RecCrimEleit - 0000063-46.2015.6.21.0021 - Voto Relator(a) - Sessão: 29/11/2023 às 14:00

VOTO

1 - PRELIMINARES

1.1) Contexto fático e processual.

De início, considero necessário breve exposição acerca dos fatos que embasam a pretensão acusatória do Ministério Público Eleitoral, bem como dos eventos processuais ocorridos no presente feito.

Os fatos apurados decorrem de desdobramentos da Operação Collapus, deflagrada pelo Ministério Público Estadual na cidade de Colinas/RS no ano de 2012, com o objetivo de apurar a cobrança indevida de valores de usuários do Sistema Único de Saúde - SUS - por consultas, exames e cirurgias naquele município, sendo apontados como autores do esquema criminoso, dentre outros, o recorrente GILBERTO ANTÔNIO KELLER e sua esposa, Cristiane Keller.

As investigações originaram-se na Justiça Estadual, sob a supervisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, haja vista que GILBERTO, à época dos fatos, ocupava o cargo de prefeito daquela municipalidade.

Diante da existência de possíveis crimes eleitorais conexos àqueles apurados pela Justiça Comum, autorizou-se o compartilhamento das provas até então produzidas com o Ministério Público Eleitoral, que propôs a ação penal em apreço e, também, a ação de investigação judicial eleitoral - AIJE n. 884-55.2012.6.21.0021 -, na qual os então representados foram condenados pela prática de abuso de poder, captação ilícita de sufrágio e condutas vedadas, com a consequente cassação dos mandatos de GILBERTO e Marcelo Schroer, Prefeito e Vice-Prefeito eleitos em 2012 (ID 45073723, fls. 10-17, e ID 45073725).

A denúncia oferecida pelo Ministério Público Eleitoral com atuação perante a 21ª Zona Eleitoral imputa a GILBERTO e a Cristiane Keller a prática de 5 (cinco) fatos correspondentes ao delito de corrupção eleitoral (art. 299, do Código Eleitoral) e de 3 (três) fatos configuradores do delito de "peculato-desvio" (art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67) (aditamento à denúncia de ID 45073743, fls. 1/2, recebido pelo Juiz Eleitoral em 03.11.2016 - ID 45073743, fl. 10).

Após processamento do feito, o Juízo da 21ª Zona Eleitoral julgou procedentes os pedidos formulados pelo Ministério Público Eleitoral e condenou GILBERTO à pena de 7 anos, 9 meses e 10 dias de reclusão, em razão da prática dos crimes do art. 299 do CE, por cinco vezes, e do art. 312 do CP, por três vezes, em continuidade delitiva (art. 71 do CP); e condenar Cristiane Keller à pena de 6 anos, 4 meses e 20 dias de reclusão, em razão da prática dos mesmos crimes (sentença de ID 45073805 e 45073806).

Em análise de recurso exclusivo da defesa, este Tribunal reconheceu, de ofício, a nulidade parcial da sentença, em razão da ausência de juntada, aos autos, das mídias referentes às escutas ambientais e às interceptações telefônicas realizadas durante a fase investigatória. Na mesma ocasião, postergou a análise do pedido de majoração dos honorários fixados ao defensor dativo para o desfecho da demanda (ID 45073813 e 45073814, fls. 1-3).

Foram opostos embargos de declaração pela Procuradoria Regional Eleitoral (ID 45073814, fls. 17-22, e 45073815, fls. 1-5), e este Tribunal manteve a decisão que, em suma, reconhecera a nulidade da sentença; extinguira a punibilidade de Cristiane Keller em relação a todos os crimes pelos quais condenada, e de GILBERTO em relação aos crimes previstos no art. 299 do Código Eleitoral, ao reconhecer a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva (ID 45073816, fls. 21-26, e 45073816, fls. 1-7).

Os autos foram devolvidos à origem. Na sequência, o Ministério Público Eleitoral providenciou a juntada do conteúdo integral das (1) conversas telefônicas interceptadas, e (2) escutas ambientais realizadas (ID 45073820 a 45073855).

Após a apresentação de razões pelas partes, foi proferida nova sentença, na qual houve a condenação de GILBERTO ANTÔNIO KELLER à pena de 4 (quatro) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semiaberto, bem como a 45 (quarenta e cinco) dias-multa, no valor unitário de 1/30 do salário-mínimo vigente à época dos fatos, em razão da prática, por três vezes e em continuidade delitiva (art. 71 do CP), do crime descrito no art. 312 do CP (Fatos 4º, 5º e 7º da denúncia) (sentença de ID 45073868).

A defesa, então, opôs embargos de declaração (ID 45073874), acolhidos pelo juízo recorrido, para fins de integrar a sentença, fixando o valor de R$ 536,83 (quinhentos e trinta e seis reais e oitenta e três centavos) em honorários ao advogado dativo nomeado (ID 45073881).

Após, GILBERTO ANTÔNIO KELLER apresentou o recurso de ID 45073885, objeto da apreciação da presente decisão.

 

1.2) Admissibilidade recursal.

O recurso é regular, tempestivo e comporta conhecimento.

Foram opostos embargos de declaração contra a sentença, a defesa foi intimada da decisão em 19.5.2022 (ID 45073883) e interpôs recurso de apelação em 24.5.2022 (ID 45073885), dentro, portanto, do prazo de 10 (dez) dias previstos no art. 362, do Código Eleitoral.

 

1.3) Prescrição.

No presente item, uma vez que reconhecida a prescrição relativa a todos os crimes em que fora denunciada Cristiane Keller, já falecida, e em relação aos crimes de "corrupção eleitoral" (art. 299 do Código Eleitoral) pelos quais fora denunciado o recorrente GILBERTO (acórdão de ID 45073816, fls. 21-26, e 45073816, fls. 1-7), resta apenas a análise dos crimes de "peculato-desvio" (Fatos 4º, 5º e 7º da denúncia) atribuídos ao recorrente, que teriam ocorrido entre os meses de julho a novembro de 2012.

A denúncia foi recebida em 16.10.2015 (ID 45073738, fl. 16).

Conforme a sentença de ID 45073868, GILBERTO foi condenado à pena de 4 (quatro) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, em razão da prática, por três vezes e em continuidade delitiva (art. 71 do CP), do crime descrito no art. 312 do CP (Fatos 4º, 5º e 7º da denúncia), sendo atribuído a cada um dos crimes, em separado, o apenamento definitivo de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão.

Não houve recurso de parte do Ministério Público Eleitoral.

Logo, tratando-se de recurso exclusivo da defesa, em observância ao disposto no art. 110, § 1º, do Código Penal e à Súmula n. 146 do Supremo Tribunal Federal, a prescrição da ação penal regula-se pela pena em concreto estabelecida na sentença, uma vez que se torna inviável sua majoração, em homenagem ao princípio da non reformatio in pejus.

Ademais, nos termos do art. 119 do Código Penal e do entendimento sumular n. 497, também do STF, a prescrição - causa extintiva da punibilidade - incidirá de forma isolada sobre a pena aplicada para cada um dos crimes, devendo ser desconsiderado o aumento de pena em decorrência da continuidade delitiva:

Súmula 497 STF: Quando se tratar de crime continuado, a prescrição regula-se pela pena imposta na sentença, não se computando o acréscimo decorrente da continuação.

Assim, para fins de análise do prazo prescricional, há que se considerar o apenamento de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, aplicado para cada um dos crimes pelos quais o recorrente restou condenado, e desprezar o acréscimo decorrente da continuidade delitiva. Desse modo, a prescrição ocorreria em 8 (oito) anos, nos termos do art. 109, inc. IV, do Código Penal.

Não há, portanto, que se falar em prescrição, considerando que entre a data do recebimento da denúncia, 16.10.2015, e a data da prolação da sentença penal condenatória, 24.02.2022 (marcos interruptivos do prazo prescricional, art. 117, incs. I e IV, CP), não houve o decurso do prazo de 8 (oito) anos, mantendo-se hígida a pretensão punitiva estatal.

 

1.4) Emendatio libelli, art. 383 do Código de Processo Penal.

No que tange aos crimes cuja pretensão punitiva estatal ainda se mantém - fatos 4º, 5º e 7º da denúncia -, o Ministério Público Eleitoral, inicialmente, denunciou o recorrente GILBERTO pela prática do crime do art. 312 do Código Penal (peculato), por três vezes.

Posteriormente, levando em consideração que GILBERTO, à época dos fatos, ocupava o cargo de prefeito de Colinas/RS, o Ministério Público Eleitoral apresentou, em 25.10.2016, aditamento à denúncia (ID 45073743, fls. 1-2), para fins de modificar a classificação jurídica de tais fatos para o crime disposto no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 ("peculato-desvio)", aditamento esse recebido pelo juízo de primeiro grau em 03.11.2016 (ID 45073743, fl. 10).

Todavia, e em que pese a modificação jurídica promovida pelo Ministério Público Eleitoral, a sentença penal veiculou a condenação de GILBERTO pela prática do crime descrito no art. 312 do CP (ID 45073868).

Entendo que, aqui, cabe reclassificação jurídica dos fatos descritos.

Explico.

Embora bastante semelhantes, aliás, com idênticas elementares, os tipos penais não se confundem, pois a hipótese prevista no art. 312 do Código Penal pode ser praticada por funcionários públicos em geral, ao passo que o delito previsto no art. 1°, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 substancia comando cuja previsão é especificamente destinada àqueles que ocupam o cargo de prefeito:

Art. 312 do CP: Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

Art. 1º do Decreto-Lei 201/67: São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal (sic), sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

I - apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;

Sublinho: ainda que não tenha observado o aditamento à denúncia, não há nulidade processual na sentença - ou prejuízo ao exercício da defesa pelo recorrente -, pois o acusado há de se defender dos fatos descritos na denúncia e não da qualificação jurídica atribuída.

