça Especializada, a manutenção de um cenário de disputa eleitoral livre da violência de gênero.

A este propósito, cabe trazer a lume recente julgamento do Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.107, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), julgada em 23 de maio de 2024, com relatoria da Ministra Carmen Lúcia.

Ao julgar a Ação, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, fixou, por unanimidade, a tese de que é inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e também de demais crimes de violência contra a mulher, englobando também casos de violência doméstica e política, ficando vedada, então, eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou ao modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais.

Dessa forma, mais uma vez pedindo vênia a entendimento contrário, tenho por merecer ser mantida definitivamente a tutela liminar deferida.

Diante do exposto, VOTO por superar a preliminar de não conhecimento do mandamus suscitada pela COLIGAÇÃO ESTAMOS JUNTOS, PORTO ALEGRE e, no mérito, por CONCEDER A SEGURANÇA e confirmar definitivamente a liminar que cassou a decisão de ID 124752476, prolatada na representação n. 0600060-92.2024.6.21.0161.