REl - 0600781-82.2020.6.21.0032 - Voto Relator(a) - Sessão: 05/12/2023 às 14:00

VOTO

Eminentes Colegas.

Trata-se de recurso eleitoral interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra sentença exarada pelo Juízo da 32ª Zona Eleitoral - Palmeira das Missões/RS, que julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, em face de RAFAEL EDUARDO MOREIRA GIACOMELLI e JOYCE BORGES, e improcedente a Representação por Captação Ilícita de Sufrágio cumulada com Ação de Investigação Judicial Eleitoral por abuso de poder econômico em desfavor de ENIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI, candidato ao cargo de vereador nas eleições municipais de 2020, sob o fundamento de que o conjunto probatório trazido pelo autor e aquele produzido durante a instrução processual não foram suficientes para comprovar os ilícitos eleitorais apontados na inicial (ID 45447564 e ID 45447557).

Anoto que o candidato demandado alcançou a condição de suplente no pleito e que, conforme constatei no sítio da internet da Câmara de Vereadores de Palmeira das Missões, se encontrava no exercício do mandato na data da consulta (13.11.2023 – https://www.palmeiradasmissoes.rs.leg.br/institucional/contato-eletronico-dos-vereadores).

Passo à análise da peça recursal.

 

1. Admissibilidade

A sentença foi prolatada no dia 09.3.2023 e lançada no sistema PJE em 10.3.2023, com o registro na aba “Expedientes” do Sistema PJE de 1º grau de que o prazo final para ciência do recorrente encerraria em 20.3.2023.

O Ministério Público Eleitoral registrou ciência da sentença em 20.03.2023, mesmo dia que interpôs o recurso, dentro do tríduo legal do art. 258 do Código Eleitoral. Logo, foi atendido o requisito extrínseco de admissibilidade recursal.

Portanto, tendo em vista ser o recurso tempestivo e presentes os demais requisitos de admissibilidade, deve ser conhecido.

Passo à análise das preliminares suscitadas.

 

2. Preliminares

2.1. Do julgamento conjunto do REl n. 0600781-82.2020.6.21.0032 e do REl n. 0600003-78.2021.6.0032

Postula o recorrente o apensamento dos recursos eleitorais relativos às Representações n. 0600781-82.2020.6.21.0032 e n. 0600003-78.2021.6.0032, alegando que os fatos de que tratam os processos constituem desdobramento um do outro e que não podem ser considerados em um contexto isolado, uma vez que tramitaram em conjunto, inclusive no que concerne à fase instrutória. Ainda, explana que as representações teriam sido individualizadas, apenas, para fins de sentença.

De fato, no processo judicial eleitoral existe a previsão de serem reunidas para julgamento comum as ações eleitorais propostas por partes diversas sobre o mesmo fato e, no caso, será competente para apreciá-las o juiz ou relator que tiver recebido a primeira, nos termos do art. 96-B da Lei n. 9.504/97.

Nesse contexto, cediço que a regra prevista no art. 96–B da Lei das Eleições se aplica às ações eleitorais cíveis, mas, para ensejar sua aplicação, faz-se necessário que haja conexão apta a possibilitar o julgamento conjunto dos feitos, com similitude de pedido ou causa de pedir.

Definidas tais premissas, cabe dizer que o recurso que ora se examina tem por objeto a captação ilícita de sufrágio, prevista no art. 41-A da Lei n. 9.504/97, cumulada com investigação de abuso de poder econômico. Por seu turno, o Rel n. 0600003-78.2021.6.0032 trata de captação e gastos ilícitos de recursos, prevista no art. 30-A da Lei n. 9.504/97. Portanto, como bem apontou a douta Procuradoria Regional Eleitoral, os referidos processos possuem causas de pedir distintas.

Mas, para além disso, entendo que os processos envolvem questões dos fatos um tanto quanto distintas, de modo que a regra supracitada não se aplica na hipótese dos processos em tela. Portanto, não cabe a imposição de reunião dos processos.

Com efeito, ambos os recursos foram distribuídos a esta Relatoria, como referido pela Procuradoria Regional Eleitoral, “ainda que não se imponha obrigatoriamente a reunião dos processos, por questão de economia processual”, cabível sejam pautados para julgamento na mesma data, para análise na mesma sessão de julgamento.

Logo, desacolho o pedido de apensamento do REl n. 0600781-82.2020.6.21.0032 e do REl n. 0600003-78.2021.6.0032. Mas, por haver possibilidade, cabe serem pautados para julgamento na mesma sessão, devendo assim se proceder.

 

2.2.Das preliminares suscitadas em contrarrazões

O recorrido ÊNIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI, em suas contrarrazões recursais, argui a nulidade da juntada de memoriais a destempo pelo Ministério Público Eleitoral. Também afirma a nulidade do compartilhamento de provas ocorrido no presente feito, sustentando que “a mesma não passou pelo crivo do contraditório, foi obtida em processo envolvendo terceiras pessoas, não foi juntada a cadeia de custódia da referida prova nestes autos para se verificar a sua integralidade e nem mesmo toda a sequência de decisões judiciais e requerimentos do Ministério Público ou da Autoridade Policial que ensejaram a obtenção, o uso e o compartilhamento”.

