REl - 0600679-49.2024.6.21.0055 - Voto Relator(a) - Sessão: 13/09/2024 00:00 a 23:59

VOTO

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento.

No mérito, a questão cinge-se à apuração da condição de analfabeto ou não do candidato.

A Constituição Federal, art. 14, § 4º, determina serem inelegíveis os analfabetos:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

§ 4º – São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos.

 

Na seara infraconstitucional, a Lei Complementar n. 64/90 reproduz aquele comando, em seu art. 1º, inc. I, al. “a”.

Por sua vez, a Resolução TSE n. 23.609/19, que dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos para as eleições, ao seu turno, arrola, no art. 27, os documentos que deverão ser apresentados por ocasião do requerimento do registro de candidatura, dentre eles o comprovante de escolaridade:

Art. 27. O formulário RRC deve ser apresentado com os seguintes documentos anexados ao CANDex:

(…)

IV - prova de alfabetização;

 

Ora, o comando do art. 14, § 4º, da Constituição Federal é nitidamente restritivo de direitos fundamentais, uma vez que limita o pleno exercício da cidadania ao determinar que os analfabetos são inelegíveis, merecendo, portanto, interpretação estrita.

Pretendesse o Constituinte afastar os cidadãos pouco alfabetizados do processo de disputa eleitoral, poderia estabelecer, a título de exemplo, um grau mínimo de escolaridade como condição de elegibilidade.

Conforme o clássico escólio de José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo. 43ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2020, p. 385):

O princípio que prevalece é o dá plenitude do gozo dos direitos políticos positivos, de votar e ser votado. A pertinência desses direitos ao indivíduo, como vimos, é que o erige em cidadão. Sua privação ou restrição do seu exercício configura exceção àquele princípio. Por conseguinte, a interpretação das normas constitucionais ou complementares relativas aos direitos políticos deve tender à maior compreensão do princípio, deve dirigir-se ao favorecimento do direito de votar e ser votado, enquanto as regras de privação e restrição hão de entender-se nos limites mais estreitos de sua expressão verbal, segundo as boas regras de hermenêutica.

Grifei.

 

Exatamente por isso, a ausência do comprovante de escolaridade poderá ser suprida por declaração de próprio punho do pré-candidato, nos termos do § 5º do art. 27 da Resolução TSE n. 23.609/19:

Art. 27. (...).

§ 5º A prova de alfabetização de que trata o inciso IV pode ser suprida por declaração de próprio punho preenchida pela(o) interessada(o), em ambiente individual e reservado, na presença de servidora ou servidor de qualquer Cartório Eleitoral do território da circunscrição em que a candidata ou o candidato disputa o cargo, ainda que se trate de eleições gerais.

 

Assim, o teste de alfabetização abre possibilidade para que seja afastada a inelegibilidade daquele candidato que não logre juntar documento hábil à comprovação de escolaridade.

Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral. 7ª ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 238-239) leciona que apenas o totalmente analfabeto deve ter sua capacidade eleitoral passiva restringida, e não o semialfabetizado:

Não existe um conceito legal de analfabeto no ordenamento jurídico. Diante da interpretação restrita das normas limitativas de direitos fundamentais e adotado o regime democrático representativo, que objetiva assegurar uma ampla participação política na formação da vontade estatal, apenas a pessoa totalmente analfabeta deve ter negado o seu ius honorum. Desse modo, para fins eleitorais, analfabeto é aquele que não consegue exprimir um sentido mínimo às palavras escritas ou lidas e não possui capacidade de compreender o teor de um texto singelo. É relevante, no entanto, distinguir a situação jurídica do analfabeto e do semialfabetizado: àquele, nega-se a capacidade eleitoral passiva, que é permitida a este último. Consoante Távora Niess (2000, p. 110), ‘assim como o alfabetizado é aquele que sabe ler e escrever, analfabeto é a pessoa totalmente desprovida desses conhecimentos. Consequentemente, quem tem tímidas noções de escrita e/ou da leitura, quem lê, embora com dificuldade, mas quem consegue apreender o sentido de um texto simples, quem escreve mal, com muitos erros de grafia, conseguindo, entretanto, expressar um sentimento lógico, não é analfabeto e, portanto, tem direitos políticos plenos”. Nessa quadra, tem sido admitida a elegibilidade do analfabeto funcional – que não possui habilidade mínima na interpretação de textos e não consegue obter um desejável desenvolvimento profissional ou pessoal, embora com capacidade de leitura de palavras simples e frases curtas.

