RecCrimEleit - 0600011-77.2021.6.21.0057 - Voto Relator(a) - Sessão: 20/08/2024 às 14:00

VOTO

O recurso é tempestivo e atende a todos os demais pressupostos recursais atinentes à espécie, de modo que está a merecer conhecimento.

1. Questão de ordem. Casos similares e papel dos tribunais ordinários.

Eminentes Colegas, o presente recurso vem em pauta de julgamento na mesma ocasião em que outra irresignação, veiculada no processo n. 0600140-33.2021.6.21.0041, oriundo de Santa Maria/RS, tem objeto similar, em intencional inserção concomitante em pauta.

Cotidianamente, este Regional exerce uma das mais relevantes funções da instância recursal ordinária: conferir simetria às eventuais diferenças de valoração dos julgados de primeiro grau, que eventual e naturalmente ocorrem dada a riqueza de variáveis (por exemplo, apenas no estado do Rio Grande do Sul são 497 municípios).

Esse nivelamento é veiculador, ao cabo, de segurança jurídica, e confere eficácia ao art. 926 do Código de Processo Civil. A uniformidade, a coerência, a estabilidade, a integridade dos precedentes encontram primeira guarida nestas Cortes "de passagem", e não é sem motivo que o CPC indica "os Tribunais" para a tarefa.

Com essas considerações iniciais à mera guisa de esclarecimento, passo ao exame do mérito do recurso criminal interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL.

2. Mérito.

Conforme relatado, a sentença recorrida julgou improcedente a ação criminal e absolveu o réu JOÃO CARLOS DOS SANTOS da acusação de prática de difamação eleitoral, delito tipificado no art. 325 do Código Eleitoral, acompanhado de aumento de pena previsto no art. 327, inc. V, do mesmo diploma.

O Ministério Público Eleitoral atuante na origem, a 57ª Zona Eleitoral, recorre de tal decisão, ao argumento central de que o fato, de ocorrência incontroversa, amoldar-se-ia ao tipo descrito na norma.

Inicialmente transcrevo, da denúncia, a narrativa do fato delituoso:

"No dia 19 de outubro de 2020, por volta das 23h09min., utilizando- se de sua página em rede social (Facebook), o denunciado JOAO CARLOS DOS SANTOS difamou Emerson Barreto Ortiz, visando fins de propaganda eleitoral, imputando-lhe fato ofensivo a sua reputação.

 

 

 

 

Ao agir, o denunciado, utilizando-se de meio de informática, difamou o ofendido, então candidato ao cargo vereador em Uruguaiana, publicando em sua rede social a seguinte postagem: "Época de eleição é bom ver o que o candidato pensa: O Candidato Emerson, então secretário de Educação, questionado pelo Ministério Publico Federal, sobre licitação, segundo o Tribunal de Contas foi superfaturada em mais do dobro do preço de mercado disse que estava tudo bem, tudo certo. E esse candidato que você quer como representante no Legislativo?"

 

 

 

 

Assim, o objeto do presente recurso consiste em considerar como difamatória, ou não, a seguinte manifestação:

"Época de eleição é bom ver o que o candidato pensa: O Candidato Emerson, então secretário de Educação, questionado pelo Ministério Publico Federal, sobre licitação, segundo o Tribunal de Contas foi superfaturada em mais do dobro do preço de mercado disse que estava tudo bem, tudo certo. E esse candidato que você quer como representante no Legislativo?".

Colaciono, ademais, o art. 325 e o art. 327, ambos do Código Eleitoral:

Art. 325. Difamar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando a fins de propaganda, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

Pena - detenção de três meses a um ano, e pagamento de 5 a 30 dias-multa.

 

Parágrafo único. A exceção da verdade somente se admite se ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções.

Art. 327. As penas cominadas nos arts. 324, 325 e 326 aumentam-se de 1/3 (um terço) até metade, se qualquer dos crimes é cometido:

(...)

V - por meio da Internet ou de rede social ou com transmissão em tempo real.

Antecipo que o recurso não merece provimento. A sentença é, em um termo, irretocável.