Ademais, a condição de prefeito de GILBERTO restou adequadamente descrita na inicial acusatória e em aditamento da denúncia, mostrando-se aplicável ao caso o disposto no art. 383 do Código de Processo Penal (emendatio libelli), apenas para fins de realizar a reclassificação jurídica aos fatos descritos na sentença penal a quo.

Em semelhante sentido, assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

[...] CRIME DE RESPONSABILIDADE DE PREFEITO. APROPRIAÇÃO DE VERBA PÚBLICA. DEFICIÊNCIA DE DEFESA. NULIDADE RELATIVA. SÚMULA 523 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADVOGADOS DATIVOS. DILIGÊNCIA NA ATUAÇÃO. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. AUSÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. Consolidou-se no âmbito dos Tribunais Superiores o entendimento de que apenas a falta de defesa técnica constitui nulidade absoluta da ação penal, sendo certo que eventual alegação de sua deficiência, para ser apta a macular a prestação jurisdicional, deve ser acompanhada da demonstração de efetivo prejuízo para o acusado, tratando-se, pois, de nulidade relativa. Enunciado 523 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. 2. Não se pode qualificar como defeituoso o trabalho realizado pelos advogados que patrocinaram o paciente, pois atuaram de acordo com a autonomia que lhes foi conferida por ocasião da habilitação ao exercício da advocacia, nos termos do artigo 7º, inciso I, da Lei 8.906/1994. 3. Diante de um insucesso, para o crítico sempre haverá algo a mais que o causídico poderia ter feito ou alegado, circunstância que não redunda, por si só, na caracterização da deficiência de defesa, a qual, conforme salientado, depende da demonstração do prejuízo para o acusado, não verificado na hipótese. INOBSERVÂNCIA AO PROCEDIMENTO PREVISTO PARA A MUTATIO LIBELLI. CONDUTA INICIALMENTE CAPITULADA COMO PECULATO. CONDENAÇÃO POR CRIME DE RESPONSABILIDADE DE PREFEITO. FATOS DEVIDAMENTE NARRADOS NA INICIAL. EMENDATIO LIBELLI. INEXISTÊNCIA DE PREJUÍZO EM RAZÃO DA NÃO ADOÇÃO DO PROCEDIMENTO ESPECIAL PREVISTO NO DECRETO-LEI 201/1967. NULIDADE INEXISTENTE.1. O princípio da correlação entre a denúncia e a sentença condenatória representa no sistema processual penal uma das mais importantes garantias ao acusado, porquanto descreve balizas para a prolação do édito repressivo ao dispor que deve haver precisa correspondência entre o fato imputado ao réu e a sua responsabilidade penal. 2. Havendo adequada descrição dos fatos na exordial acusatória - como ocorre na hipótese -, não há ofensa ao referido postulado quando o magistrado lhes atribui definição jurídica diversa da proposta pelo órgão acusatório. […] (HC n. 289.583/TO, relator Ministro Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador Convocado do TJ/PE), Quinta Turma, julgado em 8/9/2015, DJede 15/9/2015.)

 

RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. PECULATO. CRIME PRATICADO POR PREFEITO. DECRETO-LEI N. 201/1967. EMENDATIO LIBELLI. POSSIBILIDADE. MATERIALIDADE DO FATO CRIMINOSO. EXAME DE CORPO DE DELITO. PRESCINDIBILIDADE. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO MAGISTRADO. RECURSO EXCLUSIVO DA DEFESA. AGRAVAMENTO DA PENA IMPOSTA. VEDAÇÃO LEGAL. PRINCÍPIO DO NE REFORMATIO IN PEJUS. I. A exigência legal de exposição circunstanciada do fato criminoso vem ao encontro da garantia insculpida no texto da Constituição da República no sentido de assegurar ao acusado ampla defesa e contraditório (art. 5º, inciso LV). II. A alteração da definição jurídica dada à conduta praticada pelo Recorrente não teve o condão de alterar os fatos contra os quais teve ampla possibilidade de apresentar defesa. III. Sublinhe-se, ademais, que a qualidade de ex-Prefeito da Municipalidade constou expressamente da denúncia e foi determinante para que a peça fosse recebida, em Sessão Plenária, perante o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte. IV. Não se trata de hipótese de mutatio libelli, cuja inobservância das providências contidas no art. 384 do Código de Processo Penal os Recorrentes pretendem ver reconhecida. V. Os autos foram remetidos ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, exclusivamente, por força das apelações interpostas pela Defesa. VI. A aplicação aos Recorrentes da pena acessória de inabilitação para o exercício da função pública conduz à inarredável conclusão de agravamento da condenação que anteriormente ostentavam, o que não se admite (art. 617 do Código de Processo Penal). Precedentes. VII. Recurso Especial parcialmente provido para afastar da condenação dos Recorrentes a pena de inabilitação para o exercício da função pública. (REsp n. 964.234/RN, relatora Ministra Regina Helena Costa, Quinta Turma, julgado em 17/12/2013, DJe de 3/2/2014.) 

Diante disso realizo, de ofício, a reclassificação jurídica dos fatos pelos quais GILBERTO ANTÔNIO KELLER restou condenado na sentença de ID 45073868, enquadrando-os no disposto no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67, conforme aditamento da denúncia apresentado pelo Ministério Público Eleitoral e recebido pelo juízo a quo, a teor do art. 383 do Código de Processo Penal.

 

2 - MÉRITO

2.1) Crimes de "peculato-desvio", art. 1°, inc. III, do Decreto-Lei n. 201/67.

Superadas as questões preliminares, analiso o mérito do recurso interposto por GILBERTO ANTÔNIO KELLER, notadamente quanto aos crimes de "peculato-desvio" (art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67) pelos quais restou condenado pela Juíza Eleitoral da 21ª Zona, sediada em Estrela/RS.

Conforme consta da denúncia, durante os meses de setembro e novembro do ano de 2012, no decorrer da campanha para as eleições municipais de Colinas/RS, o recorrente GILBERTO ANTÔNIO KELLER, utilizando-se das prerrogativas do cargo público então ocupado (prefeito), apropriou-se e desviou, em proveito de terceiros, (a) um tubo de oxigênio, entregue a Aldino Hubert; (b) uma carga de cascalho, entregue a Romeu Hass; e (c) diversos materiais de construção, avaliados em R$ 2.193,00, entregues a Erni de Campos, visando angariar a simpatia dos beneficiados e, por consequência, seus votos em favor de sua candidatura à reeleição.

Os fatos estão assim narrados na denúncia:

4º FATO:

Em dia e hora não perfeitamente esclarecidos nos autos, mas certamente entre os meses de setembro e novembro de 2012, na cidade de Colinas/RS, os denunciados Gilberto Antônio Keller e Cristiane Keller, em comunhão de esforços e unidade de desígnios, apropriaram-se e desviaram, em proveito próprio e alheio, de um tubo de oxigênio, bem público, de propriedade do Município de Colinas/RS, de que tinham a posse em razão dos cargos que ocupavam - respectivamente Prefeito Municipal e Secretária Municipal da Saúde.

Na ocasião, os denunciados, apropriaram-se de um tubo de oxigênio, de propriedade da Prefeitura Municipal de Colinas, desviando-o e entregando-o para o eleitor Aldino Hubert. O referido tubo de oxigênio encontrava-se no Posto de Saúde e foi entregue ao eleitor com o objetivo de angariar a simpatia e, consequentemente, o voto de Aldino e sua família.

5º FATO:

Em dia e hora não perfeitamente esclarecidos nos autos, mas certamente entre os meses de outubro e novembro de 2012, na cidade de Colinas/RS, os denunciados Gilberto Antônio Keller e Cristiane Keller, em comunhão de esforços e unidade de desígnios, apropriaram-se e desviaram, em proveito próprio e alheio, de uma carga de cascalho, bem público, de propriedade do Município de Colinas, de que tinham a posse em razão dos cargos que ocupavam - respectivamente Prefeito Municipal e Secretária Municipal da Saúde.

Na ocasião, os denunciados, apropriaram-se de uma carga de cascalho, de propriedade da Prefeitura Municipal de Colinas, desviando-a e entregando-a para o eleitor Romeu Hass, com o objetivo de angariar a simpatia deste e, consequentemente, seu voto.

[...]

7º FATO:

Em dia e hora não perfeitamente esclarecidos nos autos, mas certamente entre os meses de julho e outubro de 2012, na cidade de Colinas/RS, os denunciados Gilberto Antônio Keller e Cristiane Keller, em comunhão de esforços e unidade de desígnios, apropriaram-se e desviaram, em proveito próprio e alheio, de 21 cal hidráulica, 3m³ de areia, 3m³ de brita, 10 cumeeiras, 200 parafusos telheiros, 10 pacotes de prego, 5 sacos de cimento, 11m² de madeira pinus, 10 telhas, 40 parafusos telheiros, 60 metros de roda pé, uma porta e 09 telhas, bens avaliados em R$ 2.193,00 (dois mil, cento e noventa e três reais), de propriedade do município de Colinas, de que tinha a posse em razão dos cargos que ocupavam - respectivamente Prefeito Municipal e Secretária Municipal da Saúde.

