REl - 0600320-46.2024.6.21.0105 - Voto Relator(a) - Sessão: 26/08/2025 às 16:00

VOTO

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento. 

No mérito, cuida-se de recurso eleitoral interposto por Faisal Mothci Karam, candidato não eleito ao cargo de Prefeito do Município de Campo Bom/RS, nas Eleições Municipais de 2024, contra sentença que julgou improcedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ajuizada em desfavor dos candidatos eleitos Giovani Batista Feltes e Genifer Graziela Siebel Engers, pelo suposto uso indevido dos meios de comunicação social, com fundamento no art. 22, caput, da Lei Complementar n. 64/90.

A controvérsia posta a exame consiste na alegada orquestração de uma estratégia de desinformação eleitoral mediante a veiculação de vídeo no qual o recorrente apareceria, supostamente, interessado em contratar serviço de produção de conteúdo deepfake, com o objetivo de prejudicar seu adversário na campanha. O recorrente sustenta que os recorridos teriam forjado a narrativa e divulgado amplamente a falsa denúncia em seus atos de campanha e nos meios de comunicação social, bem como teriam proposto ação judicial sobre o fato para conferir aparência de legitimidade à acusação.

O contexto fático e seus marcos temporais estão sintetizados na petição inicial, nos seguintes termos (ID 45901779):

No período da noite de 17 de setembro de 2024, precisamente 18 dias antes das eleições. Feltes publicou reels na rede social Instagram (https://www.instagram.com/reel/DACk4xwN3hz/) e, também, na plataforma do Facebook (https://www.facebook.com/search/top?q=giovani%20feltes&locale=pt_BR) em que acusa Faisal de ter contratado e divulgado vídeo DeepFake. A partir das publicações nas redes sociais o assunto tomou gigantesca proporção em todas as plataformas de mensagem instantânea (grupos de WhatsApp e mensagem direta).

O discurso eleitoral foi o seguinte:

“Família Campo Bonense, há alguns dias atrás nossa campanha foi contatada por um homem que se apresentou como designer gráfico especialista na criação de deepfakes. São aqueles vídeos falsos, feitos em computação gráfica. Ele nos disse que foi procurado por Faisal Karam e que Faisal havia lhe encomendado a criação de um vídeo falso, feito com inteligência artificial. Nesse vídeo, eu deveria parecer 20 anos mais novo, com a idade que eu tinha quando era prefeito de Campo Bom, recebendo dinheiro de uma empreiteira. Mas não foi só isso. Ele confessou que havia gravado esses encontros com Faisal, de maneira escondida. Surpresos com tudo aquilo, aconselhamos esse especialista em deepfakes a apresentar as gravações ao Ministério Público e prestar um depoimento. E assim foi feito. O que fizemos a seguir foi pedir ajuda de advogados especializados neste tipo de crime. Estes advogados submeteram as gravações para peritos digitais, que atestaram de forma inquestionável sua veracidade. Os vídeos são verdadeiros. Eu já sabia que o verdadeiro Faisal é bem diferente desse candidato dócil que ele vende ao público. E mesmo sabendo que Faisal é perverso, ainda assim o que ele fez agora, passou de todos os limites.”

Na tarde deste mesmo dia a imprensa escrita, falada e televisionada (jornais, rádios, Tv e inúmeras páginas de notícias das redes sociais) passaram a noticiar o que era, conforme Feltes, um grave ilícito com uso de recurso de IA – DeepFake que teria como objetivo criar uma situação falsa para incriminá-lo ficticiamente.

Os contatos insistentes da imprensa causou surpresa a Faisal, que sem saber do que se tratava buscou informações junto ao seu advogado, vez que a imprensa relatava a existência de uma ação judicial eleitoral.

De pronto, em pesquisa ao PJE se obteve confirmação de que houve ingresso na justiça eleitoral de Campo Bom uma Ação de Investigação Judicial Eleitoral – AIJE, protocolada às 10h57min. do dia 17 de setembro.

 

A questão fulcral para a caracterização do ilícito eleitoral reside na alegada inveracidade do conteúdo veiculado e na disseminação de informações falsas e manipuladas com fins eleitorais.