 

Adriano Soares da Costa, no mesmo sentido, ensina que o grau de alfabetização a ser exigido do candidato é mínimo, apenas para afastar a hipótese de analfabetismo total:

Há, na aplicação do signo, em casos concretos, a necessidade de ponderações e temperanças com vista à finalidade da sua exigência: a obtenção do direito de ser votado. Por isso, necessário levar em consideração alguns aspectos importantes: (a) toda análise dos eleitores, quanto ao seu grau de alfabetização, deve ser feita individualmente, caso por caso; b) o grau de alfabetização exigido é mínimo, apenas o necessário para que se afaste a hipótese de analfabetismo total, porquanto é inelegível o analfabeto, não o semi-analfabeto; (c) deve-se dar atenção à leitura, mais do que a escrita, pois mais importa ao mandatário a compreensão do texto já escrito, do que escrevê-lo (até porque outros poderão escrever para ele, ao passo que a leitura feita por outros acarreta maiores dificuldades e perigos).

(Instituições de Direito Eleitoral – 6ª ed. rev. Ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 162 e 163) Grifei.

 

No caso concreto, a declaração de próprio punho (ID 45695950) apresentada pelo recorrente demonstra o mínimo de escrita, o que não seria alcançado por pessoa analfabeta, propriamente dita.

Agrego que, consultando-se o cadastro eleitoral, mediante uso do sistema ELO, verifica-se que, relativamente ao eleitor, consta, no campo “instrução”, a locução “ensino fundamental incompleto”.

Evidencia-se, portanto, que esta Justiça Eleitoral, ao longo do tempo, tem reconhecido o eleitor como alfabetizado, tanto para o exercício da capacidade eleitoral passiva quanto no que tange à obrigatoriedade do voto.

A situação posta nos autos não é, portanto, de analfabetismo. O recorrente logrou afastar a inelegibilidade constante no artigo 14, § 4º, da Constituição Federal, através do preenchimento de declaração de próprio punho, na presença de servidora do Cartório Eleitoral, consoante disposição do § 5º do art. 27 da Resolução TSE n. 23.609/19.

Na jurisprudência, o Tribunal Superior Eleitoral é firme no sentido de que uma interpretação rigorosa quanto ao quesito alfabetização dificultaria a ascensão política de minorias e excluiria importantes lideranças do acesso a cargos eletivos:

DIREITO ELEITORAL E CONSTITUCIONAL. RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. INELEGIBILIDADE. ANALFABETISMO. DEFICIENTE VISUAL. ART. 14, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. DIREITO FUNDAMENTAL À ELEGIBILIDADE. PROVIMENTO.

Questão de Ordem

(...)

3. Recursos ordinários em face de acórdão regional que indeferiu o pedido de registro do candidato, deficiente visual, por considerar ausente a comprovação de alfabetização em braille, embora tenha apresentado declaração de escolaridade de próprio punho.

4. As causas de inelegibilidade, dentre as quais se inclui o analfabetismo previsto no art. 14, § 4º, da CF/1988, devem ser interpretadas restritivamente. Precedentes.

5. A interpretação do art. 14, § 4º, da CF/1988 não pode ignorar a realidade social brasileira, de precariedade do ensino e de elevada taxa de analfabetismo, que alcança, ainda, cerca de 7% da população brasileira. Interpretação rigorosa desse dispositivo, além de violar o direito fundamental à elegibilidade e os princípios democrático e da igualdade, dificultaria a ascensão política de minorias e excluiria importantes lideranças do acesso a cargos eletivos.

6. A aferição da alfabetização deve ser feita com o menor rigor possível. Sempre que o candidato possuir capacidade mínima de escrita e leitura, ainda que de forma rudimentar, não poderá ser considerado analfabeto para fins de incidência da inelegibilidade em questão. Precedentes.

7. Além disso, deve–se admitir a comprovação dessa capacidade por qualquer meio hábil. O teste de alfabetização, contudo, somente pode ser aplicado: (i) sem qualquer constrangimento; e (ii) de forma a beneficiar o candidato, suprindo a falta de documento comprobatório, vedada a sua utilização para desconstituir as provas de alfabetização apresentadas.

8. No caso, o candidato, com deficiência visual adquirida, comprovou sua alfabetização por meio de declaração de escolaridade de próprio punho, firmada na presença de servidor da Justiça Eleitoral. Ficou demonstrado, portanto, que possui capacidade mínima de leitura e escrita.