Na ocasião, utilizando-se da Lei Municipal 1.321-03/2011, que permitia a concessão de benefícios eventuais, forneceram ao eleitor Erni Campos, por diversas vezes, auxílio material de construção. Conforme se depreende da interceptação telefônica de fls. 636/638, volume III, os denunciados forneciam benefícios ao eleitor Erni Campos, porém, como o benefício abrangido pela Lei Municipal era por família, Gilberto e Cristiane se utilizavam de nomes de terceiros, todos da família Campos, para que Erni pudesse receber tais benefícios. Desta forma, os denunciados utilizavam-se da referida lei angariar a simpatia da família e, consequentemente, os votos.

Na visão do MINISTÉRIO PÚBLICO ELEITORAL, os fatos acima descritos configuraram a prática do crime do art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67 (aditamento à denúncia de ID 45073743, fls. 1-2), que assim preceitua:

Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores:

I - apropriar-se de bens ou rendas públicas, ou desviá-los em proveito próprio ou alheio;

Ou seja, o crime de responsabilidade possui relação de especialidade com o crime de peculato descrito no art. 312 do Código Penal, pois o sujeito ativo é, exclusivamente, o prefeito. Ademais, o referido dispositivo prevê duas figuras típicas: (i) "peculato-apropriação", que ocorre quando o agente se apropria, invertendo a posse de bens ou rendas públicas de que tenha a administração na condição de prefeito (passando a utilizá-las como se dono fosse), e (ii) o "peculato-desvio", que ocorre quando o prefeito dá destinação diversa a bens ou rendas públicas, visando a proveito próprio ou de outrem.

O STJ, em precedente que serve como orientação ao presente caso, consignou que "[...] da leitura do inc. I do art. 1º do Decreto-lei 201/67, na modalidade imputada ao paciente, observa-se que ele cuida de uma espécie de peculato-desvio, que se distingue do previsto no art. 312 do Código Penal apenas no tocante ao sujeito ativo, que no caso do Decreto-lei 201/67 é o Prefeito Municipal. Assim como no peculato-desvio descrito no Estatuto Repressivo, a consumação do ilícito disposto no inc. I do art. 1º do Decreto-lei 201/67 ocorre quando o Prefeito efetiva o desvio de bens ou rendas públicas em proveito próprio ou de terceiro" (HC n. 204.956/SP, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 18/9/2012, DJe de 3/10/2012).

Ainda, ao tratar do elemento subjetivo do tipo (dolo específico) do peculato-desvio, a jurisprudência tem entendido ser necessária a demonstração da vontade e consciência do agente em dar à coisa fim diverso daquele determinado ou previsto. Neste sentido o seguinte precedente, ainda que trate do tipo do art. 312 do CP:

PROCESSUAL PENAL E PENAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO CONHECIDO. CRIME DE PECULATO-DESVIO E DE ASSUNÇÃO DE OBRIGAÇÃO NO ÚLTIMO SEMESTRE DO MANDATO. ARTS. 312 E 359-C DO CÓDIGO PENAL - CP. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. INEXISTÊNCIA DE DOLO ESPECÍFICO NO DELITO DE PECULATO. NÃO IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 283 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - STF. INEXISTÊNCIA DE CONFRONTO COM JULGADO DESTA CORTE. ART. 359-C DO CÓDIGO PENAL. DELITO PRÓPRIO. SUJEITO ATIVO. TITULAR DE MANDATO OU LEGISLATURA. PARTICIPAÇÃO CRIMINOSA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS N. 282 E N. 356 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. A argumentação do recorrente não é capaz de infirmar os fundamentos do acórdão recorrido na medida em que não impugna especificamente a necessidade de configuração do dolo específico da parte recorrida no delito insculpido no art. 312, caput, do Código Penal, que é a obtenção de proveito próprio ou alheio. Impõe-se o óbice da Súmula n. 283 do Supremo Tribunal Federal. 2. "No delito de peculato-desvio, previsto no art. 312, caput, segunda figura do Código Penal, o dolo é representado pela consciência e vontade de empregar a coisa para fim diverso daquele determinado, aliado ao elemento subjetivo do injusto, consistente no especial fim de agir, que é a obtenção do proveito próprio ou alheio" (REsp 1.257.003/RJ, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe12/12/2014). (AREsp n. 1.415.425/AP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 19/9/2019, DJe de 24/9/2019).

Ressalto, ademais, a ciência de que houve a cassação, por esta Justiça Especializada, dos diplomas de GILBERTO e de seu vice, Marcelo Schroer, devido à prática de atos de abuso de poder, captação ilícita de sufrágio e condutas vedadas, em decisão proferida nos autos da AIJE n. 884-55.2012.6.21.0021.

Muito embora exista a salutar independência de esferas, que podem, inclusive, redundar em sopesamento probatório diferenciado e decisões diversas, é situação que merece, ao menos, indicação. Esclareço, também, não olvidar de legislação municipal de Colinas/RS que autorizava, em abstrato, a entrega dos bens destinados aos eleitores. A contextualização mostra-se relevante, conforme se verá, pois diz respeito à divisão de competências de legislação, determinada pela Constituição Federal.

Passo, então, ao enfrentamento individualizado dos fatos delituosos pelos quais o recorrente GILBERTO ANTÔNIO KELLER restou condenado.

 

2.1.1) 4º Fato da denúncia - Desvio de um tubo de oxigênio em benefício de Aldino Hubert.

Conforme se extrai da denúncia e da sentença penal condenatória, entre os meses de setembro a novembro de 2012, o recorrente GILBERTO ANTÔNIO KELLER, então Prefeito de Colinas/RS e candidato à reeleição, em comunhão de esforços com sua esposa, Cristiane Keller, Secretária Municipal da Saúde, aproveitando-se dos cargos públicos ocupados, desviou um tubo de oxigênio pertencente ao patrimônio público municipal em favor do eleitor Aldino Hubert. A conduta foi praticada com viés eleitoreiro, qual seja, "angariar a simpatia e, consequentemente, o voto de Aldino e sua família".

Em suas razões recursais, o recorrente sustenta que o fornecimento do oxigênio a Aldino Hubert ocorreu em observância aos devidos procedimentos legais, sendo realizado em caráter de urgência e visando salvaguardar a vida do paciente, haja vista a demora no fornecimento pela Secretaria Estadual de Saúde.

Em seu interrogatório, GILBERTO discorreu sobre o início de sua gestão como prefeito em Colinas/RS, alegando se tratar de cidade com muitas precariedades e deficiências e que, em seu mandato, pôde providenciar diversas melhorias, como a construção de creches e escola de turno integral. Especificamente sobre o fato, asseverou que Aldino era paciente que tinha indicação de uso de oxigênio e, portanto, independia se a necessidade havia ocorrido em ano eleitoral ou não, pois o equipamento deveria ser providenciado; que não houve a intenção de angariar voto, mas apenas de cumprir com sua função administrativa de garantir a saúde do paciente (ID 45073801).

Em que pesem os argumentos apresentados, as provas produzidas durante a fase investigatória, e confirmadas judicialmente, evidenciam a conduta dolosa do recorrente, consistente em desviar os bens pertencentes ao Município de Colinas/RS com a finalidade de reeleição ao cargo de prefeito.

Ouvida em juízo, Dóris Dora Hubert, esposa de Aldino, sustentou que, em determinado dia, foi com seu marido até a médica, pois ele estava com "falta de ar", pedindo se poderia ter oxigênio em casa, visto que "não aguentava mais"; que, após a consulta, foram falar com Cristiane, esposa do recorrente, a qual disse que um carro de Santa Cruz traria oxigênio para Colinas/RS, para uma outra pessoa, questionando "se nós queria também", com o que concordaram; que questionaram Cristiane quanto deveria ser pago, ao que ela disse que custaria R$ 250,00, dos quais R$ 100,00 a prefeitura pagaria e R$ 150,00 deveriam ser pagos pelo paciente; que se não fosse pelo oxigênio, o marido da declarante não estaria mais vivo; que pagaram o valor de R$ 150,00 mensalmente, durante 8 (oito) meses; que depois desse período, o oxigênio "veio pelo Estado", a partir do que a declarante não precisou pagar mais; que não houve o ajuizamento de ação judicial, sendo o oxigênio fornecido a pedido do médico; que os valores pagos foram entregues diretamente no posto de saúde para Cristiane, não sendo fornecido recibo; que durante o período eleitoral de 2012, o recorrente GILBERTO esteve na casa da declarante a fazer visita, oportunidade em que pediu "se vocês me ajudam, daí nós também te ajudamos"; que a ajuda pedida era relacionada ao fornecimento gratuito do oxigênio, sendo que GILBERTO ligou para Cristiane para saber se seria possível; que o recorrente disse que iria conseguir a ajuda; que, após as eleições, a declarante ligou para Cristiane questionando sobre o fornecimento do oxigênio; que, mesmo que não tivesse recebido o oxigênio, iria votar em GILBERTO, pois já haviam votado na eleição anterior; que não lembra direito, mas o último mês que pagou pelo oxigênio foi em setembro ou outubro de 2012; que não sabe se o oxigênio que foi entregue veio do tio de Cristiane, mas sabe que veio do "Vale do Sol"; que lembra que o Estado havia indeferido o pedido para fornecimento do oxigênio, mas que o médico "mandou um papel" dizendo que Aldino tinha direito, e que antes Aldino não fazia uso de oxigênio, não sabendo se o Estado não quis fornecer (ID 45073749).