Na linha de precedente desta Corte, o “conhecimento das preliminares trazidas em contrarrazões deve ficar condicionado ao provimento do recurso principal, o que seria hábil a fazer surgir o interesse em recorrer, sob pena de admitir, mesmo em tese, a possibilidade de reforma da sentença em prejuízo da única parte que recorreu” (Recurso Eleitoral n. 060000135, Acórdão, Relatora Desa. VANDERLEI TERESINHA TREMEIA KUBIAK, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 2, Data: 10.01.2023).

Além da barreira constante no precedente, é de se considerar que o prazo para juntada de memoriais não é preclusivo e que a questão do compartilhamento de provas foi devidamente apreciada em primeira instância (decisão de ID 45447468 e reafirmação em sentença). Também o entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral sobre o compartilhamento de provas nas ações eleitorais é de que “não há óbice à utilização de prova emprestada em feitos eleitorais, admitindo–se, em AIJE, o compartilhamento de provas produzidas inclusive em procedimento investigativo criminal, desde que resguardados os postulados do contraditório e da ampla defesa no processo em que tais provas serão aproveitadas” (TSE, AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL n. 060039833, Acórdão, Relator(a) Min. Raul Araújo Filho, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 152, Data: 08.8.2023).

Assim, as preliminares formuladas em contrarrazões não devem ser conhecidas.

 

3. Do mérito

Na petição inicial, o Ministério Público Eleitoral propõe Representação por infração ao art. 41-A da Lei n. 9.504/97 (Lei das Eleições) cumulada com Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) por abuso do poder econômico.

A alegação da exordial é de que ENIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI, então candidato ao cargo de vereador nas eleições 2020 no Município de Palmeira das Missões, teria praticado a conduta de captação ilícita de sufrágio e, subsidiariamente, o abuso de poder econômico, tendo por fundamento fático o alcance de transporte a duas pessoas durante o período eleitoral, e, com isso, violado o disposto no art. 41-A da Lei n. 9.504/97.

O dispositivo em comento tem a seguinte redação:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinquenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990.

§ 1º Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir.

§ 2º As sanções previstas no caput aplicam-se contra quem praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim de obter-lhe o voto.

§ 3º A representação contra as condutas vedadas no caput poderá ser ajuizada até a data da diplomação.

§ 4º O prazo de recurso contra decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial.

 

Para a captação ilícita de sufrágio, é necessária a participação do candidato beneficiado, ou ao menos seu conhecimento, em qualquer das condutas previstas no art. 41-A da Lei Eleitoral ocorridas entre a data do registro de candidatura e a eleição, bem como o dolo específico, consistente na intenção de obter o voto do eleitor.

Nessa linha, colaciono julgado do Tribunal Superior Eleitoral:

AGRAVO INTERNO. RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. REPRESENTAÇÃO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ART. 41–A DA LEI 9.504/97. PAGAMENTO EM TROCA DE VOTOS. TRANSPORTE DE ELEITORES. BOCA DE URNA. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. MULTA.

(...)

MÉRITO.

CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ART. 41–A DA LEI 9.504/97. CONFIGURAÇÃO. OFERTA DE TRABALHO REMUNERADO E TRANSPORTE GRATUITO DE ELEITORES NO DIA DA ELEIÇÃO EM TROCA DE VOTO. ANUÊNCIA DO CANDIDATO. COMPROVAÇÃO.

6. No mérito, nos termos do art. 41–A da Lei 9.504/97, "constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter–lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive".

7. Conforme jurisprudência desta Corte Superior, para se configurar a captação ilícita de sufrágio, é necessária a presença dos seguintes elementos: (a) prática de qualquer das condutas previstas no art. 41–A; (b) o dolo específico de obter o voto do eleitor; (c) ocorrência dos fatos entre a data do registro de candidatura e a eleição; e (d) a participação, direta ou indireta, do candidato beneficiado, concordância ou conhecimento dos fatos que caracterizam o ilícito.

(…)

(RO n. 060186731, Acórdão, Relator Min. Luis Felipe Salomão, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 230, Data: 14.12.2021.) (Grifei.)

Ainda em relação à captação ilícita de sufrágio, o TSE consolidou posicionamento no sentido de que a configuração da prática demanda atenção a alguns requisitos: “(a) capitulação expressa da conduta no tipo legal descrito no art. 41–A da Lei nº 9.504/1997; (b) realização da conduta no período eleitoral; (c) prática da conduta com o especial fim de agir, consubstanciado na vontade de obter o voto do eleitor ou de grupo determinado ou determinável de eleitores; (d) existência de conjunto probatório robusto acerca da demonstração do ilícito, considerada a severa penalidade de cassação do registro ou diploma” (RO n. 0603024-56.2018.6.07.0000/DF, Acórdão, Relator Min. Og Fernandes, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 215, Data: 26.10.2020).

Por seu turno, a Lei Complementar n. 64/90, ao disciplinar o rito aplicável à Ação de Investigação Judicial Eleitoral, assim dispõe:

Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

[…]

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito.

[...]

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

A AIJE é, portanto, demanda de natureza cível com caráter jurisdicional que tem o objetivo de apurar a prática de abuso de poder econômico, abuso de poder político ou de autoridade e o uso indevido dos meios de comunicação social.

As causas de pedir da ação são conceitos jurídicos indeterminados, aos quais a jurisprudência, em especial do Tribunal Superior Eleitoral, tem definido os contornos.

