RecCrimEleit - 0600072-93.2020.6.21.0049 - Voto Relator(a) - Sessão: 09/09/2024 às 14:00

VOTO

Trata-se de recurso interposto pelo Ministério Público Eleitoral em face da sentença que absolveu Pedro Roni Marques (vulgo “Sabão” ou “Sabonete”) da acusação de transporte ilegal de eleitores em razão de não haver prova do dolo específico exigido pelo tipo do art. 11, inc. III, da Lei n. 6.091/74 (sentença, ID 45657160).

Conforme consta dos autos, foi comprovado que entre setembro e outubro de 2008, nas vésperas da eleição municipal, o recorrido contratou uma empresa de ônibus para realizar o transporte de moradores da Serra Gaúcha para o Município de São Gabriel.

As testemunhas confirmaram ter viajado no ônibus, o qual foi abordado pela Polícia Rodoviária Federal, tendo sido demonstrado que a organização da viagem e do transporte foi efetuada por Pedro, o qual pagou a quantia de R$ 1.130,00 pela excursão. Segundo os depoimentos colhidos, o recorrido sempre organizou excursões partindo da serra gaúcha para São Gabriel, em feriados prolongados e datas comemorativas.

A sentença julgou improcedente a denúncia com base na falta de provas da finalidade eleitoral da conduta, de acordo com os seguintes fundamentos:

(…)

Resta, por fim, analisar o dolo específico, exigido pelo tipo penal.

A conformação da conduta ao tipo penal do transporte irregular de eleitores exige não apenas a presença do elemento "fornecimento de transporte a eleitores" mas, também, da finalidade de aliciar eleitores, conspurcando o livre exercício do voto, conforme reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS. CRIME ELEITORAL. ART. 11, III, DA LEI N° 6.091, DE 15.08.74, COMBINADO COM OS ARTS. 81 e 10 DA MESMA LEI E COM O ART. 302 DO CÓDIGO ELEITORAL. Figura delituosa que não se perfaz tão-somente com o elemento - fornecimento de transporte" - exigindo, por igual, "a promoção de concentração de eleitores, para o fim de impedir, embaraçar ou fraudar o exercício do voto", aspecto que constitui elementar do ilícito descrito no art. 302 do Código Eleitoral, ao qual faz remissão o referido ad. 11 da Lei n° 6.091/74. Decisão que se afastou dessa orientação. Habeas corpus deferido. (HC 734-24, redator para acórdão Mm. lImar Galvão, DJ de 20.6.1997.)

No mesmo sentido, cito jurisprudência recente do TSE:

ELEIÇÕES 2018. AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. CRIME ELEITORAL. TRANSPORTE IRREGULAR DE ELEITORES. ART. 11, III, C/C OS ARTS. 5º E 10, DA LEI Nº 6.091/1974. ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ESPECIAL FIM DE AGIR. DOLO ESPECÍFICO. CONTEXTO FÁTICO. ELEMENTOS SUFICIENTES. DESARMONIA DO ACÓRDÃO REGIONAL COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO INTERNO. 1. Trata-se de agravo interno interposto contra a decisão unipessoal que deu provimento ao recurso especial do MPE para reformar o acórdão regional que havia absolvido o agravante da imputação do crime de transporte irregular de eleitores, previsto no art. 11, III, c/c os arts. 5º e 10 da Lei nº 6.091/1974. 2. A adequação típica da conduta ao crime do art. 11, III, c/c os arts. 5º e 10 da Lei nº 6.091/1974, exige, além do dolo genérico de realizar o verbo núcleo do tipo - transportar eleitores -, o elemento subjetivo especial do injusto, um especial fim do agir que consiste na finalidade de cooptar o voto do eleitor, violando-se o livre exercício do sufrágio. Precedente. 3. Esse especial fim de agir pode ser inferido do contexto em que ocorre a conduta, por meio de raciocínio dedutivo, realizado segundo a previsão do art. 239 do CPP. Precedentes. 4. De acordo com a jurisprudência do TSE, as circunstâncias de o transporte ter sido fornecido com o intuito de viabilizar o voto, de ter sido realizado pedido expresso de apoio ao candidato de preferência do transportador e da presença, em abundância, no veículo, de material de campanha - todos presentes, na espécie - autorizam a conclusão pela existência do especial fim de agir exigido pelo crime em questão. 5. As conclusões do aresto regional que, no caso concreto, apesar da presença desses indícios, não reconheceu a presença de elementos suficientes para a verificação do especial fim de agir, se encontram em desarmonia com a jurisprudência desta Corte. 6. Negado provimento ao agravo interno. (Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 9326, Acórdão, Min. Mauro Campbell Marques, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 26/08/2022). (Grifei.)