Roseli Alonia Mohr sustentou ser técnica de enfermagem no Município de Colinas/RS, tendo ciência de que foi encaminhado um tubo de oxigênio ao domicílio de Aldino, acreditando que isso ocorreu um pouco antes do período eleitoral de 2012; que Cristiane ocupava o cargo de Secretária de Saúde à época dos fatos; que o posto de saúde possui um tubo de oxigênio para uso emergencial; que sabe que um parente de Cristiane, de nome Eldo, utiliza um tubo de oxigênio cedido pelo Posto de Saúde, bem como que este faleceu durante referido período eleitoral; que não sabe se o tubo utilizado por Eldo foi repassado para Aldino, acreditando que cada um tinha o seu; que aconteciam algumas situações estranhas no Posto de Saúde durante o período eleitoral, e que percebia preferência a apoiadores, com consultas e exames; que realizou cobranças de pacientes, por ordem de Cristiane, sendo cobrado o valor que estava determinado na solicitação; que apareciam algumas prescrições sem valor especificado, e valores em outras; que o município fornece oxigênio aos pacientes até a distribuição pelo Estado, mas o caso de Aldino era diferente, pois pagava pelo oxigênio.

Conforme consta nos autos, Aldino Hubert era portador de doença pulmonar e, em razão da dificuldade de respiração, passou a fazer uso diário de oxigênio, como forma complementar ao tratamento médico realizado. Inicialmente, o fornecimento do oxigênio foi intermediado pela Secretaria Municipal de Saúde de Colinas/RS, à época conduzida por Cristiane Keller, que cobrou mensalmente, por oito meses, R$ 150,00 pelo oxigênio fornecido a Aldino, alegando que o restante - R$ 100,00 - seria pago pela Prefeitura de Colinas/RS. Contudo, já durante o período de campanha eleitoral, e após a visita de GILBERTO à casa de Aldino e Dóris, o Município de Colinas/RS passou a custear integralmente o oxigênio entregue ao eleitor.

Nota-se, ressalto, clara mudança de procedimento da Secretaria Municipal de Saúde de Colinas/RS no tocante ao fornecimento do oxigênio a Aldino - cujo recebimento gratuito é assegurado pela Constituição Federal a todos os cidadãos (art. 196). Tal modificação, aliás, ocorreu após o então candidato à reeleição GILBERTO visitar a residência de Aldino e receber o pedido de auxílio em troca de "ajuda" na campanha eleitoral, conforme se extrai da transcrição da conversa mantida entre GILBERTO e a falecida esposa, a corré Cristiane Keller, em 3 de outubro de 2012 (ID 45073628, fls. 4/5):

"GILBERTO ANTONIO KELLER: Eu tôaqui no Dino, sobre aquela história do oxigênio dele, [tu] […]

CRISTIANE KELLER: Assim, ó, a gente encaminhou pra Décima […], tá. Só que veio negativado. Ele não… não tem… não… pelo exame que ele fez. Mas a gente não falou nada pra ele ainda.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Hunhum. Tá.

CRISTIANE KELLER: A gente ia falar só depois […]

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá.

CRISTIANE KELLER: Veio o retorno da Décima Sexta que ele não precisaria usar oxigênio.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Ãhan. Tá.

CRISTIANE KELLER: Então, assim ó, como agora o Eldo conseguiu um ali do coisa…

GILBERTO ANTONIO KELLER: Hum.

CRISTIANE KELLER: … nós ia dizer que a gente vai pegar um daqui e vai dar pra ele.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá. Tem como fazer isso?

CRISTIANE KELLER: Tem.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Posso dizer?

CRISTIANE KELLER: Pode.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá, um daqui, tu diz, aonde?

CRISTIANE KELLER: Aquele…

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá.

CRISTIANE KELLER: … concentrador que tava lá no Eldo, que agora ele pegou um da Unimed, né. (...)

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá.

CRISTIANE KELLER: Aí nós vamodar esse que tava no Eldo pra ele.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá.

CRISTIANE KELLER: E daí ele pode devolver.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Pra quando tu consegue isso?

CRISTIANE KELLER: Quando o cara vem de novo?

GILBERTO ANTONIO KELLER: Só um pouquinho. O técnico? (...)

CRISTIANE KELLER: Esse mês ele já pagou, eu acho. Agora, mês de outubro ele não pagou ainda.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Não, ele disse que vem… ele… ele deve tá por chegar, ele disse.

CRISTIANE KELLER: Tá. E dai, quando ele tiver, daí a Dóris pode me ligar, ele pode recolher os [aparelhos].

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá. Tá bom.

CRISTIANE KELLER: Tá.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá bom. Valeu.

CRISTIANE KELLER: Tá? Daí diz que a gente conseguiu mais um aqui no posto pra ele.

GILBERTO ANTONIO KELLER: Tá bom. Valeu" (grifos deste relator).

Para além do direito constitucional de Aldino Hubert em receber, gratuitamente, dos entes públicos, o oxigênio necessário à manutenção de sua saúde e qualidade de vida, a prova evidencia que tal fornecimento, independentemente do pagamento dos valores mensais até então despendidos, só ocorreu após a visita realizada à residência do eleitor e a promessa de "auxílio" em sua campanha eleitoral.

A situação se extrai, inclusive, da conversa interceptada com autorização judicial, ocorrida em 16.10.2012, após a reeleição de Gilberto, na qual Dóris liga para Cristiane cobrando o fornecimento gratuito do oxigênio, conforme haviam combinado (ID 45073651, pgs. 23/25):

"DÓRIS: Como é que é com aquele oxigênio?

CRISTIANE KELLER: Ele… já pegou?

DÓRIS: Mas ele não pegou ainda, mas aí a gente tem que continuar a pagar!

CRISTIANE KELLER: Não, não, nós deixamo combinado com ele, naquele dia, ele vai (ininteligível) ali, e nós vamos levar o outro. Mas daí ele sabe que nós não vamo mais ficar. [Não precisa] te preocupar com isso!

(…)

DÓRIS: Mas ele vai pegar em dezembro esse, [porque ele viajou] agora, ele disse pra… que vocês ia trazer … trazer aquele pra nós… nós guardar ele. E se a gente usa, a gente tem que pagar.

CRISTIANE KELLER: Não, não, não precisa te preocupar, eu combinei com ele. Eu vou ligar pra ele de novo entã.

DÓRIS: Tá.

(...)

DÓRIS: … nós também ajudemovocês: nós cumprimo com a nossa promessa!

CRISTIANE KELLER: Isto.

DÓRIS: Agora vocês também tem que cumprir, né?! (...)".

(…)

CRISTIANE KELLER: Tá, não, não te preocupa Dóris. (Grifei.)

Ou seja, após a reeleição de GILBERTO, Dóris contatou Cristiane e cobrou o fornecimento do oxigênio gratuito para seu marido, conforme haviam combinado. Tal fato evidencia o dolo (elemento subjetivo do tipo) na conduta do agente que, visando satisfazer interesse pessoal, alterou a forma de distribuição de oxigênio até então adotada, e passou a fornecê-lo gratuitamente ao eleitor, não por reconhecer o direito à saúde de Aldino, mas para retribuir, com bens pertencentes à administração pública, o voto do eleitor e de sua família.

Nessa linha, o depoimento de Camila Maria Oliveira, transcrito na sentença a quo:

"[...] Aldino era um paciente que necessitava da oxiterapia, a qual é fornecida pelo SUS por processo administrativo, sem custo algum. Narrou que Aldino tinha que pagar um valor mensal, entretanto, o oxigênio devia ser concedido gratuitamente aos pacientes. A depoente fazia apenas os laudos. Havia outro paciente que recebia gratuitamente o tubo de oxigênio, sendo parente de Cristiane. Não presenciou os denunciados prometerem um tubo de oxigênio gratuito em troca de votos, mas sabia do fato pois Aldino comentou algo. Referiu que Gilberto e Cristiane solicitavam que a depoente liberasse coisas que não poderiam ser feitas. Afirmou que as pessoas recebiam as coisas em troca de ajuda. Referiu que fazia parte da Assistência Social. Narrou que "todo mundo ganhava tijolo", independente da condição social, pois, devido a uma lei municipal, havia uma olaria que utilizava as máquinas do município e dava tijolos em troca, os quais seriam utilizados em obras da Prefeitura e, o excedente, distribuído para a população. Relatou que, com frequência, os denunciados davam benefícios para conseguir a simpatia e os votos dos munícipes. As pessoas se dirigiam até a sala do Prefeito e, após, este ou a Secretária "mandavam liberar". A grande maioria passava pela Assistência Social, pois necessitavam de um laudo para ser apresentado ao Tribunal de Contas, caso necessário, sendo que para alguns "fazia direto", com base em uma antiga lei municipal. Confirmou que Erni de Campos e sua família estavam sempre recebendo muitos benefícios, desde cesta básica a materiais de construção. Alegou que tais pessoas trabalhavam, alguns eram aposentados e não se encontravam em situação de vulnerabilidade. Asseverou que algumas vezes tentou trancar alguns benefícios em função da renda dos mesmos, mas Cristiane e Gilberto davam ordens, por telefone, que deveria concedê-los. Confirmou que havia um benefício para reformas, assim, os denunciados utilizavam os nomes dos familiares para fracionar a concessão dos materiais de construção. Geralmente era Cristiane quem dava as ordens para a depoente executar, mas em algumas ocasiões era Gilberto. Arguiu que havia tratamento diferenciado conforme a simpatia do eleitor, inclusive, chamavam os eleitores do partido de oposição de "engessados", não sendo concedido o benefício e dificultando a obtenção dos auxílios. Relatou que, se a pessoa necessitar de oxigênio, deve se dirigir até a Secretaria de Saúde e solicitar, assim, vai ser encaminhado um processo administrativo frente ao Estado. Se a necessidade foi urgente, fica a cargo do Município arcar com as despesas, sem cobrar do paciente. Afirmou que várias vezes foi ordenada a liberar coisas para as pessoas narradas na denúncia (ID 45073868)

Tais situações demonstram o acerto da sentença recorrida ao identificar que a concessão de bens e serviços públicos aos munícipes serviram, em algumas ocasiões, como moeda de troca de votos a GILBERTO.