No que respeita especificamente ao abuso de poder econômico, necessário que a conduta abusiva tenha em vista processo eleitoral futuro ou em curso, concretizando ações ilícitas ou anormais, das quais se denote o uso de recursos patrimoniais detidos, controlados ou disponibilizados ao agente, que extrapolem ou exorbitem, no contexto em que se verificam, a razoabilidade e a normalidade no exercício de direitos e o emprego de recursos, com o propósito de beneficiar determinada candidatura, provocando a quebra da igualdade de forças que deve preponderar no âmbito da disputa eleitoral.

Nessa linha, José Jairo Gomes, em relação à aptidão para haver a responsabilidade eleitoral decorrente da lesão do bem jurídico protegido pela norma, menciona:

Em tal cenário, desponta a responsabilidade eleitoral, a qual se encontra comprometida essencialmente com a proteção dos bens constitucionalmente tutelados, ou seja, a legitimidade, a lisura e a normalidade do processo eleitoral, a higidez do pleito, a isonomia da disputa, a veraz representatividade. É mister que a ocupação dos postos político-governamentais se dê de forma lícita, honesta, autêntica, devendo o povo, exercendo sua liberdade, realmente manifestar sua vontade e determinar o rumo de sua história e de sua vida coletiva, ou seja, se autogovernar

Assim, para que seja responsabilizado, não é necessário que o réu realize, ele mesmo, as ações consideradas ilícitas e abusivas. Pouco importa a perquirição de aspectos psicológicos (como dolo ou culpa) dos infratores e beneficiários das condutas ilícitas. E mais: não é necessário provar-se o real, efetivo, ferimento aos bens e interesses protegidos, pois esse resultado é presumido. Partindo da ideia de proporcionalidade, contenta-se a lei com a potencialidade ou o risco de dano aos bens constitucionalmente protegidos – e não poderia ser diferente porque, quando a conduta ilícita visa influenciar o voto, o segredo de que este é revestido impossibilita averiguar se houve efetiva e real influência.

(Direito eleitoral – 14. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018)

 

Segundo Zilio (Direito Eleitoral – 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. Páginas 557-558):

Caracteriza-se o abuso de poder econômico, na esfera eleitoral, quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Pode-se configurar o abuso de poder econômico, exemplificativamente, no caso de descumprimento das normas que disciplinam as regras de arrecadação e prestação de contas na campanha eleitoral (v.g., arts. 18 a 25 da LE).

 

São institutos abertos, não sendo definidos por condutas taxativas, mas pela sua finalidade de impedir práticas e comportamentos que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

A quebra da normalidade do pleito está vinculada à gravidade da conduta capaz de alterar a simples normalidade das campanhas, sem a necessidade da demonstração de que, ausente a prática abusiva, o resultado das urnas seria diferente.

Com essa contextualização normativa e jurisprudencial, passo ao exame da moldura fático-probatória.

Inicio por referir que a exordial expressamente afirma que o demandado utilizaria recursos provenientes de atividades ilícitas na sua campanha eleitoral, porquanto esta seria custeada por integrantes de organização criminosa.

Em outra oportunidade, quando esta Corte julgou fatos em que candidato supostamente ligado à organização criminosa “Os manos”, atuante no Rio Grande do Sul, teria utilizado valores provenientes da aludida facção para custeio de sua campanha eleitoral, tive a oportunidade de manifestar minha preocupação com a utilização de recursos oriundos dessas fontes ilícitas, bem como a necessidade da severa aplicação e execução das regras legais por parte da Justiça Eleitoral nessas situações (Recurso Eleitoral n. 060015594/RS, Relatora Des. Eleitoral ELAINE MARIA CANTO DA FONSECA, Acórdão de 03/08/2023, Publicado no Diário de Justiça Eletrônico-147, data: 14.8.2023).

Sobre o tema, José Jairo Gomes ensina que:

“Os candidatos e partidos políticos necessitam de recursos para se divulgarem e se aproximarem do eleitorado, exporem suas ideias e projetos, de maneira a captarem os votos necessários para vencerem o pleito, ascenderem aos postos estatais e, pois, se investirem ou se manterem no poder político. Para tanto, é essencial que tenham acesso a dinheiro e canais de financiamento. É impensável a realização de campanha eleitoral sem dispêndio de recursos, ainda que pouco vultosos.

Normalmente, são arrecadadas e gastas – de forma legal e ilegal – elevadíssimas somas pecuniárias, o que é particularmente notório em eleições majoritárias para o Poder Executivo.

E o que é mais grave e preocupante: boa parte do dinheiro efetivamente gasto em campanhas eleitorais tem origem ilícita, emanando da corrupção envolvendo agentes estatais e pessoas privadas, do desvio de recursos do Estado, de caixa 2, de organizações criminosas etc. Em geral, os valores oficialmente declarados como gastos de campanha correspondem a apenas uma parte do montante realmente despendido. Note-se que uma doação oficial de campanha pode ser lícita ou não; será ilegal ou ilícita quando for vedada ou sua origem for criminosa. Como a origem do recurso doado em regra não é objeto de investigação, as contas do candidato podem ser regularmente prestadas e aprovadas pela Justiça Eleitoral – sem que isso afaste a origem criminosa dos recursos.