Pois bem.

Analisando as provas constantes nos autos, entendo que não ficou comprovado que no curso do transporte de eleitores tenha havido aliciamento, que o seu traslado tenha sido vinculado à obtenção de votos em favor de determinada candidatura ou mesmo que tenham eles sido expostos a material de propaganda eleitoral capaz de causar alguma influência nas suas vontades.

Ademais, nenhuma das testemunhas ouvidas, tanto na fase policial como judicial do processo, afirmou ter presenciado alguma forma de pedido de votos ou distribuição de material de campanha relacionado a algum candidato. As testemunhas que falaram sobre eventual custeio da viagem por candidatos, afirmaram que não sabiam sequer quem seria o candidato e que o próprio réu PEDRO RONI não sabia informar exatamente quem teria custeado a viagem.

Não obstante a conjectura de que no momento do desembarque os passageiros poderiam ser informados sobre a finalidade eleitoral da viagem, tal circunstância não ocorreu, não havendo nenhuma comprovação de que efetivamente houve ou haveria o aliciamento de eleitores para votarem em um candidato específico.

A testemunha GUILHERME MEDEIROS, que denunciou o fato à polícia, relatou em juízo (ID 119560000) que a viagem estaria sendo custeada pelo candidato da oposição ao partido do qual ele atuava como advogado, mas não há nos autos provas suficientemente robustas que sustentem essa afirmação, apenas indícios e circunstâncias que levam a conjecturas a respeito da finalidade da viagem em questão.

Registro, por fim, que o fato da viagem ter sido custeada por alguém, por si só, não caracteriza o delito em questão, exigindo-se, como já referido anteriormente, o dolo específico, consistente na finalidade de cooptar o voto do eleitor, violando-se o livre exercício do sufrágio, o que não restou suficientemente comprovado nos autos. Sequer restou comprovado o envolvimento de algum candidato, partido político ou coligação partidária na organização ou no custeio da viagem.

III – DISPOSITIVO:

ANTE O EXPOSTO, por ausência de comprovação suficiente acerca do dolo específico exigido pelo tipo penal em questão, JULGO IMPROCEDENTE a ação e ABSOLVO o réu PEDRO RONI MARQUES das acusações que lhe são impostas, com base no inciso VII do art. 386 do CPP c/c o art. 364 do Código Eleitoral.

Em suas razões, o Ministério Público Eleitoral entende suficientemente demonstradas a autoria e a materialidade delitivas, e defende a ausência de causas excludentes da ilicitude ou da culpabilidade capazes de afastar o sancionamento penal.

Segundo o recorrente, não está contida no tipo penal a necessidade de envolvimento de partidos ou de candidatos e, embora não exista prova do benefício direto para candidaturas, o transporte ilegal de eleitores está comprovado, sendo suficiente para a condenação a promoção do transporte de pessoas em condições de exercer o direito de voto no final-de-semana das eleições (razões recursais, ID 45657165).

Consigno que não houve contrarrazões ao recurso apesar de regular intimação (certidão, ID 45657170).

Sobre as razões de reforma da decisão, conforme pondera a Procuradoria Regional Eleitoral, o ponto principal para o deslinde do feito é verificar a necessidade de comprovação de dolo específico para a configuração do crime previsto no art. 5°, c/c o art. 11, inc. III, da Lei n. 6.091/74:

Art. 5º Nenhum veículo ou embarcação poderá fazer transporte de eleitores desde o dia anterior até o posterior à eleição, salvo:

(...)

Art. 11. Constitui crime eleitoral:

(...)