Contudo, o próprio recorrente admitiu judicialmente que teve dois encontros com Fábio Luciano da Rocha, indivíduo que seria o responsável pela eventual produção de conteúdo deepfake. A primeira conversa ocorreu em uma cafeteria e a outra se deu na sede do partido. O recorrente também reconhece que parte das conversas envolveu o uso de tecnologia de inteligência artificial, aplicada a imagens do adversário político para construção de um vídeo que o implicasse em atos de corrupção, ainda que Faisal alegue que tudo se limitou ao plano da cogitação e da especulação e que não ocorreu a contratação efetiva do vídeo.

Nessa linha, adoto a judiciosa análise da prova vertida da sentença:

(...) verifico ser inconteste que houve o encontro entre Faisal (então candidato a prefeito e ora representante) e o indigitado Fábio (quem supostamente prestaria os serviços de criação de deepfakes para uso eleitoral).

Em seu depoimento prestado perante o juízo, na presença da defesa técnica, Faisal manifestou "que o encontro ocorreu na cafeteria do mercado Schneider, ocorreu sim. O porquê disso, o processo começou em 2020 quando conheci o Fábio Rocha, na época ele era candidato a vereador e minha mulher candidata a Prefeita. Foi nos apresentado o Fabio Rocha que na época tinha uma gravação de vídeo envolvendo a administração, com pedidos de entrega de britas e outros. O Fabio conseguiu essa gravação e foi nos oferecer por intermédio do Joceli, então presidente do PTB. Não ficamos com ela. um tempo depois houve uma ação da coligação do Luciano, a justiça se manifestou concedendo a liminar e o vídeo foi retirado das redes sociais, por ser montagem grosseira. Em 2022 ele (Fábio) fez contato comigo, não atendi, como consta nos autos. Em 2023 eu queria comprar um equipamentos de computador mais potente, estive orçando, conforme orçado por um amigo, fiz orçamento entre 5 e 9 mil reais, e ele me indicou o Fábio Rocha que montava equipamentos. fiz contato com ele, fiz a descrição, ele me passou orçamento, fui na cada dele depois, no mês de setembro e entreguei a metade do valor. Ele nunca entregou o equipamento, isso em agosto e setembro de 2023. Em fevereiro  de 2024 ele fez contatos. Em abril fui no Quiero Café e lá encontrei o Fábio que me disse querer  devolver o dinheiro e pediu meu pix, Eu não passei para ele. Ele ficou de trazer o dinheiro no dia seguinte e alguns dias depois me ligou dizendo que ia fazer o pagamento. Eu estava com o Angelo que trabalhava comigo. Ele Fábio chegou e disse que perdeu as peças na aduana e que não tinha dinheiro. Aí ele sentou conosco e começou a perguntar sobre a companhia. Isso lá por julho de 2024. Tirou o o celular e me mostrou algumas imagens do Giovane, e me perguntou se eu entendia o que era inteligência artificial e o que poderia ser feito em termos de manipulação. Apenas de ter ouvido o presidente do TSE acerca do uso da inteligência artificial e isso me chamou a atenção. então eu perguntei como se poderia usar, ele foi mostrando, não nego. Ele registrou tudo e chegamos nessa situação. (...) Mas não usei, não mandei fazer e não houve nada. , não mandou fazer, que não houve nada. Questionado se chegou a cogitar em utilizar as imagens, disse que: "conhecendo o perfil do candidato Giovane, e que as eleições em que ele estava envolvido foram confusas, como no caso da Nelcy Orsi, o Francisco da Silva, e por ter convivido com ele por muitos anos, sei a forma dele de fazer política, e essa era uma preocupação que eu tinha." Relatou ainda "que houve um outro encontro no diretório, não lhe dei atenção que ele achava que eu deveria dar."