É certo que se dinheiro é necessário para o financiamento da democracia, também pode ser usado como instrumento para indevida influência no processo eleitoral e nas decisões políticas. Por isso, como afirma Speck (2007, p. 154), a diminuição de sua importância na disputa político-eleitoral “coincide com o ideal de uma relação mais orgânica e consciente entre os partidos políticos e o seu eleitorado”.

Afinal, o uso de recursos ilícitos torna ilegítima qualquer eleição, além de oportunizar que espúrios financiadores privados cooptem agentes públicos e exerçam indevida influência na esfera estatal.

Por isso, é de fundamental importância haver abertura e transparência quanto à veraz origem e destino de todos os recursos efetivamente empregados no financiamento de campanhas políticas.

Daí a necessidade de haver estrita regulamentação, bem como severa aplicação e execução das regras legais por parte da Justiça Eleitoral.

(Direito eleitoral – 16. ed. – São Paulo: Atlas, 2020) (Grifos meus)

 

Diversamente da posição que adotei no exame do caso mencionado, tenho que aqui o acervo probatório não demonstrou que eventuais atividades ilícitas desenvolvidas pelo candidato ou seus familiares estivessem relacionadas com a campanha eleitoral.

Deixo registrado que o acervo probatório, conforme descrito no recurso (ID 45447565), é composto de interceptações telefônicas “de linhas identificadas como dos então investigados ÊNIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI, seus irmãos JOYCE BORGES, ANTÔNIO CARLOS DE ABREU GIACOMELLI (“Nenê”) e VOLMIR DE ABREU GIACOMELLI (“Alemão”), seu sobrinho JULIANO MARQUES GIACOMELLI, bem como de PLÍNIO DE OLIVEIRA SANTOS”, realizadas no período de 30.9.2020 a 14.10.2020, com prorrogação, de 15.10.2020 até 29.10.2020, “apenas dos ramais utilizados por ÊNIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI, JOYCE BORGES e JULIANO MARQUES GIACOMELLI”. Antes do escoamento do prazo das interceptações,

na manhã de 16.10.2020, a Polícia Civil, com apoio da Brigada Militar, deu cumprimento aos mandados judiciais de busca e apreensão domiciliar expedidos nos autos do Expediente n. 020.2.20.0001447- 0, bem como outras ordens judiciais similares expedidas no bojo expedientes investigativos diversos, das Delegacias de Polícia de Palmeira das Missões e de Jaboticaba, em operação policial intitulada “Mandatários”.

Em relação aos fatos apurados no Procedimento Investigatório Criminal n.°00818.001.036/2020 e correlato Expediente Judicial n. 020.2.20.0001447-0, foram apreendidas armas de fogo, munições, telefones celulares, quantia em dinheiro, colete balístico, bastão de choque e equipamentos de radiocomunicação (conforme relatórios circunstanciados de busca e ocorrências policiais anexas – DOC. 10).

Oportuno salientar que a investigada JOYCE BORGES não foi encontrada em sua residência por ocasião do cumprimento do mandado de busca e apreensão domiciliar, encontrando-se em local incerto. Por essa razão, seu aparelho telefônico não foi apreendido, mas permaneceu ativo durante a operação policial, permitindo a captação de alguns diálogos bastante comprometedores.

 

Como se percebe, a possibilidade de localização de provas sobre os supostos ilícitos foi amplamente franqueada nas interceptações e apreensões.

Nesse panorama, a tese recursal afirma a ocorrência de ilícitos eleitorais, aduzindo a existência de apoio de organização criminosa ao candidato ÊNIO GIACOMELLI. O recurso afirma que haveria relação entre a campanha eleitoral e as atividades ligadas ao suposto cometimento de delitos associados ao tráfico de drogas e à posse de armamento, assim como que tais atividades criminosas impuseram severas barreiras à obtenção da prova.

Ocorre que as interceptações telefônicas autorizadas não trouxeram elementos relevantes no que toca à campanha eleitoral. Ainda, as teses sustentadas pela acusação não foram confirmadas em juízo. Nessa linha, andou bem a sentença ao constatar a ausência de prova hábil a demonstrar o liame subjetivo entre ÊNIO e a obtenção de vantagem eleitoral, no caso das caronas, comprovação essa que seria indispensável para a incidência das sanções previstas no art. 41-A da Lei n. 9.504/97.

A própria conversa proveniente de interceptação telefônica transcrita pelo recorrente em sua irresignação demonstra isso (ID 45447565 - Pág. 24): ao responder a pergunta de Lenir sobre quanto custaria a 'carona' (deslocamento para comparecer a consulta médica em outro município), ÊNIO responde “Não, por, capaz, por doença nós, se nós não se ajudar, daí né...”, manifestando que o ato seria motivado apenas por solidariedade.

Tal trecho do diálogo revela que não se tratava de evidente benefício eleitoral, uma vez que é realizado questionamento sobre o custo do transporte. Ainda, diversamente do que se observa em hipóteses semelhantes, o candidato não se colocou à disposição para “ajudar” sempre que fosse necessário; ao contrário, suas palavras deixam implícito que a benesse estava ocorrendo em um contexto de necessidade (problema de saúde).

Para além, não identifiquei no processo judicial a possibilidade de comprovação do apoio de organização criminosa ao candidato, como forma de realização de “favores” (caronas) alcançados a Éderson Goulart e Neiva Suzana Cruz dos Santos em troca de voto no pleito.