III - descumprir a proibição dos artigos 5º, 8º e 10º;

Pena - reclusão de quatro a seis anos e pagamento de 200 a 300 dias-multa (art. 302 do Código Eleitoral);

(...)

A propósito, o próprio recurso informa que não há nos autos a comprovação de que o recorrido tenha recebido benefício de partido ou de candidato (razões recursais, ID 45657165, p. 3).

Ocorre que, ao contrário do que defende o órgão ministerial no recurso, o entendimento da sentença acompanha a diretriz doutrinária e jurisprudencial no sentido de que, para a caracterização do tipo, deve haver prova “não apenas do traslado realizado mas, igualmente, da respectiva interferência ou influência na vontade do eleitor mediante a indução ou mero sugestionamento de voto para um determinado candidato ou partido”, consoante lição de Rodrigo López Zilio:

A jurisprudência tem acentuado que o crime de transporte de eleitores exige uma finalidade eleitoral específica para sua configuração, consistente na prova do aliciamento dos eleitores. Conforme o TSE, ‘o delito tipificado no art. 11, inciso III, da Lei nº 6.091/1974 dirige-se a inibir o aliciamento impeditivo da escolha livre do candidato’ (AgR-REspe nº 1171014/MG – j. 23.11.2016 – DJe 16.02.2017). Daí que não basta apenas a prova de que houve o transporte de eleitores (requisito objetivo), sendo indispensável a comprovação de que esse transporte teve por finalidade o aliciamento do voto desses eleitores (requisito subjetivo). Nesta linha, conclui-se que o crime de transporte irregular de eleitores exige o dolo específico, consistente no aliciamento de eleitores em favor de determinado candidato, partido ou coligação. O TSE já acentuou que ‘para a configuração do crime previsto no art. 11, III, da Lei nº 6.091/74, há a necessidade de o transporte ser praticado com o fim explícito de aliciar eleitores’ (REspe nº 21.641/PI – j. 19.05.2005 – DJ 05.08.2005).

Com efeito, a Corte Superior tem destacado que ‘a conformação da conduta ao tipo penal do transporte irregular de eleitores exige não apenas a presença do elemento ‘fornecimento de transporte a eleitores’, mas, também, da finalidade de aliciar eleitores, conspurcando o livre exercício do voto’ e, assim, ‘para a comprovação do dolo não basta conjecturar acerca do benefício auferido’ mas ‘é necessário apontar elementos concretos que evidenciem a atuação com a finalidade de aliciar eleitores’ (AgR-REspe nº 133/RJ – j. 12.09.2017 – DJe 29.09.2017).

(…)

Para fins de aferição do elemento subjetivo de aliciamento no crime de transporte irregular de eleitores importa demonstrar, por exemplo, além da apreensão do veículo, a quantidade de pessoas transportadas, a condição de eleitores (porte de título de eleitor ou outros dados eleitorais), a existência de propaganda no interior do veículo ou de adesivos nos vidros, a presença de pessoas que conduzem esses eleitores e possuam alguma espécie de vínculo com partido ou candidato, além de verificar quem é o responsável pela contratação do referido veículo. Desse modo, o elemento subjetivo do tipo de aliciamento, no crime de transporte irregular de eleitores, deve ser demonstrado a partir não apenas do traslado realizado mas, igualmente, da respectiva interferência ou influência na vontade do eleitor mediante a indução ou mero sugestionamento de voto para um determinado candidato ou partido.

(ZILIO, Rodrigo López. Direito Eleitoral – 9ª ed., São Paulo : Editora JusPodivm, 2023, p. 1037-1038).

Como se vê, é firme o entendimento de que não basta a certeza do fato e o conhecimento da sua autoria para a conformação da tipicidade do delito em análise, pois há necessidade de prova do especial fim de agir, a finalidade de influenciar artificialmente a vontade do eleitor. Esse elemento subjetivo não encontra lastro nos autos.

No caso concreto, após detida análise do caderno probatório, não há como afastar a conclusão da Juíza Eleitoral no sentido de que “nenhuma das testemunhas ouvidas, tanto na fase policial como judicial do processo, afirmou ter presenciado alguma forma de pedido de votos ou distribuição de material de campanha relacionado a algum candidato. As testemunhas que falaram sobre eventual custeio da viagem por candidatos, afirmaram que não sabiam sequer quem seria o candidato e que o próprio réu PEDRO RONI não sabia informar exatamente quem teria custeado a viagem”.