 

Também é incontroverso que Fábio Luciano da Rocha gravou ambos os encontros com o seu celular, sem o conhecimento de seu interlocutor, e, posteriormente, entregou cópias das captações ao Ministério Público Eleitoral e aos adversários políticos de Faisal. Esses últimos, com base na prova oferecida, promoveram a Ação de Investigação Judicial Eleitoral n. 0600317-91.2024.6.21.0105, em que pleitearam a condenação de Faisal à sanção de inelegibilidade por abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, consubstanciado na alegada preparação de vídeos manipulados com tecnologia de deepfake, com a finalidade de influenciar o eleitorado.

Vale dizer, ainda que o recorrente sustente que não tinha a real intenção de produzir vídeos artificiais de seu concorrente e que as gravações ambientais efetuadas por Fábio foram entrecortadas, é certa e reconhecida a realização dos encontros com o alegado “especialista” em inteligência artificial, nos quais se conversou sobre a produção de deefake em desfavor de Giovani Feltes.

Conforme bem demonstrado por meio das múltiplas postagens, imagens e vídeos juntados com a petição inicial (ID 45901782 e anexos), os fatos tornaram-se de conhecimento público da comunidade, sendo reiteradamente noticiados e compartilhados em redes sociais e nos veículos de imprensa.

Ocorre que a divulgação e análise crítica de fatos que acarretaram grande comoção pública não caracteriza ato abusivo.

De seu turno, a alegação de que esse conjunto de circunstâncias representou uma orquestração planejada desde o início da campanha, levada a efeito pelos recorridos, a fim de “descontruir a campanha de Faisal”, está baseada em meras ilações, sem o necessário suporte em provas concretas e cabais.

O fato de Giovani Feltes, desde o princípio do período de propaganda eleitoral, haver se valido de slogans sobre “campanha limpa”, afirmando que não ataca adversários e não se utiliza de fake news, representa mera opção estratégica de campanha, sem indicar a prática de “os atos preparatórios de criação e execução de prova forjada contra Faisal”.

As referidas mensagens em que um candidato se coloca como adepto de uma campanha eminentemente propositiva, sem ataques, são bastante comuns no discurso eleitoral, sendo muito utilizadas para rebater as afirmações críticas em seu desfavor, não denotando, por si só, comportamento ilícito.

O contexto descrito não comprova a execução de um plano previamente arquitetado para comprometer Faisal pela prática de uma futura deepfake, mas mera opção retórica de proselitismo político.

No mais, munidos de indícios de prática ilegal por seu adversário, os recorridos exerceram o legítimo direito constitucional de peticionar ao Poder Judiciário, ao ajuizarem a ação própria (AIJE) fundada nos indícios entregues por Fábio aos legitimados processuais para tanto.

A conduta dos recorridos, portanto, não pode ser interpretada como abusiva apenas por ter repercutido negativamente na campanha do seu adversário, quando fundada em fatos verídicos e que se tornaram de conhecimento público. A judicialização do episódio, ao contrário do que sustenta o recorrente, não revela estratégia ardilosa, mas sim o exercício regular de direito, em consonância com a boa-fé processual.

O acervo probatório também não demonstra a existência de um conluio entre os recorridos e Fábio na execução de um plano para instigar Faisal à produção de deepfakes.

A única relação concreta entre os recorridos e Fábio consiste na nomeação do último ao cargo de “responsável pela oficina de dança” da Secretaria Municipal de Educação, de 11.2.2019 até 4.11.2019, durante o governo de Luciano Orsi, que seria apoiador de Giovani Feltes (IDs 45901812 e 45901813).

Entretanto, tal vínculo funcional remoto, datado de mais de cinco anos antes da eleição, não é elemento suficiente para sustentar qualquer relação de instrumentalização, subordinação ou colaboração entre Fábio e os recorridos. Trata-se de prova extremamente tênue e incapaz de satisfazer o ônus probatório exigido para as ações eleitorais sancionatórias, que, por sua natureza, demandam acervo robusto, seguro e inequívoco.

Não há, nos autos, qualquer outra prova segura que demonstre que os recorridos tenham participado de um plano previamente engendrado com o profissional de informática para instigar a produzir provas contra o opositor político.

Da mesma forma, não há comprovação inequívoca de que os candidatos eleitos tenham promovido ou coordenado a difusão com o intuito de manipular artificialmente a repercussão dos fatos sobre o eleitoral.