Assim, entendo, desde logo, que a prova efetivamente produzida nos autos referente à conduta de captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico, tendo por fundamento fático o alcance de transporte a duas pessoas durante o período eleitoral, a violar o previsto no art. 41-A da Lei n. 9.504/97 e nos arts. 19 e 22 da Lei Complementar n. 64/90, não foi suficiente para demonstrar a capitulação legal apontada e nem a associação dos demais indícios relativos à organização criminosa para reconhecer a ilegitimidade do mandato obtido pelo recorrido ENIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI.

Passo então a tratar da questão do exame da prova dos autos, sobre as supostas condutas descritas como configuradoras dos ilícitos eleitorais, ou seja, a alegação de que o recorrido teria oferecido e transportado (sob a forma de “caronas”) eleitores de Palmeira das Missões, com o objetivo de captar seus votos e de familiares, montando o que chama “serviço de transporte de passageiros – espécie de Uber grátis”, nos termos sintetizados na sentença das seguintes atuações:

i) no dia 06/10/2020, Ênio solicitou a Moisés Rodrigues (vulto CBT) que realizasse o transporte de Ederson Goulart a uma consulta médica, ocorrida no Hospital Santo Antônio, no município de Tenente Portela/RS, o qual foi realizado com o veículo e às custas do representado;

ii) no dia 06/10/2020, por volta das 11h45min, Joyce, atuando como “cabo eleitoral” de Ênio, solicitou a Rafael, filho daquele, que levasse a eleitora Neiva Suzana Cruz dos Santos, cadeirante, até a agência da Caixa Econômica Federal do município de Palmeira das Missões, em troca do voto desta em benefício de Ênio; iii) em outras ocasiões (não especificadas), os representados Ênio e Joyce, por diversas vezes, ofereceram, prometeram e efetivamente transportaram outros eleitores (não identificados) dentre do município de Palmeira das Missões/RS, para outros municípios e, inclusive, para o Estado de Santa Catarina (citam-se como exemplos de transporte captadas em interceptação telefônica: “comadre de Antônio Carlos de Abreu Giacomelli” e “vizinha de Ênio Gilmar de Abreu Giacomelli”).

 

Em contrarrazões, o recorrido ENIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI, em apertada síntese, sustenta que as informações do Relatório Técnico n 003/20, datado de 14.9.2020, apontadas pelo Ministério Público de 1º grau, relativas a tráfico de drogas, ameaças, constrangimento ilegal e outros crimes durante a campanha eleitoral, não foram comprovadas, conforme o relatório policial e, em decorrência, nenhuma ilicitude foi perpetrada por ele. Afirma que foi apenas constatado que o recorrido possui armas, porém todas devidamente registradas em seu nome e acompanhadas da competente documentação necessária. Que sua rede social é aberta e que qualquer um pode seguir e comentar. Acrescenta que não há ligação entre os simpatizantes do candidato ENIO que cometeriam crimes de ameaça, nos termos de uma ação judicial da Comarca de Palmeira das Missões. Que seria o caso de lawfare, onde o Ministério Público escolheu “seu adversário/bode expiatório”. Prossegue afirmando que não houve nenhuma intenção, desejo ou vontade do candidato recorrido em captar ilicitamente o sufrágio mediante o oferecimento de vantagem, pois nada foi solicitado, sendo que a própria eleitora Neiva confirma que nada fez ou lhe foi prometido ou oferecido em troca de voto. Acrescenta que, de igual forma, Rafael nada sabia do fato, apenas foi atender a uma solicitação de sua tia de criação Joyce, não sabendo a que se referia a solicitação e o transporte. Aduz que o recorrente ENIO era quem ordenava e, junto com Joyce, executava o transporte de pessoas para outras cidades com o fim de, conscientemente, captar de forma ilícita o sufrágio, abusando do poder econômico. Contudo, sustenta não haver prova, que somente seriam graves ilações do Ministério Público, desprovidas de qualquer comprovação.

Na mesma peça de contrarrazões, o recorrido apresenta defesa em relação à representação por suposta infração ao art. 30-A da Lei n. 9.504/97, narrando que não ocorreu arrecadação e gastos ilícitos de campanha, não tendo feito uso de caixa 2. Porém, como este fato é objeto do processo n. 0600003-78.2021.6.21.0032, que igualmente recebeu juízo de improcedência na origem, com interposição de recurso pelo Ministério Público Eleitoral, será analisado nos autos respectivos.

No caso destes autos digitais, entretanto, consoante o judicioso parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, é de ser mantida a sentença de improcedência, pois não comprovada a mercancia do voto, fundamentos que adoto, a fim de evitar tautologia, como razões de decidir:

No caso, as condutas apontadas como captação ilícita de sufrágio encontram lastro fático em duas “caronas” efetivadas às pessoas de Éderson Goulart e Neiva Suzana Cruz dos Santos, identificadas e ouvidas durante a instrução processual.

A primeira conduta refere-se ao transporte de Éderson Goulart até o município de Tenente Portela para realizar uma consulta médica. O transporte não foi feito diretamente por ÊNIO, mas ele emprestou o carro, já abastecido, e pediu para outra pessoa dirigir. O motorista foi Moisés Rodrigues (“CBT”), pessoa conhecida de ÊNIO, que não foi pago pelo serviço. Moisés informou ter recebido R$ 50,00 para “fazer um lanche” e que sua esposa aproveitou a oportunidade e o acompanhou na viagem. Éderson, beneficiado com a carona, faz uso de dispositivo de monitoramento eletrônico (tornozeleira) em uma perna e não tem a outra, utilizando prótese, o que demanda acompanhamento médico no município de Tenente Portela.

