REl - 0600014-53.2024.6.21.0016 - Voto Relator(a) - Sessão: 01/08/2024 às 14:00

VOTO

Trata-se de recurso interposto por MORGANA CIBERIE SAVI contra decisão do Juízo da 16ª Zona Eleitoral que determinou o cancelamento de sua filiação ao partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a validação de sua filiação ao Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB), considerando-se o cotejo das datas constantes nas fichas de filiação, respectivamente, 01.4.2024 (MDB, ID 45655205) e 02.4.2024 (PRTB, ID 45655216).

Ao seu turno, opina a Procuradoria Regional pela manutenção da sentença que, na forma do parágrafo único do art. 22 da Lei n. 9.096/95, aplicou a regra de prevalência da filiação partidária mais recente e de cancelamento das demais, consoante precedentes desta Justiça Especializada.

Contudo, este caso contém as seguintes especificidades: a) representar a ficha de ID 45655216 a única prova da filiação ao PRTB na data ajustada, com a qual a recorrente nega ter anuído; b) divergência de datas entre a constante no registro original do PRTB no sistema da Justiça Eleitoral (03.4.2024) e aquela na ficha de filiação (02.4.2024), conforme certidão de ID 45655226 e 45655227; c) a data de registro da filiação no MDB nos sistemas da Justiça Eleitoral ser a mais recente (03.4.2024) quando comparada ao lançamento efetuado pelo PRTB (02.4.2024); d) embora divergentes, todas as datas em análise apresentam pouca diferença, concentradas nos primeiros três dias de abril deste ano (1º, 02 e 03.4.2024).

Noto, por oportuno, que a ficha de filiação caracteriza, nos termos da jurisprudência pacífica, documento produzido unilateralmente incapaz de comprovar a data de filiação (nesse sentido: TRE/RS – Rel n. 1545, Relator Desembargador Federal João Batista Pinto Silveira, Publicação: DEJERS, 09.11.2018; TRE/RS – Rel n. 20230, Relator Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz, Publicado em Sessão, 17.10.2016; TSE, AgR-REspe n. 7488, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Publicado em Sessão, 29.11.2012).

Portanto, não pode a ficha de filiação, destituída de fé pública, ser considerada isoladamente para a determinação da data de filiação, devendo aferir-se o tempo de filiação também por outros elementos de convicção, de acordo como o enunciado da Súmula TSE n. 20.

Ao mesmo passo, o lançamento nos sistemas da Justiça Eleitoral efetivado pelo PRTB em 02.4.2024 nos assentos da eleitora recorrente, com filiação deferida na então futura data de 03.4.2024, representa inobservância da forma legalmente exigida para o ato de publicidade dessa filiação e causa de eventual anulabilidade desse registro. Vício que, após início desta ação anulatória, não se convalida pela simples retificação do registro, mas demanda comando judicial específico para sua correção.

A aparente desídia da grei PRTB no manuseio correto do registro eletrônico da filiação, ademais, foi certificada pela serventia cartorária: “houve erro no registro da filiação no sistema, já que deveria ter sido incluída com data de filiação de 02.4.2024, de acordo com a ficha ID 122280511, e não de 03.4.2024.” (certidão, ID 45655226, grifou-se; espelho do registro, ID 45655227).

O fato, aliás, ganha relevo jurídico, pois o registro mais recente de filiação constante do lançamento eletrônico da filiação nos sistemas da Justiça Eleitoral importa no cancelamento automático dos vínculos partidários anteriores, na forma do parágrafo único do art. 22 da Lei n. 9.096/95 e do art. 22, caput, da Resolução TSE n. 23.596/19.

Nesse ponto, a autora-recorrente refere na inicial que a ficha de filiação ao PRTB foi assinada ainda em março de 2024, antes mesmo da constituição do diretório municipal em Caxias do Sul/RS (01.4.2024, ID 45655199), fato que, pelo princípio da confiança, importaria na data real da filiação (teoria da aparência).

Reforço que a única prova de filiação apresentada pelo PRTB é a ficha com data de 02.4.2024 (ID 45655216).

Nesse sentido, ainda que se leve em conta a manifestação ministerial de que, “compulsando a ficha de filiação ao PRTB, não se constata, de plano, diferença evidente de grafia, cor ou espessura entre os demais campos preenchidos e a data da filiação. (ID 45655216)”, existe dúvida razoável quanto ao alegado preenchimento posterior da data de filiação quando consideradas a inclinação da escrita e a grafia do número “2” na referida ficha.