Tampouco se verifica qualquer tipo de interferência sobre o conteúdo ou a linha editorial dos veículos de comunicação que noticiaram o caso.

Embora tenha havido ampla divulgação do episódio, inclusive nas vésperas da eleição, a Procuradoria Eleitoral destacou, com razão, que a repercussão guarda proporcionalidade com a originalidade do fato noticiado, especialmente tratando-se de potencial uso de deepfake, ferramenta tecnológica ainda recente no contexto eleitoral.

Na petição inicial, consta uma relação de veículos de comunicação social que teriam divulgado a denúncia realizada por Fábio e a propositura da ação eleitoral contra Faisal, incluindo Zero Hora, Jornal do Comércio, ABC Grupo Sinos, Vale dos Sinos Org e Acústica FM. Assim, é pouco plausível que os recorridos tivessem capacidade de interferir nas decisões editorais de tamanha variedade de grupos jornalísticos, com atuação regional ou estadual.

Logo, a intensidade da cobertura jornalística, portanto, não decorreu de ação dolosa dos investigados, mas sim do ineditismo e da eventual gravidade dos elementos veiculados.

A liberdade de imprensa e o direito à informação, ambos com assento constitucional (art. 5º, IV, IX, e art. 220, caput, da CRFB/88), resguardam a veiculação de fatos de interesse público, especialmente em período eleitoral, quando o escrutínio sobre os candidatos é mais intenso e legítimo.

A ampla liberdade editorial e de opinião dos meios de imprensa foi reafirmada no julgamento da ADI n. 4451, pelo Supremo Tribunal Federal, quando se reconheceu explicitamente que “a liberdade de expressão permite que os meios de comunicação optem por determinados posicionamentos e exteriorizem seu juízo de valor” (STF, ADI n. 4451, Relator: Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 21.6.2018, Processo Eletrônico DJe–044, divulgado em 01.3.2019, publicado em 06.3.2019).

Do mesmo modo, não se pode impor censura ou sanção aos candidatos que exploraram acontecimentos relevantes e contemporâneos à disputa eleitoral em suas propagandas eleitorais, ainda que de forma desfavorável ao seu concorrente.

Com essa linha de entendimento, o TSE proclama que “a liberdade do direito ao voto depende, preponderantemente, da ampla liberdade de discussão, de maneira que deve ser garantia aos pré–candidatos, candidatos e seus apoiadores a ampla liberdade de expressão e de manifestação, possibilitando ao eleitor pleno acesso às informações necessárias para o exercício da livre destinação de seu voto” (TSE - Rp: n. 0601586-48/DF, Relator: Min. Alexandre de Moraes, Data de Julgamento: 28.10.2022, Data de Publicação: 28.10.2022).

Na hipótese, a realização de postagens relacionando Faisal com reuniões para discutir a produção de deepfake em desfavor do seu adversário político não se qualifica como divulgação de fatos sabidamente inverídicos, tratando-se, em realidade, de legítimo exercício do direito de liberdade de expressão.

Igualmente, não há como entender pela violação do art. 9º da Resolução TSE n. 23.610/19, pois a divulgação do fato estava amparada em informações reiteradamente reproduzidas em sítios jornalísticos.

Na esteira da jurisprudência do TSE, a caracterização do abuso exige “que a gravidade dos fatos seja comprovada de forma robusta e segura a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo)” (Agravo em Recurso Especial Eleitoral n. 060098479, Acórdão, Min. Floriano De Azevedo Marques, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, 31.05.2024).

Portanto, não basta a simples repercussão negativa ou a ampla divulgação de acontecimentos desfavoráveis ao candidato para caracterizar o abuso de poder ou o uso indevido dos meios de comunicação. Impõe-se, para tanto, a demonstração de atuação deliberada e desproporcional, apta a comprometer a igualdade de oportunidades entre os concorrentes, a partir de fatos altamente reprováveis, o que não se comprova nos presentes autos.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo desprovimento do recurso, mantendo-se integralmente a sentença de improcedência da ação.