Julgo, portanto, que as elementares do crime de "peculato-desvio" (art. 1°, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67) restaram demonstradas, na medida em que a conduta do agente evidenciou o dolo em desviar, conforme ressaltado pela Procuradoria Regional Eleitoral, a "carga de oxigênio, que, igualmente, possui valor econômico" (ID 45492067, fl. 12), do Município de Colinas/RS.

Diante disso, merece ser mantida, no ponto, a sentença penal condenatória.

 

2.1.2) 5º Fato da denúncia - Desvio de uma carga de cascalho em benefício de Romeu Hass.

Conforme indicado na sentença, entre os meses de outubro a novembro de 2012, o recorrente GILBERTO, em comunhão de esforços e desígnio de vontades com sua esposa, Cristiane Keller, desviou em favor do eleitor Romeu Hass, com o objetivo de obter seu voto, uma carga de cascalho, bem público pertencente ao Município de Colinas/RS.

Em suas razões recursais, GILBERTO ANTÔNIO KELLER sustenta que a entrega do cascalho ocorreu após requerimento formulado pelo eleitor junto ao município, e em conformidade com previsão orçamentária da Secretaria de Obras local.

Em seu interrogatório sobre tais fatos, o recorrente alegou que "o município estava fazendo uma obra, a pessoa tinha um muro quase dentro da estrada do município. A estrada foi alargada quando construiu o asfalto e o que aconteceu? Esse muro ruiu". Em razão disso, o município teria, então, feito um acesso para que Romeu conseguisse entrar em casa, sendo necessário, para isso, a entrega do cascalho. Concluiu que, em decorrência de uma obra pública, o município precisara reparar o dano que causou ao munícipe (IDs 45073801 e 45073802).

Mister salientar, desde logo, que a entrega da carga de cascalho para Romeu restou incontroversa nos autos.

Destaco, por oportuno, que a instrução processual demonstra que, durante o período eleitoral de 2012, houve aumento significativo no fornecimento de serviços e materiais (cascalho, saibro, britas etc) pela Secretaria de Obras do Município de Colinas/RS. Com efeito, as testemunhas Norberto Geist, Ito Sipp, Alessandro Manica, Graziela Driemeyer, Manilde Rodher, Olécio Molmmann e Paulo Dientsmaan, cujos depoimentos judiciais foram transcritos na sentença de ID 45073868, evidenciam que, durante o período eleitoral de 2012, também receberam da Prefeitura de Colinas serviços de terraplenagem e aterro, bem como, alguns deles, cargas de cascalho ou saibro (inclusive a distribuição dos serviços e materiais foi objeto do 3º fato da denúncia).

Nestor Luis Endler sustentou ser motorista e que durante a campanha do recorrente "a gente fez serviços, levou saibro, cascalho moído"; que os materiais foram levados pelo declarante e pelos outros motoristas, por determinação do então secretário; que não sabe dizer quais eram os critérios; que o secretário dava um "bilhete" dizendo para quem eram os serviços e os motoristas apenas levavam e "pegavam recibo". Confirmou que, no período de julho a setembro daquele ano, o fornecimento de materiais ocorreu "de forma mais intensa", pois as pessoas queriam se aproveitar do período eleitoral. Confirmou a entrega de materiais a Norberto Geist, Milton Bazanella, Gilmar Knopp, Milton, Clécio Mollmann, CTG Querência do Gaúcho, Sinésio Fhrot, Ito Sipp e Asta, bem como que os outros motoristas também realizaram entrega de materiais para os eleitores; que o recibo, após assinado pelo eleitor, era levado à prefeitura e ao secretário; que não eram feitos pagamentos pelos beneficiados com os materiais. Em relação a Romeu Hass, sustentou que ele é pedreiro, não sabendo se o local onde ele mora é urbano ou rural; que não levou carga de materiais para ele; que não recebia ordens do prefeito para levar os materiais, "só do Secretário" (ID 45073716).

Odilo Antônio da Costa sustentou que é operador de máquina desde 13.4.94, ocupando esta função à época dos fatos; que, no ano de 2012, não exerceu a função de operador de máquina, pois "não me davam esse serviço para mim", sustentando que o então Secretário de Obras, Nestor Olmann, não lhe repassava este serviço; que ficou por muito tempo "no fundo da garagem", não recordando exatamente o dia, mas durante os anos de 2011 e 2012; que havia movimentação de eleitores na Secretaria de Obras, não tendo presenciado a entrega de cascalho nas casas, mas ouvia que estava sendo feito; que a entrega era realizada tanto na cidade quanto no interior; que ouvia muito que "uns pediam e ganhavam e outros pediam e não ganhavam", alegando que o não fornecimento decorreria da opção política do solicitante; que tem conhecimento que nas últimas eleições foi interrompido o fornecimento de cascalho e pedras pela secretaria; que ouvia quando o secretário determinava a seus colegas que era para fazer as entregas, "saibro, britas", mas não acompanhou estas; que foi Secretário de Obras no município em duas oportunidades, tendo conhecimento da existência de lei em Colinas/RS que regulamenta o fornecimento de prestação de "serviços de máquinas", havendo previsão orçamentária para prestar tais serviços (ID 45073750).

Destaco que o normativo citado é a Lei Municipal n. 1.370-03/11, de Colinas/RS (ID 45073784, fl. 15), que "estabelece normas para a prestação de serviços a particulares, na área urbana, com equipamentos rodoviários do Município e dá outras providências", de forma a autorizar o Poder Executivo a conceder isenção do pagamento para serviços prestados a particulares de até 5 (cinco) horas-máquinas, por ano, e até 2 (duas) cargas de saibro/terra, durante o mesmo período (art. 3°), mediante requerimento do interessado" (art. 1º, parágrafo único).

Ainda, nos termos do art. 2º, "o número de horas/máquina, efetivamente trabalhadas, ou quilômetros rodados, bem como o número de cargas transportadas, serão informadas pelo operador, ou pelo servidor designado, em formulário próprio, contendo também a assinatura de concordância do contribuinte beneficiado".

Ocorre que, conforme ressaltado pela Dra. Caren Letícia Castro Pereira, magistrada prolatora da sentença guerreada, em que pese a existência de lei municipal que, abstratamente, autorizaria o fornecimento de serviços e de materiais pela Secretaria de Obras de Colinas, a distribuição gratuita de tais bens em ano eleitoral encontra vedação legal expressa no art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97, pois a competência para legislar sobre a matéria no regime federativo brasileiro é, indiscutivelmente, do legislador federal (art. 22, inc. I, da Constituição Federal) de forma privativa, nada se delegando aos Estados e aos Municípios neste particular. Ainda que se trate de ilícito de natureza cível, a circunstância merece relevo para demonstrar a inocuidade da legislação municipal sobre os fatos.

Ademais, embora não se desconheça a decretação, em determinado período, de situação de emergência no Município de Colinas/RS, saliento que esta vigorou apenas até o mês de abril de 2012, de forma que todo material concedido (ou serviço realizado) após referido período - o que incluiu a carga de cascalho entregue a Romeu Hass em outubro de 2012 - se encontrava sob a vedação da legislação eleitoral.

A título de desfecho, é inegável que a degravação da conversa telefônica mantida entre GILBERTO e o então Secretário de Obras de Colinas/RS, Nestor Hollmann, no dia 03.10.2012, interceptada com autorização judicial, evidencia o envolvimento direto do recorrente no fornecimento do material ao eleitor (ID 45073628, fl. 8).

Transcrevo, por relevante, as excelentes conclusões da magistrada de primeiro grau:

[…] Conforme constou da sentença prolatada nos autos da Ação de Investigação Judicial Eleitoral nº 884-55.2012.6.21.0021 (fls. 676/677), restou decretada situação de emergência no Município de Colinas, pelo período de 90 (noventa) dias, que vigorou até meados de abril de 2012, sendo considerados como enquadrados na situação de excepcionalidade prevista na lei os benefícios concedidos até 14.04.2012.

Muito embora tenha sido procedida a prorrogação do referido Decreto, por meio de manuscrito do Prefeito Municipal, tal não pode ser considerada, na medida em que tanto a decretação de emergência quanto a sua prorrogação devem ser submetidas à apreciação da Defesa Civil do Estado e formalizada mediante Decreto, o que não ocorreu no caso.

Dessarte, a concessão dos benefícios em momento posterior ao término da situação de excepcionalidade encontra-se eivada de irregularidade, eis que não encontra amparo nas exceções previstas no referido artigo - calamidade pública, estado de emergência ou programa social autorizado em Lei e já em execução orçamentária no exercício anterior.

Assim, sendo incontroversa a concessão dos materiais e auxílios aos munícipes em período imediatamente anterior ao pleito eleitoral (de julho a outubro de 2012) e, portanto, após o término da situação de excepcionalidade suprarreferida. (ID 45073868)

Portanto, GILBERTO ANTÔNIO KELLER proferiu ordem expressa de desvio de uma carga de cascalho em favor de Romeu Hass, dias antes da realização do pleito municipal de 2012, com o intuito de benefício pessoal, qual seja, obter o apoio do eleitor em sua campanha à reeleição ao cargo de chefe do Executivo de Colinas/RS. É importante ressaltar tal circunstância, inclusive para pontuar a caracterização do dolo do recorrente em relação à prática do crime de "peculato-desvio".