As pessoas envolvidas – Éderson, Ênio e “CBT” – mantêm relação entre si, não se tratando de desconhecidos. O próprio Éderson afirmou que foi o pai de ÊNIO que o levou até Frederico Westphalen, “bem antigamente”, quando perdeu a perna. A testemunha Lenir, mãe de Éderson, afirmou conhecer ÊNIO há muito tempo, “bem conhecido mesmo”, sendo que por isso lhe pediu a carona, pois a Prefeitura não poderia realizar o transporte.

A sentença, a propósito, referiu que “Ênio afirma que já havia prestado auxílio para Ederson em outras oportunidades, após o acidente de trânsito que culminou na amputação de sua perna, a evidenciar que não se trata de um ‘serviço’ prestado em razão da proximidade do período eleitoral”.

Nesse contexto, relevante também a informação de que não foi possível usar o transporte comum oferecido pelo Município, pois a van utilizada faz várias paradas no percurso e isso acionaria o alarme do monitoramento eletrônico, sendo que a Prefeitura não tinha condições de realizar o transporte individual de Éderson.

De qualquer modo, impõe-se reconhecer que a conduta atribuída a ÊNIO em relação a Éderson é atípica, pois este fazia uso de monitoramento eletrônico em razão de condenação criminal transitada em julgado, encontrando-se com seus direitos políticos suspensos, não sendo possível, portanto, a captação de seu voto.

[...]

No ponto, a ausência de demonstração da finalidade eleitoral está corretamente fundamentada na sentença, nos seguintes termos, verbis (ID 45447557) (Grifo nosso):

 

Registre-se que, conforme reconhecido pelo representante, Ederson Goulart estava com seus direitos políticos suspensos quando da realização da consulta médica em Tenente Portela/RS, em decorrência de condenação criminal transitada em julgado, ou seja, sequer pôde votar nas Eleições Municipais de 2020, fato que seria presumível pelo representado Ênio, pois sabia que aquele era apenado e estava no uso de tornozeleira eletrônica. Além do mais, ficou demonstrado que o transporte só foi necessário porque houve a negativa da Prefeitura Municipal de Palmeira das Missões em levar Ederson individualmente até a consulta em Tenente Portela, o que era necessário em razão de este fazer uso de tornozeleira eletrônica e não poder ir até outros municípios, bem como que, devida a condição médica deste (uso de prótese devido à amputação da perna), era comum as pessoas da comunidade ter que auxiliá-lo com o transporte e tarefas, inclusive fora do período eleitoral. Em seu depoimento prestado ao Ministério Público Eleitoral, o representado Ênio Gilmar de Abreu Giacomelli sustentou, em relação aos fatos objetos da presente representação, que providenciou o transporte para Ederson Goulart para ajudá-lo, bem como que já o ajudou outras vezes, desde que “perdeu a perna”; que não o ajudou em troca de voto; que o transporte foi realizado por Moisés, conhecido como “CBT”, tendo o declarante entregue o valor de R$ 50,00 para ele e sua esposa, que foi junto, para almoçarem; que Moisés dirigiu um veículo de propriedade do declarante, não tendo cobrado nada de Ederson ou de sua mãe pelo transporte; que Moisés ajudou em sua campanha eleitoral; que Joyce, sua irmã, também ajudou o declarante em sua campanha eleitoral, tendo inclusive doado a cessão de uso de seu automóvel, sob a forma de doação estimável em dinheiro; que Rafael Eduardo Moreira Giacomelli é seu filho e trabalha como mecânico; que conhece Neiva Suzana Cruz dos Santos, a qual é “paralítica” e mora no Bairro Mutirão, sendo que Joyce sempre leva ela onde precisa, “bem antes da eleição”; que não tem conhecimento sobre a “carona” fornecida para Neiva e objeto e interceptação telefônica; que não levou ninguém “com a bacia quebrada” para a cidade de Passo Fundo/RS, nem sabe do que se tratam as viagens queJoyce menciona em ligações interceptadas pela polícia (ID 6156952). Embora evidenciadas as caronas fornecidas a Neiva Suzana Cruz dos Santos e a Ederson Goulart, entendo estar ausente o especial fim de agir na conduta dos representados, qual seja, a vontade de obter o voto do eleitor ou de grupo determinado ou determinável de eleitores. Com efeito, em relação ao transporte de Neiva até a agência da Caixa Econômica Federal, localizada no município de Palmeira das Missões, realizado por Rafael a pedido de Joyce, além de não estar demonstrada a ciência e anuência do candidato Ênio com tal conduta, os elementos de provas produzidos evidenciam que tratava-se de prática corriqueira no município de Palmeira das Missões, em razão da condição física de Neiva (cadeirante), inclusive realizada por outras pessoas, já tendo aquela fornecido transporte para esta em outras oportunidades, antes mesmo do período eleitoral.

