REl - 0600064-11.2024.6.21.0071 - Voto Relator(a) - Sessão: 06/09/2024 às 14:00

 

VOTO

O recurso é tempestivo, pois interposto no prazo de um dia, insculpido no art. 22 da Resolução TSE n. 23.608/19, e merece conhecimento por atender aos demais pressupostos relativos à espécie.

No mérito, o recurso insurge-se contra sentença que julgou improcedente representação proposta por LUIZ ARIANO ZAFFALON e LEVI LORENZO MELO, ocupantes dos cargos de vice-prefeito e secretário de saúde no Município de Gravataí e pré-candidatos (à época), respectivamente, aos cargos de prefeito e vice-prefeito no pleito municipal de 2024, em desfavor de PAULO RICARDO PEREIRA DA SILVEIRA, vereador e candidato à reeleição, pela prática de deepfake que veiculou propaganda eleitoral extemporânea negativa.

A representação traz, à análise da Justiça Eleitoral, publicação realizada na plataforma Instagram do representado, consistente em fundo musical de popular dupla de palhaços (Patati e Patatá), acompanhada de imagem dos representantes LUIZ e LEVI caracterizados como palhaços, por meio de montagem e texto sob o título “O CAOS NA SAÚDE VIROU PALHAÇADA”. Reproduzo a postagem objeto da controvérsia:

 


 

 

 

 

A sentença hostilizada entendeu como inexistente a prática de deepfake, bem como não configurada a propaganda eleitoral antecipada, conforme excerto que transcrevo:

Adiro à bem lançada manifestação do Ministério Público, no sentido de que, “embora seja de muito mau gosto a imagem inserida com a mensagem, podendo inclusive repercutir em reparação de danos morais no âmbito cível, não se trata de deepfake, mas sim de tosca montagem”. Nesse contexto, não entendo que a postagem pode aguçar reações instintivas do eleitorado, tampouco induzir a algum condicionamento psicológico.

Ademais, sequer está claro que se trata de propaganda eleitoral, pois quem está a veiculá-la é pessoa investida em mandato eletivo, inclusive com imunidade parlamentar, pelo que faz parte de sua atribuição o posicionamento pessoal sobre questões políticas, em ordem a incidir o disposto no art. 36-A da Lei 9504/97.

 

À análise, em separado, das situações alegadamente irregulares, quais sejam, deepfake (forma) e propaganda antecipada negativa (conteúdo).

1. Deepfake. A questão da forma.

Com o aperfeiçoamento da tecnologia da informação, a humanidade tem testemunhado, especialmente nos últimos 30 anos, verdadeiras revoluções. Todas as áreas de conhecimento do ser humano – desde a engenharia e suas vertentes, passando pelas ciências médicas, as ciências humanas e sociais – passaram a experimentar as modificações cada vez mais aceleradas que o mundo digital tem proporcionado e, em muitos casos, compelido a utilizar.

A internet – um dos grandes vetores dessa revolução – é também o maior dos exemplos. No que toca ao mundo jurídico, é certo que legisladores, operadores do direito e magistrados são, com frequência, desafiados por novas tecnologias – as quais, muito embora sejam bem-vindas, frequentemente são objeto de má utilização –, no caso do Direito Eleitoral, regula o tema recente modificação trazida pela Resolução TSE n. 23.732/24, conforme se verá.

E com as deepfakes não tem sido diferente. Conforme a Encyclopedia Britannica, o termo deepfake é composto por duas palavras em inglês: deep, que se refere à inteligência artificial, um aprendizado automático composto por vários níveis de processamento; e fake, que se refere à falsidade do material obtido como resultado.

Ou seja, trata-se de conteúdo em áudio ou vídeo, digitalmente manipulado por Inteligência Artificial, consubstanciando uma tecnologia usada para criar vídeos falsos, porém bem realistas, com pessoas fazendo coisas que nunca fizeram de verdade ou em situações que nunca presenciaram. O algoritmo utiliza IA para manipular imagens de rostos e criar movimentos, simulando expressões e falas.

E os recorrentes pretendem, com o provimento do recurso, a caracterização do art. 9º-C e do art. 10 da Resolução TSE n. 23.610/19 ao caso dos autos (imagem acima).

O texto legal é o seguinte:

Art. 9º-C É vedada a utilização, na propaganda eleitoral, qualquer que seja sua forma ou modalidade, de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024) § 1º É proibido o uso, para prejudicar ou para favorecer candidatura, de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake). (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

 

Art. 10. A propaganda, qualquer que seja sua forma ou modalidade, mencionará sempre a legenda partidária e só poderá ser feita em língua nacional, não devendo empregar meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais (Código Eleitoral, art. 242 , e Lei nº 10.436/2002, arts. 1º e 2º) .

§ 1º-A. A vedação prevista no caput deste artigo incide sobre o uso de ferramentas tecnológicas para adulterar ou fabricar áudios, imagens, vídeos, representações ou outras mídias destinadas a difundir fato falso ou gravemente descontextualizado sobre candidatas, candidatos ou sobre o processo eleitoral. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)

§ 2º Sem prejuízo do processo e das penas cominadas, a Justiça Eleitoral adotará medidas para impedir ou fazer cessar imediatamente a propaganda realizada com infração do disposto neste artigo, nos termos do art. 242, parágrafo único, do Código Eleitoral , observadas as disposições da seção I do capítulo I desta Resolução.

