REl - 0600938-58.2020.6.21.0128 - Voto Relator(a) - Sessão: 12/12/2023 às 09:30

VOTO

O recurso é tempestivo e, com a presença dos demais pressupostos de admissibilidade, está a merecer conhecimento.

MAGALI ROSA DOS SANTOS, candidata ao cargo de vereadora no Município de Passo Fundo/RS nas eleições 2020, apresenta irresignação contra a sentença do Juízo da 128ª Zona Eleitoral, a qual desaprovou as contas ao fundamento de (1) aportes financeiros acima do valor patrimonial declarado em registro de candidatura; (2) manejo de recursos de origem não identificada - RONI, e (3) utilização inadequada dos valores oriundos do Fundo Especial de Financiamento à Campanha - FEFC.

À análise.

1) Aporte de recursos próprios acima do valor patrimonial declarado no registro de candidatura

No momento do registro de sua candidatura, a prestadora declarou como patrimônio o valor de R$ 369,00; todavia, despendeu o total de R$ 815,00 a título de "recursos próprios" ao longo de sua campanha eleitoral, ultrapassando em R$ 446,00 o valor declarado.

Na sentença, o juízo da origem fez constar que "[...] no requerimento de registro de candidatura não é possível identificar a profissão exercida pela prestadora. Além disso, não foi apresentada documentação comprobatória da procedência e disponibilidade dos recursos doados para campanha, desse modo, essa irregularidade não deve ser afastada, configurando-se o valor de R$ 446,00 como de origem não identificada, o qual deve ser recolhido ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 32 da Resolução TSE n. 23.607/2019”.

Em suas razões recursais, a recorrente alega exercer a profissão de Pastora da Igreja Universal, de modo que auferiu os rendimentos utilizados em sua campanha eleitoral.

Antecipo que entendo por afastar a pecha de irregularidade da situação, por medida de justiça no caso concreto - ainda que a profissão indicada pela recorrente tenha sido meramente alegada, e não comprovada documentalmente.

Há precedentes deste Tribunal que indicam a pouca gravidade da presente situação - nomeadamente, os casos em que, mesmo presente a irregularidade de extrapolação dos rendimentos próprios para o autofinanciamento de campanha eleitoral, o valor nominal não ultrapasse o equivalente a 10% do "teto" de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física. O parecer Ministerial (ID 45530851) aponta julgado de relatoria do então Des. Eleitoral Oyama Assis Brasil de Moraes, que aqui reproduzo:

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. VEREADOR. DESAPROVADAS. EXTRAPOLAÇÃO DO LIMITE DE GASTOS COM AUTOFINANCIAMENTO DE CAMPANHA. APLICAÇÃO DE RECURSOS PRÓPRIOS SUPERIOR AO PATRIMÔNIO DECLARADO. DEMONSTRADA ATIVIDADE LABORAL. SANADA A FALHA. AFASTADO O RECOLHIMENTO DE RECURSO NÃO IDENTIFICADO AO TESOURO NACIONAL. MANUTENÇÃO DA MULTA RELATIVA AO AUTOFINANCIAMENTO. FUNDO PARTIDÁRIO. FALHA REMANESCENTE DE VALOR ABSOLUTO IRRISÓRIO. PROPORCIONALIDADE. APROVAÇÃO COM RESSALVAS. PARCIAL PROVIMENTO. 1. Insurgência contra sentença que julgou desaprovada a prestação de contas de candidato, em razão da extrapolação do limite de gastos com recursos próprios e em valor superior ao patrimônio declarado, configurando recursos de origem não identificada. Aplicação de multa e determinado o recolhimento do valor equivalente às verbas não identificadas ao Tesouro Nacional. (…) 3. Recurso de origem não identificada. Embora ausente prova de que a candidata possuísse os recursos disponíveis para investir na própria campanha eleitoral, este Tribunal já entendeu que a declaração de atividade laboral no ramo da agricultura faz pressupor renda mínima, permitindo, portanto, a doação de recursos próprios até o limite de 10% do valor do teto de isenção do Imposto de Renda Pessoa Física, devendo ser afastada a irregularidade e a ordem de recolhimento ao Tesouro Nacional. 4. A falha remanescente, de valor nominal irrisório, permite a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, para a construção de um juízo de aprovação das contas com ressalvas, conforme a jurisprudência deste Tribunal e do Tribunal Superior Eleitoral. 5. Provimento parcial. (Recurso Eleitoral n 060019348, ACÓRDÃO de 16.09.2021, Relator  OYAMA ASSIS BRASIL DE MORAES).