Já em relação ao transporte de Ederson, o próprio representante reconhece que este estava com seus direitos políticos suspensos à época, de forma que a conduta dos representados mostrara-se inócua. Além disso, Ênio afirma que já havia prestado auxílio para Ederson em outras oportunidades, após o acidente de trânsito que culminou na amputação de sua perna, a evidenciar que não se trata de um “serviço” prestado em razão da proximidade do período eleitoral. Ademais, importante ressaltar que em nenhum dos casos ficou demonstrado que, ao oferecer as “caronas” (transporte), os representados solicitaram ou condicionaram o seu fornecimento ao voto dos beneficiados em favor de Ênio, não estando evidenciado o dolo na conduta dos representados – especial fim de agir – para fins de configuração do ilícito previsto no artigo 41-A da Lei 9.504/97.

(…)

Registre-se, ademais, que os elementos de provas produzidos durante a instrução processual evidenciaram que os auxílios prestados pelos agentes e narrados na representação proposta pelo Ministério Público Eleitoral eram comuns no bairro em que tais pessoas viviam, reconhecidamente carente, sendo prática corriqueira o fornecimento de caronas e outros auxílios mútuos entre seus integrantes, inclusive fora do período eleitoral, a evidenciar a ausência de interesse eleitoreiro nas condutas realizadas.

 

Desse modo, não há como considerar configurada a captação ilícita de sufrágio de Éderson Goulart, imputada ao recorrido.

 

A segunda conduta narrada na inicial refere-se ao transporte de Neiva Suzana Cruz dos Santos até uma agência bancária no centro da cidade de Palmeira das Missões.

Consta dos autos que Neiva solicitou carona a Joyce, irmã de ÊNIO. Joyce, então, telefonou para seu sobrinho, Rafael, filho de ÊNIO, que transportou Neiva até a agência da Caixa Econômica Federal. A beneficiada com a carona foi ouvida em juízo e afirmou que não houve solicitação de voto.

Os fatos demonstram que Neiva Suzana Cruz dos Santos é cadeirante e, na época, fazia uso de uma cadeira de rodas manual, necessitando do auxílio de terceiros para se movimentar pela cidade. Em sua oitiva, ela esclareceu que “Joyce já havia dado carona à declarante em outras oportunidades, especialmente quando moravam no mesmo bairro; que a declarante pega carona com todo mundo; que, naquele período, foi apenas essa vez que Joyce lhe forneceu carona”. Informou, ainda, que retornou da agência bancária com seu filho empurrando a cadeira de rodas e obteve uma carona no meio do caminho, com outra pessoa.

Conforme observado na sentença, “em relação ao transporte de Neiva até a agência da Caixa Econômica Federal, localizada no município de Palmeira das Missões, realizado por Rafael a pedido de Joyce, além de não estar demonstrada a ciência e anuência do candidato Ênio com tal conduta, os elementos de provas produzidos evidenciam que tratava-se de prática corriqueira no município de Palmeira das Missões, em razão da condição física de Neiva (cadeirante), inclusive realizada por outras pessoas, já tendo aquela fornecido transporte para esta em outras oportunidades, antes mesmo do período eleitoral.”

Com efeito, não há nos autos elemento que indique que a atuação de Joyce estava claramente alinhada à vontade de ÊNIO, ou que ele anuiu à conduta com a finalidade de obter o voto da eleitora. Assim, considerando que as provas não demonstram a participação de ÊNIO e tampouco a finalidade eleitoral da carona concedida a Neiva, não há como caracterizar a captação ilícita de sufrágio.

Quanto ao suposto oferecimento de caronas a outras pessoas, suscitado pelo MPE e ponderado pelo juízo a quo quando da prolação da sentença, também não houve comprovação, não merecendo reparos os fundamentos da decisão recorrida, verbis:

Em relação ao suposto oferecimento de caronas a outras pessoas, inclusive para o Estado de Santa Catarina, citadas pelo Ministério Público Eleitoral em sua representação, convém ressaltar que não foram elas comprovadas nos autos. Com efeito, tais alegações foram feitas em razão de conversas mantidas pelos representados e seus familiares – interceptadas pela autoridade policial, com autorização judicial –, nas quais aqueles mencionam a ocorrência de possível transporte de pessoas de Palmeira das Missões/RS para outros municípios. O Ministério Público Eleitoral cita: i) transporte da “comadre de Aline Machado Hescher, esposa de Ênio (degravação nº 04); ii) transporte da “vizinha de Ênio, realizada pelo próprio representado, para o Hospital de Passo Fundo/RS (degravação nº 32); iii) transporte de pessoas para os municípios de Ronda Alta/RS, Iraí e Chapecó/SC (não identificadas), para fins de realizar exames e consultas (degravações nº 35 e 36); Contudo, em que pese suas alegações, o representante não logrou identificar e individualizar cada uma das pessoas supostamente transportadas, o que inviabilizou suas oitivas em juízo, sob o amparo do contraditório e ampla defesa, razão pela qual não se mostra possível concluir pela existência dos fatos ou, ainda, pela motivação dos agentes ao realizar os supostos transportes de tais pessoas. Assim, inviável a responsabilização dos representados por tais fatos, conforme pretendido pelo Ministério Público Eleitoral, haja vista a ausência de comprovação de sua ocorrência, bem como do especial fim de agir dos agentes, visando a obtenção de votos em benefício da candidatura de Ênio. Reitera-se que, conforme jurisprudência consolidada pelos Tribunais Eleitorais, a cassação de diploma e/ou de mandato eletivo exige prova robusta da ocorrência dos fatos e, no caso da captação ilícita de sufrágio, da intenção do agente em beneficiar determinada pessoa em troca de seu voto, o que não restou comprovado nos autos. (Grifos nosso)

Com efeito, verifica-se que as afirmações efetuadas pelas testemunhas em seus depoimentos, como detidamente analisado na sentença, embora comprovem a ocorrência das caronas, não lograram êxito em relacionar os acontecimentos com a campanha eleitoral ou a tentativa de captação de sufrágio. Da mesma forma, o abuso de poder econômico não ficou demonstrado.