Da análise dos autos, concluo que andou bem a magistrada sentenciante ao considerar por demais frágil o depoimento da testemunha Guilherme Neves Medeiros, o qual reportou o fato narrado na denúncia à polícia e afirmou que a viagem estaria sendo custeada por um candidato. Examinado o testemunho em questão verifica-se que a versão está apoiada em meras conjecturas apresentadas pelo próprio depoente sobre a finalidade da viagem (testemunho, ID 45657107).

Ademais, foi bastante demonstrado que não apenas no final de semana das eleições como também em feriados e outras datas de celebração o recorrido realiza o mesmo tipo de transporte de passageiros.

Noto, também, que, durante a instrução do inquérito não se apreendeu propaganda eleitoral quer no interior do ônibus, quer na posse dos eleitores transportados (inquérito, ID 45656917).

Consoante bem fundamentado na sentença, muito embora comprovado o fato e a sua autoria, não há prova nos autos de “que no curso do transporte de eleitores tenha havido aliciamento, que o seu traslado tenha sido vinculado à obtenção de votos em favor de determinada candidatura ou mesmo que tenham eles sido expostos a material de propaganda eleitoral capaz de causar alguma influência nas suas vontades”.

A acusação, a meu ver, fundamenta-se na presunção de que Pedro Roni Marques estaria agindo com propósito eleitoral, mas esta inferência não é suficiente para fundamentar o juízo condenatório na seara criminal.

Contudo, apesar do inconformismo recursal entendo que não se revela comprovado o especial fim de agir consistente na finalidade de cooptar o voto do eleitor. Com isso, à luz dos princípios constitucionais que regem o Direito Penal, diversamente do que postula o recorrente eventual dúvida sobre o elemento volitivo do tipo milita in dubio pro reu.

Assim, entendo correto o raciocínio de que não há provas sólidas, seguras e concretas acerca da presença do elemento subjetivo do tipo, afeto ao aliciamento de eleitores por intermédio do seu transporte.

Com idêntica conclusão, a Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se pelo desprovimento do recurso, uma vez que, conforme raciocínio da sentença, não foi comprovado o elemento subjetivo do tipo necessário para a procedência da denúncia, consistente no dolo específico de cooptação de votos. Nesse ponto, o parecer ministerial reporta-se à precedente desta Corte (parecer, ID 45662544):

Recurso criminal. Transporte irregular de eleitores. Art. 11, inc. III, da Lei n. 6.091/74. Eleições 2010. Improcedência da denúncia. Ausência de prova suficiente para condenação. Reconhecida a ocorrência do fato e da autoria, mas não comprovada a existência do elemento subjetivo do tipo, consistente na vontade de aliciar os eleitores transportados. Para a caracterização do delito não basta a mera ação objetiva de transportar eleitor. Necessário o dolo específico, qual seja, a obtenção de vantagem eleitoral, o que inexistente na espécie. Provimento negado. (TRE/RS. Recurso Criminal 521239/RS, Relator Desembargador Eleitoral Jorge Alberto Zugno, Publicação: DEJERS, 05/11/2013, pag. 3)

Por conseguinte, em linha com a manifestação da Procuradoria Regional Eleitoral, tem-se que a acusação “não logrou êxito em comprovar que o transporte foi realizado visando o aliciamento de eleitores, na captação de voto, na finalidade de impedir ou embaraçar o exercício do direito de sufrágio ou no auferimento de qualquer outra vantagem eleitoral em razão da carona”.

Dessarte, é caso de manutenção da absolvição com fundamento no art. 386, inc. VII, do Código de Processo Penal - não existir prova suficiente para a condenação - , afastando-se a incidência do inc. III - não constituir o fato infração penal –, devido à existência de dúvida sobre a intenção da conduta do acusado.

Ante o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso para manter a sentença absolutória em favor de PEDRO RONI MARQUES com fundamento no art. 386, inc. VII, do CPP.