9. Não há que se exigir alfabetização em braille de candidato deficiente visual para fins de participação no pleito. Para promover o acesso das pessoas com deficiência aos cargos eletivos, deve–se aceitar e facilitar todos os meios, formas e formatos acessíveis de comunicação, à escolha das pessoas com deficiência.

Conclusão

10. Recurso a que se dá provimento para deferir o pedido de registro de candidatura.

(Recurso Ordinário n. 060247518, Acórdão, Relator Min. Luís Roberto Barroso, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data: 18.9.2018) (Grifei)

 

RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2016. VEREADOR. REGISTRO DE CANDIDATURA. ANALFABETISMO. ART. 14, § 4º, DA CF/88. INTERPRETAÇÃO EM CONFORMIDADE COM OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, EM ESPECIAL DA ISONOMIA (ART. 5º, CAPUT E I), DA CIDADANIA (ART. 1º, II) E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA (ART. 1º, III). GRUPOS MINORITÁRIOS. LEGITIMIDADE. PARTICIPAÇÃO NA VIDA POLÍTICA. MANUTENÇÃO DA CANDIDATURA. DESPROVIMENTO.

Histórico da Demanda

1. Trata-se de pedido de registro de candidatura de Francisco José de Araújo ao cargo de vereador de São Gonçalo do Piauí/PI nas Eleições 2016.

2. Em primeiro grau, indeferiu-se o registro ao fundamento de que o candidato é analfabeto, não preenchendo o requisito previsto no art. 14, § 4º, da CF/88.

3. O TRE/PI reformou sentença e assentou estar comprovada condição de alfabetizado.

4. Contra tal acórdão, o Parquet interpôs recurso especial. O Analfabetismo à Luz de Princípios Constitucionais e do Direito das Minorias de Participar da Vida Política

5. "São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos" (art. 14, § 4º, da CF/88).

6. A leitura de referido preceito não pode ocorrer de forma dissociada do cenário social e político de nosso País, indeferindo-se, indistintamente, todo e qualquer registro de candidatura que em tese se enquadre nessa hipótese, sob pena de incompatibilidade de ordem absoluta com o quadro valorativo principiológico que orienta o texto da Constituição Federal de 1988.

7. A cidadania e a dignidade da pessoa humana constituem princípios fundamentais da República Federativa do Brasil - art. 1º, II e III, da CF/88 - e devem compreender, como uma de suas acepções, inserção plena na vida política.

8. O princípio da isonomia (art. 5º, caput e I) materializa direito fundamental de tratamento distinto aos desiguais, na medida de sua distinção, visando atingir status de igualdade substancial e efetiva entre todos.

9. Os grupos minoritários existentes em nosso País, que ainda são, de forma sistêmica e contínua, excluídos dos mais diversos setores - com destaque para negros, índios, portadores de necessidades especiais e mulheres (estas, embora maioria em sentido populacional, não o são no aspecto político) - não podem ser alijados do cotidiano político brasileiro com base em justificativa genérica e linear de analfabetismo.

10. Cabe à Justiça Eleitoral, como instituição imprescindível ao regime democrático, protagonismo na mudança desse quadro, em que as minorias possuem representatividade quase nula, eliminando quaisquer obstáculos que as impeçam de participar ativa e efetivamente da vida política.

11. No ponto, registrem-se julgamentos recentes em que esta Corte vem atuando com rigor para modificar esse cenário: REspe 243-42/PI (combate à fraude em cota de gênero em candidaturas) e REspe 123-67/RS (garantia de espaço às mulheres na propaganda partidária).

12. No tocante, de modo específico, à causa de inelegibilidade do art. 14, § 4º, da CF/88, seu exame em conjunto com os valores constitucionais acima retratados levam a concluir que analfabetismo de natureza educacional não pode e nem deve, em nenhuma hipótese, significar analfabetismo para vida política, sob pena de nova exclusão das minorias - desta vez do direito ao exercício do jus honorum.

13. Em suma, democracia que exalta, em ditames constitucionais, direitos à isonomia, à cidadania e à dignidade da pessoa humana não pode deixar de assegurar a grupos minoritários presença e representatividade no cenário político.

Caso dos Autos

14. O recorrido, de cor negra, completou o primeiro ano do ensino fundamental e, ademais, conforme bem assentado pelo e. Ministro Henrique Neves, é incontroverso que assinou Requerimento de Registro de Candidatura (fl. 2), Declaração de Entrega de Certidões (fl. 3), Declaração de Bens (fl. 4), procuração e, por fim, ata da audiência designada para aferir sua escolaridade, constando do acórdão regional essas premissas fáticas.