Afasto, dessarte, a ordem de recolhimento de R$ 446,00 determinado na sentença.

2) Irregularidades na utilização dos recursos do FEFC para o pagamento de gastos com combustível

Transcrevo trecho da sentença:

“[...] o art. 35, § 6º, al. “a”, da Resolução TSE n. 23.607/19 estabelece que não são considerados gastos eleitorais e não podem ser pagos com recursos de campanha as despesas de natureza pessoal, como combustível e manutenção de veículo usado pela candidata na campanha. Ainda, apesar de o art. 60, § 4º, inc. III, da Resolução TSE n. 23.607/19 dispensar a cessão de automóvel de propriedade da candidata, do cônjuge e de seus parentes até o terceiro grau para o uso pessoal durante a campanha, este deveria ser registrado nas contas e o valor do combustível não poderia ser custeado com recursos financeiros das contas de campanha. Portanto, restou configurada a irregularidade, no valor de R$ 2.000,00, devido à utilização irregular dos recursos públicos com combustível, oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC.”

Os comandos indicados pela decisão recorrida possuem a seguinte redação:

Art. 35. São gastos eleitorais, sujeitos ao registro e aos limites fixados nesta Resolução (Lei nº 9.504/1997, art. 26 : (...) § 6º Não são consideradas gastos eleitorais, não se sujeitam à prestação de contas e não podem ser pagas com recursos da campanha as seguintes despesas de natureza pessoal da candidata ou do candidato: a) combustível e manutenção de veículo automotor usado pela candidata ou pelo candidato na campanha; (…).”

 

“Art. 60. A comprovação dos gastos eleitorais deve ser feita por meio de documento fiscal idôneo emitido em nome das candidatas ou dos candidatos e partidos políticos, sem emendas ou rasuras, devendo conter a data de emissão, a descrição detalhada, o valor da operação e a identificação da (o) emitente e da destinatária ou do destinatário ou das(os) contraentes pelo nome ou razão social, CPF ou CNPJ e endereço. (...) § 4º Ficam dispensadas de comprovação na prestação de contas: (...) III - a cessão de automóvel de propriedade da candidata ou do candidato, de cônjuge e de suas (seus) parentes até o terceiro grau para seu uso pessoal durante a campanha."

A recorrente apresentou (conjuntamente às razões de recurso) descrição fática de abastecimentos, alegação de emissão de nota fiscal única relativa aos gastos, e o termo de cessão de veículo para uso na campanha (ID 45480694), tudo referente ao automóvel Fiat Uno CS IE, placas ICZ2657.

No ponto, os argumentos e a documentação não merecem acolhida para a modificação do decidido em primeiro grau.

Inicialmente, indico que o (a) mencionado termo de cessão veio aos autos sem a devida assinatura (ID 45480694) e (b) desacompanhado da comprovação de propriedade do bem.

Tais circunstâncias, acompanhadas daquelas bem pontuadas pela d. Procuradoria Regional Eleitoral, quais sejam, (c) a falta de registro na prestação de contas e (d) a inexistência de declaração da receita decorrente da cessão do veículo, em valor estimável, no sistema SPCE, criam um quadro de inviabilidade de afastamento da presente irregularidade. Não há como afirmar, forma segura, o caminho dos gastos com combustíveis, em cujos pagamentos foram utilizadas verbas de origem pública.

Dessa forma, mantenho os termos da sentença no presente item.

3) Ausências de comprovação de gastos e pagamentos irregulares com recursos do FEFC

3.1. Valor de R$ 2.000,00 - Antônia Salete Ramos.

Novamente, transcrevo a decisão recorrida:

“[...] o cheque n. 850006, no valor de R$ 2.000,00, registrado nas contas como o pagamento de ANTONIA SALETE RAMOS, CPF 65008928015, emitido para o pagamento de prestação de serviços de divulgação de propaganda eleitoral, foi compensado sem identificação da contraparte no extrato bancário”, e que “o beneficiário da despesa paga com o cheque é incerto, uma vez que foi desatendido o disposto no art. 38, inc. I, da Resolução TSE 23.607/19, que dispõe sobre a necessidade de que o pagamento seja realizado mediante cheque nominal cruzado.”