Diante disso, o recurso apresentado pela defesa de GILBERTO deve ser desprovido, no ponto, para fins de manter a sentença penal condenatória em relação a tal fato.

 

2.1.3) 7º Fato da denúncia - Desvio de materiais de construção para Erni de Campos.

Por fim, em relação à distribuição de materiais de construção para o eleitor Erni de Campos, consta na denúncia que, entre os meses de julho e outubro de 2012, o recorrente GILBERTO, em comunhão de esforços e desígnio de vontades com sua esposa, Cristiane Keller, desviou em benefício de Erni Campos "21 cal hidráulica, 3m³ de areia, 3m³ de brita, 10 cumeeiras, 200 parafusos telheiros, 10 pacotes de prego, 5 sacos de cimento, 11m² de madeira pinus, 10 telhas, 40 parafusos telheiros, 60 metros de roda pé, uma porta e 09 telhas", materiais avaliados em R$ 2.193,00 (dois mil cento e noventa e três reais) e que pertenciam ao Município de Colinas/RS.

Em seu recurso, GILBERTO ANTÔNIO KELLER sustentou que o fornecimento de tais materiais foi realizado com observância da Lei Municipal n. 1.321-03/11.

Interrogado sobre tais fatos, o recorrente sustentou que "a família Campos são os únicos bolsa-família do município", pois moram em uma área alagada, pertencente ao DNIT, à beira do trilho do trem; são pessoas muito humildes e constantemente estavam em acompanhamento pela Assistência Social do município; "eram pessoas que tinham problemas financeiros"; que não houve liberação de recursos que não fosse pelo setor competente, qual seja, a assistência social do município; que os benefícios concedidos pela assistência social possuíam um trâmite, uma avaliação, um laudo para fornecer os bens ou atendimento familiar; que Erni de Campos trabalhou em sua campanha, na condição de "cabo eleitoral" e que o dinheiro pago saiu do caixa da campanha, por ele ter feito o jingle (música de campanha), ter dirigido o carro de som e feito locução; que não sabe o valor exato que foi pago a Erni, pois não era o declarante quem controlou o pagamento; que não houve pagamento via prefeitura (IDs 45073801 e 45073802).

Ouvido em juízo, Erni de Campos sustentou ter recebido materiais de construção, "uma vez só", não lembrando da data, tendo reformado sua casa após uma enchente; questionado se solicitou os materiais na Assistência Social do município, disse que "foi tudo dentro da lei"; que reformou o telhado e a mão de obra foi prestada pelo declarante; que estava desempregado na época; que não recebeu dinheiro de Gilberto na campanha eleitoral, mas trabalhou para o PMDB, fazendo e gravando música; que há 16 anos faz músicas para campanha, sempre para o PMDB, independentemente do candidato; que a música para Gilberto, no ano de 2012, foi o declarante quem fez; que recebeu "uns troco", não especificando o valor; que o pagamento foi realizado em dinheiro; que na última eleição cobrou o valor de R$ 10.000,00 para fazer as músicas e ser cabo eleitoral; que na eleição anterior fez a música e gravou e que por isso cobrou aproximadamente R$ 2.500,00; que foram três ou quatro músicas; que não pegou dinheiro, nem cesta básica na assistência social; que onde mora é uma área alagável, enfrenta problemas com enchente; que quando precisou do material o declarante foi até a prefeitura, na assistência social, e eles viram onde era mais barato e compraram; que não sabe se Arthur e Elena receberam material de construção da prefeitura (ID 45073752).

Conforme se depreende dos documentos de ID 45073738 (fls. 2-13), no ano de 2012, a Secretaria de Saúde, Assistência Social e Habitação do Município de Colinas/RS autorizou o fornecimento de "Auxílio Material de Construção" a Elena de Campos dos Santos (no valor total de R$ 486,00), Lúcia Campos dos Santos (no valor total de R$ 619,00), Erni de Campos (no valor total de R$ 488,00) e Arthur Martins dos Santos (no valor total de R$ 600,00), sempre com amparo na Lei Municipal n. 1.321-03/11.

Apenas Erni de Campos confirmou ter recebido, "uma única vez", materiais de construção da Prefeitura de Colinas/RS.

Com efeito, Elena de Campos dos Santos Alves afirmou que nunca recebeu materiais de construção da prefeitura; que tinha conhecimento de que existia um projeto para fornecimento de banheiros e que foi até a assistência social se cadastrar, não lembrando se foi em ano de eleição; que é irmã de Erni Campos, o qual "sempre fez músicas para campanha eleitoral"; que não tem conhecimento e nunca foi buscar tais materiais na prefeitura; que a única coisa fornecida pela assistência foi o banheiro; que não tem conhecimento que sua falecida mãe e que seu pai tenham recebido tais materiais; que nunca pediu ou recebeu dinheiro e cesta básica da assistência social; que não tem conhecimento sobre materiais de construção ou valores recebidos por seu irmão; que não era garantido que seria fornecido o banheiro, sendo necessário um prévio cadastro pelos interessados; que a reforma realizada na casa dos pais da declarante foi feita com dinheiro que sua mãe recebeu; que o banheiro da sua casa foi construído por empresa contratada pela assistência do município, não sendo entregues materiais de construção ou dinheiro à declarante (ID 45073747).

Arthur Martins dos Santos relatou que, da prefeitura, só foi atendido pelo Posto de Saúde; que é padrasto de Erni Campos e nunca recebeu materiais de construção da Prefeitura de Colinas/RS, pois a obra que fez em sua residência foi paga com os valores que sua esposa recebeu do INSS, "de atrasados"; que também não recebeu salários e cestas básicas da prefeitura, não sabendo se Erni e sua esposa receberam; questionado sobre a conversa telefônica mantida por Gilberto, de que a família Campos recebia benefícios sociais, ratificou nunca ter recebido, "a não ser do posto de saúde"; mostradas as autorizações para recebimento de materiais de construção e notas fiscais acostadas aos autos, o declarante negou que os tenha recebido; que, pelo que sabe, sua filha (Elena de Campos) e sua falecida esposa (Lúcia Campos dos Santos) também não receberam materiais da Prefeitura de Colinas/RS; que a obra em sua casa foi realizada em 2010 e 2012, não sabe dizer ao certo, mas esta foi paga por sua esposa, nunca tendo pedido ajuda na prefeitura (ID 45073746).

A Lei Municipal n. 1.321-03/11, utilizada como fundamento legal para o fornecimento dos materiais de construção descritos na denúncia apresentada pelo Ministério Público Eleitoral (ID 45073737, fls. 17-20), "regulamenta a concessão dos benefícios eventuais da política de assistência social" no Município de Colinas/RS. Segundo o regramento, o auxílio a ser concedido possuía como limite máximo o valor de até um salário mínimo nacional, que, à época dos fatos, era de R$ 622,00:

Art. 11º Os Benefícios Eventuais elencados no Inciso I e II do art. 5º, atenderão ainda aos seguintes requisitos e parâmetros:

I - o material de construção, objeto do benefício e auxílio, não abrangerá os acabamentos nem os acessórios que servem de adorno;

II - na liberação do auxílio, o Setor competente, não poderá deferir o benefício quando este for para a construção ou reforma de garagem, muros, áreas destinadas ao lazer e similares que se caracterizam como necessidade adiável.

III - residir no mínimo dois anos no Município, devidamente cadastrado no banco de dados do Programa ESF - Estratégia de Saúde do Município.

IV - estar em dia com os impostos municipais;

V - O auxílio corresponderá a 30% do orçamento, limitado o valor máximo a 1(um) Salário Mínimo Nacional. Somente casos excepcionais, devidamente justificados por Laudo, poderão ultrapassar este valor.

VII - o benefício poderá ser concedido para famílias que não se enquadram no critério sócio-econômico fixado nesta lei, nos casos de: moradia em área de risco, para garantir o acesso universal a água e energia elétrica, em situação de emergência ou calamidade pública decretada, quando atingidas por fatores alheios e emergenciais como vento, incêndio, explosão e enchentes. (grifei)

Também aqui no ponto destaco que é flagrante a adoção de conduta ilegal. Considerando que o valor total dos materiais de construção desviado em favor de Erni superaria, em muito, o limite máximo do benefício assistencial que poderia ser distribuído aos munícipes de Colinas/RS, GILBERTO procurou dar aparência de legalidade à operação e, contando com o auxílio da assistente social Cláudia Cristina Röhring, autorizou a entrega fracionada dos materiais de construção, elaborando documentação de conteúdo falso, inverídico - "autorização auxílio material de construção" - com destinação a familiares de Erni (Elena de Campos dos Santos, Lúcia Campos dos Santos e Arthur Marins dos Santos), além dele próprio, de forma que cada um dos "benefícios" concedido não ultrapassasse o valor máximo de um salário mínimo nacional.

Resta clara a intenção do recorrente em burlar a legislação municipal, no intuito de beneficiar Erni, conforme se extrai das conversas telefônicas abaixo transcritas (ID 45073707, fls. 15-18):

MARCELO SCHROER: Tu chegou a ver aquela situação do Erni?

CRISTIANE KELLER: Sim, ele ganhou já o que ele deve … o … assim, ó, o que ele poderia ganhar por aqui, ele ganhou.