Julgo, assim como o magistrado da origem, que a conduta praticada por JOÃO CARLOS é atípica, por não ser relevante no gradiente ofensivo: o conteúdo veiculado não possuiu a capacidade de atingir a honra objetiva de outrem, mormente um candidato ao cargo de vereador do Município de Uruguaiana que ocupara o cargo de Secretário Municipal de Educação (Emerson Barreto Ortiz, falecido antes da prolação da sentença) e, portanto, pessoa pública que à época dos fatos havia de estar preparada para contraposições críticas em relação aos atos praticados, conforme mais adiante será esmiuçado.

Dito de outro modo, julgo que - ainda que de maneira ácida, em crítica aguerrida - houve o levantamento de questionamentos legítimos, ínsitos ao debate eleitoral e relacionados a questões de interesse público, de modo que prefiro, na espécie, privilegiar o exercício da livre manifestação do pensamento.

Nesses termos, destaco três pontos relevantes:

1. JOÃO CARLOS, fato incontroverso, indicou (ainda que de modo genérico) fala de Emerson Ortiz em depoimento prestado perante o Ministério Público Federal, e a contrapôs ao considerado por outros órgãos de fiscalização, pois a apontada vítima afirmara que não haveria irregularidades com as licitações realizadas pela Prefeitura de Uruguaiana para a Secretaria de Educação, em que pese a constatação em sentido contrário pelo Ministério Público de Contas do Estado do Rio Grande do Sul (ID 45587776, p. 30, item 4.3.1, p. 36, item 4.3.2). Nessa linha, não o acusou de participar ou ser conivente com práticas ilícitas. Tal conclusão exigiria exercício interpretativo, que julgo inviável para fins de condenação criminal. Houve uma cobrança legítima a um agente público.

2. O recorrido já havia realizado denúncias ao Ministério Público Federal sobre irregularidades envolvendo uma empresa que participara de licitações na área da educação, as quais foram consideradas superfaturadas também pelo TCE-RS e, em razão das denúncias apresentadas, a Prefeitura de Uruguaiana passou a prestar informações ao MPF, bem como houve recomendação de nova licitação por parte do TCE-RS, pois apontado superfaturamento de R$ 77.270,9o ao término da investigação (ID 4558776, já indicado).

3. O processo n. 001661-0200/18-2 encontra-se atualmente com julgamento sobrestado perante o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul, como é possível aferir mediante pesquisa (https://portal.tce.rs.gov.br/app/pesquisa/jurisprudencia/resultados), aguardando alteração do Regimento Interno daquela Casa"quanto ao julgamento de casos concretos que envolvam o exame de constitucionalidade de lei ou ato normativo". De todo modo, a íntegra do relatório do Conselheiro Relator dá conta de apontamento relativo ao objeto da manifestação do recorrido, pois indica "4.3.1 (estimativa deficiente de preços e contratação de serviços de instalação de sistema de alarme e monitoramento em patamar superior ao de mercado - ausência de efetiva comprovação da realização de pesquisa de preços e desconsideração do preço anteriormente contratado pela Administração - R$ 77.270,91);", e o recorrido manteve as acusações mesmo após o arquivamento do expediente investigativo de parte do Ministério Público Federal, conforme bem identificado na sentença.

Ou seja, afirmações despidas de conteúdo criminalmente ofensivo, subjetiva ou objetivamente, à alegada vítima. Nitidamente, trata-se de assunto de interesse público, ainda não definitivamente julgado, envolvido em circunstâncias que, no mínimo, mereceram investigação por parte de uma série de órgãos de fiscalização, em fatos diretamente ligados à atividade de Emerson - então Secretário de Educação.

Também claro, portanto, que tal manifestação em aguerrido período eleitoral se delimitou à seara da mera crítica. Friso que o Poder Judiciário, modo geral, possui a compreensão de que a posição de pessoa pública ocupante de cargo eletivo exige maior resiliência a críticas, e a jurisprudência dos tribunais superiores vem com importantes parâmetros de julgamento em casos como o ora sob exame. Extraio trecho de voto da Ministra ROSA WEBER perante a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Inquérito n. 3.546, aos 15.9.2015, igualmente citado pela irretocável sentença:

"(...)

Ao dedicar-se à militância política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana costuma chamar a zona di iluminabilitá, resignando-se a uma maior exposição de sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em particular, dos seus adversários (HC 78.426-6-SP, rel. min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, DJ de 7-5-1999). Declarações no caso concreto compatíveis com a dialética do jogo político, limitadas ao campo das ideias, sem adjetivações nem desqualificação moral do interlocutor, e pertinentes ao ambiente eleitoral em que proferidas, a revelar atipicidade de conduta quanto aos crimes de calúnia, difamação e injúria".