15. No que concerne especificamente ao instrumento procuratório, haveria incongruência em admitir-se a assinatura aposta pelo candidato - para prática dos atos previstos no art. 105 do CPC/2015 - e, ao mesmo tempo, assentar-se que ele não consegue expressar sua vontade.

16. Conclusão em sentido diverso demandaria, na hipótese, reexame de fatos e provas, providência inviável em sede extraordinária, a teor da Súmula 24/TSE.

Conclusão

17. Recurso especial a que se nega provimento, mantendo-se deferido o registro de candidatura de Francisco José de Araújo ao cargo de vereador de São Gonçalo do Piauí/PI nas Eleições 2016.

(Recurso Especial Eleitoral n. 8941, Acórdão, Relatora Min. Luciana Lóssio, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data: 27.9.2016.) Grifei.

 

No mesmo sentido, colho o entendimento deste Tribunal:

RECURSO. REGISTRO DE CANDIDATURA. CARGO VEREADOR. ELEIÇÕES 2020. INDEFERIMENTO. AFASTADA A PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. MÉRITO. CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE. PROVA DE ALFABETIZAÇÃO. RESOLUÇÃO TSE N. 23.609/19. PREENCHIDA CONDIÇÃO DA NORMA REGENTE. REFORMA DA SENTENÇA. DEFERIDO REGISTRO DE CANDIDATURA. PROVIMENTO.

1. Insurgência contra a decisão do juízo a quo, que indeferiu pedido de registro de candidatura ao cargo de vereador em razão da ausência de prova de alfabetização.

2. Matéria preliminar afastada. Cerceamento de defesa. 2.1. Ausente previsão legal de que a alfabetização seja aferida por profissional da área de pedagogia, bastando seja demonstrada por certificado de conclusão de cursos escolares ou, na sua ausência, nos moldes previstos no § 5º do art. 27 da Resolução TSE n. 23.609/19. Na espécie, além da apresentação de declaração de próprio punho, considerada insatisfatória, foi providenciado teste de alfabetização, requerido pelo Parquet, e realizado sob a avaliação do Chefe de Cartório. Portanto, ausente cerceamento de defesa. Ademais, o recurso colocado à disposição das partes para suprir eventual omissão do sentenciante, os embargos declaratórios, não foi interposto, restando preclusa a matéria. 2.2. Ausência de intimação para oferecimento de alegações finais. Ainda que não tenha sido formalmente aberta vista dos autos para alegações finais, sua finalidade – manifestação sobre as provas produzidas na fase instrutória, foi alcançada pela contestação apresentada.

3. O art. 27, § 5º, da Resolução TSE n. 23.609/19 disciplina o registro de candidatura para o pleito deste ano, e determina que o documento apto a suprir o comprovante de escolaridade é a “declaração de próprio punho preenchida pelo interessado, em ambiente individual e reservado, na presença de servidor de qualquer Cartório Eleitoral do território da circunscrição em que o candidato disputa o cargo, ainda que se trate de eleições gerais”. Contudo, a causa de inelegibilidade posta na Constituição Federal, neste aspecto, é o analfabetismo, não o semianalfabetismo e, sendo regra restritiva, não pode ter o seu alcance ampliado pelos intérpretes jurídicos. O Tribunal Superior Eleitoral é firme no sentido de que uma interpretação rigorosa quanto ao quesito alfabetização dificultaria a ascensão política de minorias e excluiria importantes lideranças do acesso a cargos eletivos.

4. No caso concreto, a declaração de próprio punho apresentada demonstra o mínimo de escrita, o que não seria alcançado por pessoa analfabeta, propriamente dita. Portanto, inexistindo nos autos outras notícias de inelegibilidade e restando preenchidas as condições de elegibilidade, impõe-se a reforma da sentença que indeferiu o registro de candidatura.

5. Provimento. Deferido o registro de candidatura.

(Recurso Eleitoral n 0600360-06, ACÓRDÃO de 19.10.2020, Relator Des. Armínio José Abreu Lima da Rosa.) Grifei.

 

Assim, inexistindo nos autos outras notícias de inelegibilidade e restando preenchidas as condições de elegibilidade, conforme se extrai da informação juntada pelo cartório eleitoral (ID 45695953), deve ser reformada a sentença que indeferiu o registro de candidatura do recorrente.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo provimento do recurso, para deferir o registro de candidatura de NELSON DA ROSA REIS ao cargo de vereador do Município de Rolante nas eleições de 2024.