Ora, sem prova de que a realização do transporte tenha se dado com finalidade eleitoral, não há reconhecer as alegações do recorrente para fins de imputar a gravíssima sanção de cassação do diploma do candidato, destacando-se que tal medida requer conjunto probatório consistente e induvidoso, uma vez que implica o afastamento do resultado das urnas, expressão máxima da soberania popular.

Desta forma, constata-se a fragilidade do acervo probatório carreado aos autos para comprovar a gravidade e a relevância jurídica dos fatos de modo a atrair a incidência das gravosas sanções previstas no art. 41-A da Lei n. 9.504/97, impondo-se a manutenção da sentença que julgou improcedente a ação.

Em sequência, na mesma linha, irretocável a sentença prolatada pelo douto magistrado a quo, Dr. Davi de Souza Lopes, que, em percuciente e bem fundamentada análise, entendeu pela ausência de elementos comprobatórios mínimos para caracterização do alegado abuso de poder econômico, por parte dos recorridos, a qual, igualmente, agrego às minhas razões de decidir:

Da mesma forma, o alegado abuso de poder econômico, por parte dos representados, não ficou caracterizado nos autos.

Com efeito, conforme entendimento consolidado do Tribunal Superior Eleitoral, “configura abuso do poder econômico o uso excessivo e desproporcional de recursos patrimoniais, sejam eles públicos ou privados, de modo a comprometer a igualdade da disputa eleitoral e a legitimidade do pleito, em benefício de determinada candidatura. O ilícito exige evidências da gravidade dos fatos que o caracterizam, consoante previsto no art. 22, XVI, da LC 64/90.6” (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 060034373, Acórdão, Relator(a) Min. Benedito Gonçalves, Data 28/10/2022).

No caso em apreço, embora ausente o elemento subjetivo caracterizador da captação ilícita de sufrágio, ficou demonstrado o fornecimento de carona por parte dos representados para Neiva Suzana Cruz dos Santos e Ederson Goulart. Em relação à primeira, de um bairro do município de Palmeira das Missões/RS para a agência da Caixa Econômica Federal, no centro da cidade e, em relação ao segundo, do município de Palmeira das Missões/RS ao município de Tenente Portela/RS, localizado a menos de 100 quilômetros de distância.

Mesmo que se reconhecesse que o fornecimento do transporte para Neiva e Ederson tenha relação com as Eleições Municipais de 2020, ou seja, que visava beneficiar a candidatura de Ênio – o que, reitera-se, não ficou suficientemente comprovado –, tais fatos, por si só, são insuficientes para configurar abuso de poder econômico, porquanto não caracterizam o uso excessivo e desproporcional de recursos econômicos pelos representados, haja vista a comprovação de apenas dois fatos e a pequena distância entre o ponto de partida e de destino, a evidenciar a inexistência de gastos extraordinários por eles.

Assim, afasto igualmente o pedido de condenação dos representados pela prática de abuso de poder econômico. (Grifo nosso)

Repriso que está se averiguando, no caso dos autos, se o fornecimento de transporte, em duas ocasiões, caracterizaria abuso de poder econômico.

Não se depreende da prova dos autos que ÊNIO tivesse atuado com abuso do poder econômico em sua campanha ao patrocinar os referidos transportes, ou mesmo fornecer soma em dinheiro (R$ 50,00) para lanche, de forma a obter a simpatia dos eleitores (ou, no caso, da família desses, visto que um dos transportados sequer era eleitor) para articular votos para si, a caracterizar o emprego desproporcional de recursos patrimoniais privados, com gravidade suficiente para afetar o equilíbrio entre os candidatos e macular a legitimidade da disputa.

Portanto, também considero que os autos não demonstram, de forma robusta e estreme de dúvidas, a prática de abuso de poder econômico.

Em conclusão, nesse contexto apresentado nos presentes autos digitais, tenho que, por ocasião do pleito de 2020, não foi observada a ocorrência de abuso de poder econômico, pois as provas não indicaram a certeza do uso excessivo e desproporcional de meios pelo candidato que viesse a abalar a normalidade e a legitimidade do pleito, a contaminar de modo irreversível a regularidade do processo eleitoral, consoante o previsto no art. 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/90.

Logo, as alegações do recorrente não encontram amparo no acervo probatório, não ostentando força suficiente para acarretar a severa sanção de cassação do diploma de ENIO GILMAR DE ABREU GIACOMELLI.

Por conseguinte, na esteira da manifestação ministerial, impõe-se a manutenção da sentença que julgou improcedente a representação diante da debilidade probatória quanto aos requisitos exigidos para a caracterização da captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO por não conhecer das preliminares arguidas em contrarrazões e, no mérito, pelo desprovimento do recurso, mantendo a sentença a quo na sua íntegra, nos termos da fundamentação.

É o voto.