 

Destaco, ademais, ser especialmente relevante a busca do teor das afirmações que tenham caracterizado difamação, para que seja operada a devida distinção.

No Tribunal Superior Eleitoral: houve condenações (a) em caso que o réu denominou de "bandido, ladrão e estelionatário" o então candidato (REspEl n. 1053, Rel. Ministro Luís Felipe SALOMÃO, ac. de 2.9.2021); (b) no precedente citado pela Procuradoria Regional Eleitoral em seu parecer, situação em que o Prefeito, candidato à reeleição, teve contra si atribuída a realização de uma obra "Símbolo Pagão, Árvore do Capeta", em clara ofensa à honra objetiva de cunho religioso (REspe n. 186819, Rel. Ministro HENRIQUE NEVES da Fontoura, ac. 6.10.2015), e (c) "mentiroso, corrupto, ladrão" (HC n. 2-75, Rel. Ministro José NÉRI DA SILVEIRA, ac. de 4.6.1997).

E o julgado deste Regional, igualmente indicado pela d. Procuradoria, tem de fato conteúdo claramente ofensivo, pois o réu declarara que "(…) pra dar um basta no salário desta vice-prefeita, que é Secretária da Assistência Social, saiu somente para distribuir cestas básicas no município (...)"(Recurso Eleitoral n. 12-55, Rel. Des. El. SÍLVIO RONALDO DE MORAES, j. em 08.5.2018, grifos meus).

Desse modo, tenho que a tutela da honra nos delitos eleitorais há de ser sopesada de forma diferida em relação aos crimes comuns, pois na fala de cunho político a liberdade de pensamento tem um dos seus maiores vetores de cidadania - art. 5º, inc. IV, da Constituição Federal de 1988. O ordenamento jurídico deve ser compreendido de forma sistêmica. Como bem referido na decisão recorrida, se até mesmo manifestações de entretenimento - humorísticas, de irreverência (muitas vezes rudes e deselegantes) estão protegidas de censura criminal, não poderá ser a manifestação de cunho político a espécie a ser ceifada. Note-se trecho da ementa da ADI 4.451, rel. Min. Alexandre de Moraes, julgada em 6.10.2015:

"(...)

5. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. (...)".

 

Aliás, tal interpretação das balizas jurisprudenciais encontra eco na melhor doutrina. Na lição de Luiz Carlos Gonçalves:

"(...)

É de interesse público que o debate eleitoral seja o mais livre, franco e abrangente possível, mesmo quando fira suscetibilidades - verdadeiras ou simuladas - de quem quer que seja. Em síntese, não cabe interpretar a tutela penal da honra de modo a cercear o debate eleitoral, mesmo que veiculado em termos cáusticos e fortes. (...) Ao se candidatarem, as pessoas abrem mão de um espaço de privacidade, por se oferecerem ao escrutínio dos adversários e dos eleitores. Por igual, lançam-se num ambiente menos favorável a sensibilidades exageradas, devendo exibir tolerância a críticas, comentários desfavoráveis e exposição de fatos da vida anteacta. Imputações que na vida cotidiana seriam consideradas ofensivas, no ambiente das campanhas eleitorais devem ser sublimadas. Não é papel do Direito Penal Eleitoral cercear o direito de prestar e receber informações." (Investigação e Processo dos Crimes Eleitorais e Conexos. São Paulo: Saraiva, 2022, p.134. Livro eletrônico).

Como se percebe (e a lapidar sentença demonstrou) as ocasiões condenatórias criminais devem ser reservadas a casos bem mais graves do que o posto dos autos. Tenho, inclusive, sérias dúvidas se as afirmações da recorrente acarretariam, por exemplo, um mero direito de resposta, acaso tivesse sido realizada por adversário em horário eleitoral. Ainda que tal fundamento seja meramente elucidativo, ele bem estampa a distância do fato à tipicidade do art. 325 do Código Eleitoral.

 

Diante do exposto, VOTO para NEGAR PROVIMENTO ao recurso criminal interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, mantendo a sentença pelos seus próprios fundamentos.