Esses indícios, por sua vez, geram verossimilhança no argumento de preenchimento posterior da data de filiação com quebra da boa-fé objetiva sobre a anuência da eleitora-recorrente a respeito de elemento essencial do ingresso nos quadros da grei, sugerindo dúvida razoável sobre o dia da filiação.

Assim, considerando as especificidades deste caso concreto, não havendo segurança sobre a real data de filiação, e considerando a manifestação expressa de pré-candidata ao cargo de vereador de permanecer filiada ao MDB, entendo que, a partir da ponderação dos princípios constitucionais da autonomia partidária (art. 17, § 1º, CF/88) e dos direitos fundamentais à cidadania (art. 1º, inc. II, CF/88) e à liberdade de associação (art. 5º, inc. XX, CF/88), a solução deve preservar ao máximo o exercício da capacidade eleitoral passiva da recorrente.

De outro lado, representaria possível abuso de direito a retenção de filiado contra a sua expressa vontade de deixar os quadros partidários, na medida em que é permitido aos parlamentares, inclusive, se desligarem de suas agremiações originárias para adotar novo vínculo político durante a janela partidária, sem perda do mandato eletivo, consoante o art. 22-A, inc. III, da Lei n. 9.096/95  c/c o art. 17, § 6º, da Constituição Federal.

Efetivamente, como bem ponderado pela Procuradoria Regional Eleitoral, as capturas de tela das conversas pelo aplicativo de mensagens entre os gestores da grei e a filiada recorrente foram realizadas em data posterior (08.4.2024, ID 45655212) e demonstram a ciência inequívoca dos dirigentes partidários da falta de interesse em permanecer no partido após o registro da filiação no sistema (02.4.2024).

Todavia, apesar da data, a agremiação deixou de apresentar diálogos (ou qualquer outra prova complementar) demonstrando o início do vínculo partidário da recorrente com o PRTB, principal fato em análise, motivo pelo qual se credita maior peso à declaração de ausência de anuência da filiação da recorrente na data de 02.4.2024 em detrimento do documento unilateral, ficha de filiação de ID 45655216.

A propósito, destaco o precedente do Egrégio Tribunal Superior Eleitoral, relatado pelo Exmo. Ministro Mauro Campbell Marques, no sentido de que: “Em determinados casos de contornos excepcionais, nos quais evidenciada controvérsia acerca da existência de mácula na filiação com data mais recente, decorrente de fraude ou fortes evidências de coação ou vício na vontade do eleitor, denotando possível abuso de direito, cabe uma análise cognitiva mais ampla, de modo a viabilizar o exame de circunstâncias e fatos capazes de contribuir com a formação da convicção do julgador para além da interpretação literal do disposto no parágrafo único do art. 22 da Lei nº 9.096/95.” (TSE – RespEl 0600104-65, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Publicação: DJe, 23.3.2021):