Em suas razões, aduz a prestadora que, "embora não conste o nome da favorecida no extrato eletrônico, há o número da conta que, ao ser confrontado com o número da conta constante no respectivo comprovante provisório de depósito em cheque, o nome da favorecida está descrito no recibo de depósito, o que se permite concluir que, ao ser o mesmo número da conta beneficiária do crédito, o valor referente a R$ 2.000,00 fora repassado a favorecida".

No campo normativo, a situação é regulamentada pelo art. 38 da Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 38. Os gastos eleitorais de natureza financeira, ressalvados os de pequeno vulto previstos no art. 39 e o disposto no § 4º do art. 8º, ambos desta Resolução, só podem ser efetuados por meio de: I - cheque nominal cruzado; II - transferência bancária que identifique o CPF ou CNPJ da beneficiária ou do beneficiário; III - débito em conta; (Redação dada pela Resolução nº 23.665/2021) IV - cartão de débito da conta bancária; ou (Redação dada pela Resolução nº 23.665/2021) V - PIX, somente se a chave utilizada for o CPF ou o CNPJ. (Incluído pela Resolução nº 23.665/2021) § 1º O pagamento de boletos registrados pode ser realizado diretamente por meio da conta bancária, vedado o pagamento em espécie. § 2º É vedado o pagamento de gastos eleitorais com moedas virtuais.

Entendo, aqui, razoável a argumentação da recorrente. Do confronto dos dados do recibo de depósito bancário versus o cheque de n. 850006, é possível concluir que  houve a compensação do cheque em nome do destinatário e, portanto, a finalidade do art. 38 restou atendida, de maneira que merece reforma a sentença quanto à irregularidade de R$ 2.000,00.

3.2. Valor de R$ 1.000,00. Carlos Alexandre Lopes de Camargo.

O segundo apontamento a ser enfrentado refere-se ao pagamento de R$ 1.000,00 a Carlos A. L. de Camargo, em relação ao qual o parecer técnico verificou “[...] incongruências no contrato de prestação de serviços que não especifica os serviços contratados, informa que foi celebrado em 13/11/2020 e que terá 'vigência da data da ratificação até 14/11/20', ou seja, houve prestação de serviços por 1 dia ao valor de R$ 1.000,00, e, ainda, observa-se que o cheque n. 850001, tendo como beneficiário o contratado, foi compensado em 11/11/2020, ou seja, antes da celebração do contrato”.

Sustenta a recorrente que o contrato fora celebrado para a prestação de serviços pelo prazo de 30 (trinta) dias, e que a prestação de serviços ocorrera antes da assinatura do contrato. Fato incontroverso: a assinatura consta datada de 13.11.2020, apenas dois dias antes da data das eleições de 2020, 15.11.2020, em decorrência da pandemia causada pela COVID-19.

Argumentos de inviável acolhimento. Não há, nos autos, mínima comprovação de que o serviço fora efetivamente prestado durante o período de 30 dias - apenas a afirmação da recorrente - e, ademais, é de se lembrar que atos de campanha são proibidos no dia da eleição.

Desse modo, o que se extrai é um panorama em que o pagamento seria relativo a apenas um dia de trabalho, imediatamente anterior à data do pleito.

Mantenho a sentença no presente subitem.

3.3. Valor de R$ 480,00. Inexistência de identificação de contrapartes.

Por fim, passo a analisar as demais despesas tidas por irregulares, pagamentos efetuados pelos cheques n. 850002, de R$ 300,00, e n. 850004, de R$ 180,00, totalizando o valor de R$ 480,00, compensados sem identificação das contrapartes.

A recorrente alegou demora para obter a microfilmagem dos referidos cheques, e limitou-se a juntar os contratos de prestações de serviços, documentos nitidamente insuficientes para afastar os fundamentos da sentença, pois não há nos autos sequer indícios da destinação dos valores. A análise realizada pelo Parquet é irretocável, e adoto-a expressamente como razões de decidir:

“(...)