 

Aqui, entendo inviável o enquadramento como deepfake – analisando-se aqui, repito, a questão da forma, por um fundamento central: não há, claramente, uso de técnica de manipulação de mídia, o que se dirá de forma sofisticada, com a utilização de inteligência artificial, como as deepfakes. Cuida-se, forma nítida, de uma montagem grosseira, rústica, incapaz de ludibriar um eleitor que seja – pois todos possuem, no mínimo, 16 (dezesseis) anos de idade. Poderia ter sido realizada, tranquilamente, com cartolina e recortes de fotos dos recorrentes.

Nego, no ponto, provimento ao recurso.

2. Propaganda extemporânea negativa. A questão do conteúdo.

Passo ao exame do conteúdo.

E não assiste melhor sorte aos recorrentes.

Por um lado – o da educação, ou da elegância –, há plena compreensão relativamente ao mal-estar que os recorrentes possam ter experimentado ao deparar com a postagem adversária. Como já referido no primeiro grau de jurisdição – pelo Ministério Público Eleitoral e pelo Juízo de Origem –, a manifestação é de mau gosto.

Avanço, para dizer que é simplória e não agrega altura ao debate político. Forma e conteúdo se equivalem. Análises mais aprofundadas de cunho psicológico – que este magistrado obviamente não possui a capacidade de elaborar – poderiam identificar, na realidade, a qualidade dos emissores da mensagem, e não propriamente os sujeitos dela objetos.

Contudo, muito embora pudesse ter sido realizada de forma mais elegante, é certo que os dizeres carregam crítica de jaez político – no referente à gestão da saúde do Município de Gravataí. O âmbito da política tem, talvez infelizmente, algumas características que não cabem ao Judiciário regular – por ausência de autorização legislativa (ou dos próprios agentes políticos, no caso).

Nessa linha, note-se trecho de voto da Ministra ROSA WEBER perante a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Inquérito n. 3.546, aos 15.9.2015:

“(...)

Ao dedicar-se à militância política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana costuma chamar a zona di iluminabilitá, resignando-se a uma maior exposição de sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em particular, dos seus adversários (HC 78.426-6-SP, rel. min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 7-5-1999). Declarações no caso concreto compatíveis com a dialética do jogo político, limitadas ao campo das ideias, sem adjetivações nem desqualificação moral do interlocutor, e pertinentes ao ambiente eleitoral em que proferidas, a revelar atipicidade de conduta quanto aos crimes de calúnia, difamação e injúria”.

 

No mesmo sentido, decisão da Min. Cármen Lúcia em processo de pedido de direito de resposta, mas cujo item número 2 bem passa a ideia de intervenção do Poder Judiciário nas manifestações de cunho eleitoral “desagradáveis ou incivilizadas”:

REPRESENTAÇÃO ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. DIREITO DE RESPOSTA. CANDIDATO AO CARGO DE PRESIDENTE DA REPÚBLICA. AUSÊNCIA DE OFENSA À HONRA, INSERÇÕES NA PROPAGANDA ELEITORAL GRATUITA NA TELEVISÃO. FATO NOTICIADO PELA MÍDIA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO DE DIREITO DE RESPOSTA. 1. Fatos negativos noticiados na mídia não autorizam direito de resposta em caso em que não se comprove confirmar informação sabidamente inverídica. 2. No debate democrático, a veiculação de críticas incisivas, mesmo sendo desagradáveis ou incivilizadas, não autoriza o cerceamento automático ao exercício do direito à liberdade de expressão. Nos termos da legislação vigente, apenas veiculação, ainda que indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica autoriza o direito de resposta (art. 58 da Lei n. 9.504/1997). 3. No caso dos autos, não se comprova ser a mensagem veiculada sabidamente inverídica. Pedido de direito de resposta indeferido. (TSE - DR: 060088672 BRASÍLIA - DF, Relator: Min. Cármen Lúcia, Data de Julgamento: 20/10/2022, Data de Publicação: 20/10/2022)

 

Assim,  “O caos na Saúde virou Palhaçada” ou “Palhaçada na gestão da saúde de Gravataí” são afirmações que não agregam nível ao debate político, mas que igualmente não ofendem a honra ou a imagem dos candidatos recorrentes, ainda que, repito, de gosto duvidoso.

Nessa toada, o exercício da liberdade de pensamento – mesmo que raso – é dos maiores vetores de cidadania – art. 5º, inc. IV, da Constituição Federal de 1988. O ordenamento jurídico deve ser compreendido de forma sistêmica. Se até mesmo manifestações de entretenimento - humorísticas, de irreverência (muitas vezes rudes e deselegantes) - estão protegidas de censura, não poderá ser a manifestação de cunho político a espécie a ser ceifada. Note-se trecho da ementa da ADI 4.451, rel. Min. Alexandre de Moraes, julgada em 06.10.2015:

“(...) 

5. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. (...)”.

 

Nessa mesma linha é o posicionamento da d. Procuradoria Regional Eleitoral, em trecho que transcrevo:

“A publicação, em forma de sátira, é dirigida aos administradores da cidade - pessoas públicas - expostas à análise do eleitor por suas ações ou omissões, o que não pode ser objeto de cerceamento sem motivo justo e grave, sob pena de vulneração do próprio princípio democrático.”

 

Em conclusão, a sentença deve ser integralmente mantida.

Diante o exposto, VOTO para negar provimento ao recurso, nos termos da fundamentação.