ELEIÇÕES 2020. RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE REGULARIZAÇÃO DE FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. COEXISTÊNCIA DE FILIAÇÕES COM DATAS DIVERSAS. ART. 22, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI Nº 9.096/1995. PEDIDO DE REVERSÃO DEFERIDO NAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO FILIADO. RELATOS DE FALHA NO PREENCHIMENTO DA FICHA DE FILIAÇÃO MAIS RECENTE. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO. ART. 5º, XVII, DA CF. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. 1. Na origem, o ora recorrido apresentou pedido de regularização de sua filiação ao Partido Social Democrático (PSD), efetivada em 26.3.2020, diante de certidão emitida pela Justiça Eleitoral na qual consta registro de filiação ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 4.4.2020. 2. O TRE/AL manteve a sentença que deferiu o pedido de reversão de filiação do ora recorrido ao PSD em detrimento da existente filiação ao PTB, ainda que esta última fosse a mais recente, sob os fundamentos de que: (a) o recorrido comprovou a sua pretensão de se filiar e permanecer filiado ao PSD, (b) a prova de filiação ao PTB está subsidiada apenas pela ficha de filiação partidária, com a qual o recorrido nega ter preenchido ou anuído, e (c) a manutenção da filiação do recorrido ao PTB ofenderia o seu direito à liberdade de associação (art. 5º, XVII e XX, da CF). 3. Nos termos do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 9.096/1995, "havendo coexistência de filiações partidárias, prevalecerá a mais recente, devendo a Justiça Eleitoral determinar o cancelamento das demais". Precedentes. 4. Não obstante a determinação legal acerca da prevalência da última filiação em caso de duplicidade de registro, essa compreensão deve ser aplicada na hipótese em que haja certeza quanto à higidez da última filiação. 5. Em determinados casos de contornos excepcionais, nos quais evidenciada controvérsia acerca da existência de mácula na filiação com data mais recente, decorrente de fraude ou fortes evidências de coação ou vício na vontade do eleitor, denotando possível abuso de direito, cabe uma análise cognitiva mais ampla, de modo a viabilizar o exame de circunstâncias e fatos capazes de contribuir com a formação da convicção do julgador para além da interpretação literal do disposto no parágrafo único do art. 22 da Lei nº 9.096/1995. 6. O disposto no art. 5º, XVII, da CF garante a todos a plena liberdade de associação, sendo vedada a interferência estatal, de modo que não se pode compelir quem quer que seja a se manter vinculado a determinada pessoa jurídica, no caso, a partido político. 7. Na hipótese, assentou–se a existência de mácula no vínculo partidário mais recente, decorrente de indícios de falha no preenchimento da ficha de filiação pelo PTB, aliada ao vício na vontade do eleitor, que expressou não ter pretendido ingressar no quadro de filiados do referido partido. 8. Os precedentes do TSE invocados nas razões do recurso especial não se amoldam ao caso, porquanto possuem contornos peculiares que os distinguem da controvérsia em debate. 9. Negado provimento ao recurso especial.

(TSE – REspEl 0600104-65, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Data de Julgamento: 11.02.2021, Data de Publicação: DJe, 23.03.2021.) (Grifou-se.)

 

Assim, nesse caso, a regra da prevalência da filiação mais recente deve ser temperada “em conjunto com a garantia constitucional da liberdade de associação, somente prevalecendo a interpretação literal em caso de certeza da higidez da última filiação” (TRE/MG – Rel n. 0600011-58, Relatora Desembargadora Eleitoral Patrícia Henriques Ribeiro, Publicação DJe, 28.6.2024):

RECURSO ELEITORAL. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. COEXISTÊNCIA DE FILIAÇÕES COM DATAS DIVERSAS. PEDIDO DE RETIFICAÇÃO DE FILIAÇÃO PARTIDÁRIA PARA MANUTENÇÃO DA FILIAÇÃO ANTERIORMENTE REGISTRADA. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA.Alegação da agremiação recorrente de que a filiada enviou áudio para a presidente do partido, manifestando o desejo de permanecer filiada à agremiação, e assinou ficha de filiação no último dia do prazo para a filiação partidária. Ficha de filiação que consiste em documento produzido unilateralmente, que não comprova por si só a filiação na data lá registrada. Áudio que não demonstra, de forma inequívoca, a intenção da recorrida de se filiar à agremiação. Arts. 21, V, e 22, caput, da Resolução TSE 23.596/2019, que dispõe sobre filiação partidária. Prevalência da filiação mais recente. Dispositivos que devem ser aplicados em conjunto com a garantia constitucional da liberdade de associação, somente prevalecendo a interpretação literal em caso de certeza da higidez da última filiação. Precedentes do Tribunal Superior Eleitoral. Manutenção do cancelamento da filiação mais recente e do restabelecimento da filiação anterior. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

(TRE/MG – Rel n. 0600011-58, Relatora Desembargadora Eleitoral Patrícia Henriques Ribeiro, Publicação: DJEMG, 28.06.2024.) (Grifou-se.)

 

Portanto, na presente situação, remanescendo fundada dúvida sobre a realidade do momento da filiação partidária, resolvo in dubio pro ius honorum, de forma a respeitar a máxima realização da capacidade passiva eleitoral da recorrente, decorrência direta de fundamento deste Estado Democrático de Direito, a cidadania.

Ante o exposto, VOTO pela procedência do recurso de MORGANA CIBERIE SAVI para reformar a sentença, a fim de: a) cancelar a filiação da recorrente ao Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB); e b) manter a filiação da recorrente ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em 01.4.2024.

Com o trânsito em julgado, anotações de estilo e satisfação de obrigações, arquivem-se os autos com baixa na instância pertinente.