Além disso, a recorrente não apresentou cópia das cártulas, não sendo possível verificar se foram estas emitidas na forma nominal e cruzada. Assim, não foi observado o art. 38 da Resolução TSE nº 23.607/2019, o qual impõe que os gastos eleitorais de natureza financeira (...) só podem ser efetuados por meio de: (I) cheque nominal cruzado; (II) transferência bancária que identifique o CPF ou CNPJ do beneficiário; (III) débito em conta; ou (IV) cartão de débito da conta bancária. Nesse sentido, cumpre destacar que, para as eleições de 2020, o TSE buscou ser mais rigoroso com o controle dos gastos eleitorais, pois acrescentou a obrigação do pagamento se dar por cheque nominal e cruzado, previsão inexistente para as eleições anteriores. Diga-se que os documentos previstos no art. 60, caput e §§ 1º e 2º, da Resolução TSE nº 23.607/2019, não se prestam, sozinhos, à comprovação dos gastos eleitorais, devendo serem entendidos como um reforço de comprovação em relação àqueles informados no art. 38 e seus incisos da mesma Resolução. Em outras palavras, os documentos fiscais idôneos, com o preenchimento de todos os dados necessários a que alude o art. 60, devem se somar aos meios de pagamento determinados no art. 38, jamais podendo ser apontados como alternativos ou exclusivos para efeito de comprovação da efetiva e regular utilização dos recursos do Fundo Partidário ou do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Tal caráter meramente complementar dos documentos do art. 60 se extrai de dois pilares principais. Primeiro, tais documentos não possuem fé suficiente, uma vez que são de produção unilateral, ou, no máximo, bilateral, entre o candidato e uma pessoa qualquer informada como fornecedor de serviço ou de produto, o que claramente pode dar margem a burlas mediante a entabulação de relações simuladas, com o intuito de encobrir o real destino dos valores da campanha. Depois, porque os meios de pagamento previstos no art. 38 são os únicos que permitem identificar exatamente a pessoa, física ou jurídica, que recebeu o valor depositado na conta de campanha, constituindo, assim, um mínimo necessário para efeito de comprovação do real destinatário dos recursos de campanha, e, por consequência, da veracidade do correspondente gasto. Tais dados fecham o círculo da análise das despesas, mediante a utilização de informações disponibilizadas por terceiro alheio à relação entre credor e devedor e, portanto, dotado da necessária isenção e confiabilidade para atestar os exatos origem e destino dos valores. Isso porque somente o registro correto e fidedigno das informações pela instituição financeira permite o posterior rastreamento dos valores, apontando-se, por posterior análise de sistema a sistema, eventuais inconformidades. Por outro lado, se os valores não transitam pelo sistema financeiro nacional, é muito fácil que sejam, na realidade, destinados a pessoas que não compuseram a relação indicada como origem do gasto de campanha. Assim, se por um lado o pagamento pelos meios indicados pelo art. 38 da Resolução TSE nº 23.607/19 não é suficiente, por si só, para atestar a realidade do gasto de campanha informado, ou seja, de que o valor foi efetivamente empregado em um serviço ou produto para a campanha eleitoral, sendo, pois, necessário trazer uma confirmação, chancelada pelo terceiro com quem o candidato contratou, acerca dos elementos da relação existente; por outra via a tão só confirmação do terceiro por recibo, contrato ou nota fiscal também é insuficiente, pois não há registro rastreável de que foi tal pessoa quem efetivamente recebeu o referido valor. É somente a triangularização entre prestador de contas, instituição financeira e terceiro contratado, com dados provenientes de diversas fontes, que permite, nos termos da Resolução, o efetivo controle dos gastos de campanha a partir do confronto dos dados pertinentes. Saliente-se, ademais, que tal necessidade de controle avulta em importância quando, como no caso, se trata de recursos públicos, como são as verbas recebidas via FEFC. A realização de gastos com recursos do FEFC com a utilização de forma de pagamento vedada importa em utilização indevida de recursos públicos, ensejando o recolhimento ao Tesouro Nacional, nos termos do art. 79, § 1º, da Resolução TSE 23.607/2019.”

Mantenho a irregularidade.

4) Conclusão

As irregularidades somam o valor de R$ 3.480,00 (R$ 2.000,00 + R$ 1.000,00 + R$ 480,00), equivalentes a 33,70% dos recursos totais recebidos pela campanha da recorrente (R$ 10.324,20), e expressivos em relação ao total arrecadado. A manutenção do juízo de desaprovação é, portanto, medida que se impõe. Saliento, a título de desfecho, que o valor de R$ 520,00, oriundo do FEFC  e não utilizado, deveria ter sido objeto de ordem de recolhimento ao Tesouro Nacional. Porém, como a sentença recorrida deixou de determinar a devolução da quantia (e somente a prestadora de contas interpôs recurso), há o impeditivo da reformatio in pejus para que se examine, de ofício, a irregularidade.

Diante do exposto, VOTO para dar parcial provimento do recurso, manter a desaprovação das contas e reduzir o valor a ser recolhido ao Tesouro Nacional para R$ 3.480,00, nos termos da fundamentação.