MARCELO SCHROER: Tá, e o que nós vamos fazer? Porque tá me ligando, mandando mensagem, tá...

CRISTIANE KELLER: Só que assim, Marcelo, a lei é um salário-mínimo, né.

MARCELO SCHROER: Hunhum. Hum!

CRISTIANE KELLER: Eu não sei o quê vamo fazer! O quê que ele quer?

MARCELO SCHROER: É que ele disse que ele precisa fechar a casa lá, que assim não dá, porque… quer… quer levar a mulher pra lá, com… com a criança. Só que a criança daque… com a casa aberta daquele jeito não tem como fazer. Entendeu? E… diz que precisa ajudar, que ajudou e que… Tu sabe como é que é!

CRISTIANE KELLER: Sim, só se nosvamos fazer no nome de alguém (ininteligível)

MARCELO SCHROER: Pois é, e fazer no nome da fi… da… da mulher dele não dá?

CRISTIANE KELLER: Acho que não porque é por família, né.

MARCELO SCHROER: Ah, tem isso! Pois é.

CRISTIANE KELLER: E o Arthur também não dá, que é o pai, porque também já pegou.

MARCELO SCHROER: Sim, também já pegou, né. O enteado, o filho da velhinha, também já pegou!

CRISTIANE KELLER: Todos já pegaram.

MARCELO SCHROER: É, na verdade, todos pegaram ali, né. Deus o livre!.A Helena pegou já?

CRISTIANE KELLER: Ah, essa eu teria que olhar.

MARCELO SCHROER: A helena, o Luciano, daqui um pouco… sei lá, não sei.

CRISTIANE KELLER: Tá, deixa eu dar uma olhadinha.

MARCELO SCHROER: É, ou, se tu falar com o Gilberto, comenta isso com ele, vê. É que, daqui um pouco, também nós conseguimo matar isso e não precisamo tá dando… [Que ele] quer dinheiro também, né!

CRISTIANE KELLER: Tá, mas não foi dado pra ele?

MARCELO SCHROER: Eu não sei quê que foi dado, quê que não foi, tudo, né. Essa (é a) questão. Isso não passou por mim, assim, tudo, né [...]

MARCELO SCHROER: Ãh… Tá. Mas vê essa questão do Erni, porque daí eu vou… ele tá me ligando, me mandando mensagem. Eu vou ligar pra ele de volta, eu to… e vou dizer que eu tô… nós tamo vendo aqui o quê que vamo fazer, de que forma vamo conseguir alguma coisa. Tá?

CRISTIANE KELLER: Tá bom. [...]" (grifei)

"Data 21/11/2012 Hora inicial: 14:36:23

[…] CRISTIANE KELLER: O quê que tu já deu pro Erni (de Campos)?

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Não, o… eu não tenho… tem que dar um troco pra ele ainda.

CRISTIANE KELLER: Tá, quanto tu deu?

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Ah, sei lá, eu acho que uns… dei mil e quinhentos mais mil, dois mil e quinhentos.

CRISTIANE KELLER: Tá louco! E tu ainda vai da mais?

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Não, eu não ia dar mais, eu… Por que? Quê que ele quer?

CRISTIANE KELLER: Não, ele quer… auxílio material de construção.

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Não, o que eu...

CRISTIANE KELLER: Ele já pegou um salário! O véio já pegou um salário. Tá? Aquela família, todo mundo já pegou. Não sei em nome de quem fazer! Então eu ia pensar… tôpensando em fazer em nome da sogra dele.

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Ãh. Pode ser, então faz em nome dela.

CRISTIANE KELLER: Só que, assim, ãh…

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Mas não agora. Não ia mais fazer agora.

CRISTIANE KELLER: É que parece que ele já tá ligando atrás do Marcelo e enchendo o saco.

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Deixa eu voltar, eu resolvo isso. Eu chamo ele, e… Porque eu não… Deixa eu voltar, eu sento com ele, eu resolvo.

CRISTIANE KELLER: Tá.

GILBERTO ANTÔNIO KELLER: Não… não precisa sair correndo a fazer isso não.

CRISTIANE KELLER: Então tá". (grifei)

De acordo com a prova oral colhida em juízo, nenhum dos familiares de Erni de Campos recebeu materiais de construção da Prefeitura de Colinas/RS. No fato sob análise, GILBERTO utilizou a estrutura da administração pública municipal e, visando dar aparência de legalidade ao fornecimento dos materiais de construção desviados em benefício de Erni de Campos, determinou a manipulação das autorizações de ID 45073738 (fls. 2-13), para fins de desviar materiais de construção pertencentes ao município em benefício de eleitor determinado, em contrapartida a seu apoio eleitoral.

Irretocável, portanto, a sentença condenatória proferida pela magistrada da 21ª Zona Eleitoral - Estrela/RS.

Destarte, os elementos de provas produzidos foram consistentes para demonstrar a autoria e materialidade delitiva relacionadas aos crimes de peculato-desvio (art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei 201/67) praticados pelo recorrente, razão pela qual seu recurso, em relação à constatação das práticas criminosas, merece ser desprovido, com a manutenção da sentença penal condenatória.

 

2.2) Da pena aplicada.

Conforme se extrai da sentença de ID 45073868, ao condenar GILBERTO ANTÔNIO KELLER pela prática do crime de "peculato", por três vezes, referente aos fatos 4, 5 e 7 da denúncia, a magistrada aplicou a cada um dos crimes a pena de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de reclusão, sopesando maior culpabilidade do agente por se tratar de crime praticado por advogado, e 15 (quinze) dias-multa, no valor unitário de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época do fato.

Após, ao reconhecer a continuidade delitiva (art. 71 do Código Penal) entre os três crimes, a magistrada majorou a pena de um deles (por terem penas idênticas) em 2/3 (dois terços), fixando o apenamento final em 4 (quatro) anos, 5 (cinco) meses e 10 (dez) dias de reclusão, bem como em 45 (quarenta e cinco) dias-multa, no valor unitário de 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo vigente à época do fato (art. 72 do Código Penal).

Ao recorrer da decisão, GILBERTO postulou, em relação à aplicação da pena: a) a fixação da pena-base no mínimo legal, devendo ser afastado o aumento em razão de sua culpabilidade, sopesada negativamente pelo juízo de primeiro grau; b) o afastamento da continuidade delitiva ou, se mantida, a adoção de quantum razoável de aumento, levando-se em consideração o número de infrações praticadas (três) (ID 45073885).

No que tange ao aumento da pena-base em razão de maior culpabilidade do agente, por se tratar de crime praticado por advogado, tenho que a sentença merece reforma.

Com efeito, o recorrente praticou os crimes na condição de Prefeito Municipal de Colinas/RS - fato que, inclusive, pertence ao próprio tipo penal do art. 1°, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/63 - e não na condição de advogado.

Não desconheço precedentes que fazem incidir maior reprovabilidade da conduta na prática de crimes perpetrados por advogados, em razão da maior percepção da gravidade da conduta praticada em afronta à legislação criminal (por exemplo, STJ (AgRg no AgRg nos EDcl no HC n. 497.114/SC, relator Ministro AntonioSaldanha Palheiro, relatora para acórdão Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 22/9/2020, DJe de 29/10/2020).

No entanto, mister repetir que o caso trazido para desate julga a prática de crime de responsabilidade, no qual a posição de prefeito integra o tipo, não sendo possível, ao meu sentir, que a condição de advogado possa prejudicar o recorrente em aplicação de pena determinada por tipo legal que já possui uma situação específica, sobretudo quando não há, nos autos, a prova de militância advocatícia de GILBERTO, que muitos precedentes trazem como condição para a incidência de maior culpabilidade.

Nesse sentido:

PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. DOSIMETRIA. ART. 1º, INCISO I, DO DECRETO-LEI N.º 201/1967. EXASPERAÇÃO DA PENA-BASE QUANTO À CULPABILIDADE, PERSONALIDADE E CIRCUNSTÂNCIAS DO CRIME. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. ELEMENTOS INERENTES AO TIPO PENAL. MANTIDA A NEGATIVAÇÃO DAS CONSEQUÊNCIAS DO DELITO. PREJUÍZO RELEVANTE AO ERÁRIO. REDIMENSIONAMENTO DA PENA-BASE. REGIME INICIAL SEMIABERTO MANTIDO. SUBSTITUIÇÃO DA PRISÃO POR RESTRITIVAS DE DIREITO. POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. I - Não mais se admite, perfilhando o entendimento do col. Pretório Excelso e da eg. Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, a utilização de habeas corpus substitutivo, quando cabível o recurso próprio, situação que implica o não-conhecimento da impetração. Contudo, no caso de se verificar configurada flagrante ilegalidade, recomenda a jurisprudência a concessão da ordem, de ofício. II - A via do writ somente se mostra adequada para a análise da dosimetria caso se trate de flagrante ilegalidade e não seja necessária uma análise aprofundada do conjunto probatório. Vale dizer, "o entendimento deste Tribunal firmou-se no sentido de que, em sede de habeas corpus, não cabe qualquer análise mais acurada sobre a dosimetria da reprimenda imposta nas instâncias inferiores, se não evidenciada flagrante ilegalidade, tendo em vista a impropriedade da via eleita" ( HC n. 39.030/SP, Quinta Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJU de 11/4/2005). III - Na hipótese, a culpabilidade do agente foi valorada negativamente em função de haver o paciente atentado contra os deveres do administrador; as circunstâncias do crime, porque o paciente teria se aproveitado das facilidades advindas da sua condição de Prefeito Municipal para cometer o delito; e a personalidade em razão de o paciente, enquanto Prefeito Municipal, haver traído a confiança dos seus eleitores. Tais circunstâncias, a meu ver, não extrapolam os elementos ínsitos ao crime de responsabilidade previsto no art. 1º, inciso I, do Decreto-Lei n.º 201/1967. IV - Algum dano material causado ao patrimônio público é elementar do tipo do delito do art. 1º, inciso I, do Decreto-lei n.º 201/1967, não podendo, por si só, servir para legitimar o incremento punitivo. Por outro lado, quando o prejuízo causado pela conduta criminosa alcança patamar diferenciado, que desborda do que seria ínsito ao tipo penal, e esse prejuízo especial é concretamente referido pelas instâncias ordinárias, adequada está a valoração negativa das consequências do delito. V - No caso, subsiste o desfavorecimento das consequências do crime, em razão de os delitos praticados pelo paciente haverem ocasionado prejuízo relevante aos cofres públicos, no montante de R$ 118.420,50 (cento e dezoito mil, quatrocentos e vinte reais e cinquenta centavos). VI - Todavia, verifica-se que a exasperação da pena-base feita na fração de 1/2 (metade) do mínimo legal, em função do reconhecimento de apenas uma circunstância judicial negativa, mostra-se desproporcional. O entendimento desta Corte firmou-se no sentido de que, em casos como o presente, o aumento da pena deve se dar no patamar de 1/6 (um sexto). VII - Neste feito, sendo a nova pena final de 3 (três) anos, 10 (dez) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, e ante a presença de circunstância judicial desfavorável - consequências do crime -, cabível a manutenção do regime semiaberto, nos termos do art. 33, § 2º, 'b', e § 3º, do Código Penal. VIII - "A análise sobre a possibilidade ou não de se converter a reprimenda privativa de liberdade por restritivas de direito deve ter por base as circunstâncias elencadas no art. 59 do Código Penal, à exceção das consequências do delito e do comportamento da vítima, não reproduzidas no inciso III do art. 44 do CP" ( HC n. 123.373/RJ, Quinta Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 3/5/2010, grifei). Habeas corpus não conhecido. Ordem concedida de ofício. (STJ - HC: 394955 SP 2017/0077257-0, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 13/06/2017, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 30/06/2017) (grifei)

Diante disso, reformo a sentença no tocante à fixação individual da pena aplicada para 2 (dois) anos.

Ademais, entendo que a sentença também merece reparo no pertinente ao aumento de pena aplicado em razão do reconhecimento da continuidade delitiva entre os três crimes.

Ora, nos termos do art. 71 do Código Penal, uma vez reconhecida a continuidade delitiva entre dois ou mais crimes, o julgador deverá aplicar a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, acaso diversas, aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços).

No caso em apreço, ao reconhecer a prática de três crimes de "peculato-desvio" em continuidade delitiva, a magistrada aplicou a maior fração de aumento de pena prevista no dispositivo legal, qual seja, 2/3 (dois terços).

Entretanto, a jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores tem posicionamento pacífico de que a fração de aumento pela continuidade delitiva deve obedecer a critérios objetivos, mediante a observância da quantidade de infrações praticadas, estabelecendo aumentos que vão de 1/6 (um sexto) para o caso de prática de dois crimes a até 2/3 (dois terços) para o caso de prática de sete ou mais delitos. Recentemente (no mês de setembro de 2023), o Superior Tribunal de Justiça materializou tal entendimento na Súmula 659, que assim dispõe:

Súmula 659 do STJ - A fração de aumento em razão da prática de crime continuado deve ser fixada de acordo com o número de delitos cometidos, aplicando-se 1/6 pela prática de duas infrações, 1/5 para três, 1/4 para quatro, 1/3 para cinco, 1/2 para seis e 2/3 para sete ou mais infrações.

Assim, reformo a sentença e reduzo o aumento de pena em razão do reconhecimento da continuidade delitiva de 2/3 (dois terços) para 1/5 (um quinto), considerando o número de infrações praticadas, como, aliás, indicado pela Procuradoria Regional Eleitoral.

Fixo o apenamento definitivo de GILBERTO ANTÔNIO KELLER em 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias de reclusão, mantidos 45 (quarenta e cinco) dias-multa, no valor unitário de 1/30 (um trinta avos) do salário-mínimo vigente à época do fato, na medida em que, em relação à sanção pecuniária, aplica-se o disposto no art. 72 do Código Penal, estabelecendo o regime aberto para início do cumprimento da pena, nos termos do art. 33, § 2º, al. "c", do Código Penal.

Ainda, substituo a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, a ser determinada pelo juízo da execução, pois, uma vez afastada a maior culpabilidade do agente, resta aplicável o art. 44, inc. III, do Código Penal, combinado com o § 2º do referido comando legal.

A título de desfecho, saliento ser inviável a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal), uma vez que a pena privativa de liberdade aplicada ultrapassa 2 (dois) anos.

 

2.3) Honorários ao defensor dativo.

O recorrente postulou a reforma da sentença no tocante aos honorários fixados ao defensor dativo, postulando que, diante da complexidade da causa, o número de réus defendidos (dois) e de audiências realizadas, fosse observada a tabela de honorários da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e não a Resolução CJF n. 305/14.

Conforme decisão de ID 45073881, que acolheu os embargos de declaração opostos pelo recorrente, a magistrada de primeiro grau fixou em R$ 536,83 (quinhentos e trinta e seis reais e oitenta e três centavos) os honorários advocatícios ao defensor dativo nomeado para a defesa dos interesses de GILBERTO e de sua falecida esposa Cristiane, que corresponde ao valor máximo previsto às ações criminais pela Resolução CJF n. 305/14, recentemente atualizada pela Resolução n. 775/22, conforme se extrai do anexo único, tabela I, daquela normativa.

Em seu parecer (ID 45492067), a Procuradoria Regional Eleitoral opinou pelo desprovimento do recurso neste ponto, para fins de manter a sentença penal condenatória, uma vez que proferida dentro dos parâmetros e em observância da Resolução CJF n. 305/14, para fins de fixar o valor dos honorários do defensor dativo.

Não é tarefa facilitada a fixação de valores sobre a realização de trabalho, de quem quer que seja. Dito isso, tenho que o caso concreto merece solução intermediária, sem que, expressamente indico, tenha o condão de criar precedente.

Explico.

O presente processo criminal recebera uma primeira sentença, que o Plenário desta Corte declarou nula, com o retorno dos autos à origem. Nova sentença foi proferida - a qual é desafiada pelo recurso sob análise. O combativo advogado aviou, portanto, dois recursos criminais, em uma demanda que tramita já há alguns anos, exigindo acompanhamento e atenção correspondentes à gravidade dos fatos e sanções previstas.

Ademais, não se pode olvidar da especialidade da matéria eleitoral, inclusive na seara penal, de modo que os parâmetros estabelecidos pelo Conselho da Justiça Federal devem ser seguidos, obviamente, mas com a permissão eventual de que, em situações pontuais - como a que ora se identifica - o valor possa ser majorado.

Esta é a minha posição pessoal, evidentemente que sob censura dos eminentes colegas.

Da análise dos autos, dada a complexidade da matéria, o volume de prova e o trâmite do presente processo (majorado em razão da declaração de nulidade), arbitro os honorários em R$ 8.000,00 (oito mil reais), razoavelmente acima do fixado pelo CJF e, também, consideravelmente abaixo da tabela de honorários da OAB (pois, em acesso ao site da Seccional Rio Grande do Sul, há a indicação do valor de R$ 22.277,09 para defesa criminal em procedimento comum).

Saliento que considero a tabela do d. órgão de classe um instrumento bastante válido, mas que, obviamente, serve para orientar a advocacia de caráter privado, sem cogência, portanto, sobre casos de advocacia dativa, sob pena de inviabilizar a nomeação de advogados em casos criminais. A presente situação, inclusive, bem demonstra o quão recomendável é a remessa de processos aos órgãos da Defensoria Pública.

Penso que a presente fixação se alinha ao precedente indicado pela Procuradoria Regional Eleitoral, pois o valor há de ser ajustável "(...) conforme o grau de zelo do profissional, o lugar da prestação do serviço, a natureza e importância da causa, o trabalho realizado e o tempo despendido para o serviço. Critérios a serem observados casuisticamente, de modo a alcançar a justa remuneração. (...)" (Recurso Eleitoral n. 5153, Acórdão, Relatora Desa. MARIA DE LOURDES GALVÃO BRACCINI DE GONZALEZ, DEJERS - Diário de Justiça Eletrônico do TRE-RS, Tomo 206, Data 11/11/2016, Página 2)

Diante o exposto, VOTO pelo conhecimento e, no mérito, pelo parcial provimento ao recurso interposto por GILBERTO ANTÔNIO KELLER, para fins de:

a) determinar, de ofício, a reclassificação jurídica dos fatos pelos quais o recorrente restou condenado, enquadrando-os no disposto no art. 1º, inc. I, do Decreto-Lei n. 201/67;

b) afastar a circunstância de maior culpabilidade do recorrente, reduzir o quantitativo do aumento de pena da continuidade delitiva de 2/3 (dois terços) para 1/5 (um quinto), fixar a pena definitiva do recorrente em 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 24 (vinte e quatro) dias de reclusão, substituída por pena restritiva de direitos, e 45 (quarenta e cinco) dias-multa, no valor unitário de 1/30 (um trinta avos) do salário-mínimo vigente à época do fato;

c) majorar os honorários advocatícios para o valor de R$ 8.000,00 (oito mil reais).