REl - 0600507-04.2024.6.21.0057 - Acompanho o(a) relator(a) - Sessão: 26/08/2025 às 16:00

VOTO

Eminente Presidente.

Após detida análise dos autos e da manifestação bem fundamentada da ilustre Relatora, acompanho integralmente o voto, pelas razões que passo a expor, com breves acréscimos de fundamentação, rogando vênia ao entendimento em sentido contrário.

Quanto ao conjunto probatório, a sentença, de forma expressa, afirma que as três candidatas tiveram votação zerada ou insignificante (6 – Letícia, 3 – Ana Paula, e 0 votos - Tatiana), não provaram ter praticado atos de campanha, de forma presencial ou virtual, e apresentaram contas padronizadas, praticamente sem movimentação financeira. As contas indicam o recebimento de R$ 850,00 do Fundo Eleitoral (FEFC) e de material impresso - cuja distribuição não foi comprovada – com a totalidade do valor recebido aplicado em despesas com o mesmo contador. Repiso: todo o valor recebido pelas três candidatas foi repassado à mesma empresa de contabilidade, conforme consta de modo público no DivulgaCandContas do TSE.

Ou seja, as três candidatas limitaram-se à formalização do registro de candidatura, mas a sentença, ainda assim, concluiu pela inexistência de elementos suficientes para caracterização de fraude, ao fundamento de que alguns candidatos homens também tiveram contas com movimentação semelhante.

Ao contrário do entendimento há muito sedimentado no TSE e consolidado no enunciado da Súmula n. 73 e art. 8º da Resolução TSE n. 23.735/2024, de que os requisitos da configuração da fraude são objetivos, sendo desnecessária a apuração de dolo ou má-fé, a sentença assume ter realizado o julgamento por suposição e presunção.

Relativamente à votação irrisória e zerada das candidatas, afirma o julgador que “A inexpressividade da votação é conceito aberto, a ser densificado pelo julgador”, e tece considerações sobre a votação de outras candidatas, que não as acusadas de cometimento de fraude, chegando a afirmar, quanto à votação zerada da investigada Tatiana, que “a candidata TATIANA SILVA MACHADO boicotou a sua própria candidatura”, esquecendo-se que, no mais das vezes, o que se vê é um total abandono partidário das candidatas femininas.

Essa constatação de abandono total partidário das candidaturas femininas, aliás, reforça a necessidade de interpretar a política afirmativa de gênero sob a ótica do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, do Conselho Nacional de Justiça. O distanciamento entre as estruturas partidárias e as mulheres lançadas apenas formalmente à disputa evidencia um cenário de invisibilização e exclusão, que não pode ser naturalizado pelo Poder Judiciário. A aplicação do protocolo interpreta essas práticas como expressões institucionais de desigualdade, o que impõe ao julgador o dever de zelar pela efetividade das ações afirmativas, com especial atenção à materialidade das candidaturas femininas e ao seu apagamento na disputa eleitoral.

Sobre a prestação de contas padronizada ou sem movimentação financeira relevante, a sentença constrói raciocínio a partir das contas de candidatos masculinos, para os quais não foi imputada fraude. Refere considerar que o partido recebeu “quantia módica para se realizar uma eleição”, e que, por constar nas contas o recebimento de R$ 850,00 do Fundo Eleitoral (FEFC) “se presume (...) que o partido, de alguma maneira, depositava esperanças em tais candidaturas”. Olvidou o magistrado do fato de que a integralidade do valor recebido pelas três candidatas foi destinada para o mesmo contador, sem demonstração de qualquer investimento no fomento da campanha. Nada foi aplicado para alavancar a própria eleição.

Além disso, apesar de considerar expressamente que não há prova de atos de campanha para a própria candidatura por parte das três candidatas investigadas, pois Ana Paula aparece em ato público com bandeira e santinhos da candidatura majoritária, e não da sua candidatura, não em benefício próprio, a sentença relativiza esse dado com base em suposições e comparações indevidas.

O juízo reconhece a falta de prova de divulgação de propaganda, mas entende que essas ausências não são suficientes para caracterizar a fraude à cota de gênero. Em vez de valorizar os critérios objetivos, passa a especular sobre hipóteses não comprovadas nos autos, como a possibilidade de que os candidatos tenham publicações apagadas ou que tenham feito somente campanha “boca a boca”, fora das redes sociais, sem nenhuma evidência concreta e fidedigna de prova nesse sentido.

Há meras suposições não amparadas em prova idônea e incontroversa, ao mesmo tempo em que a decisão reconhece serem imprestáveis as declarações juntadas aos autos narrando que as candidatas teriam feito campanha presencial, por serem “padronizadas e produzidas unilateralmente, são ambíguas, pois delas se pode extrair interpretação de que a candidata TATIANA SILVA MACHADO fez campanha pedindo votos para si ou para outrem”.

Apesar de todo o caderno probatório demonstrar, sem sombra de dúvidas, a presença dos elementos que caracterizam a candidatura fictícia, a sentença conclui que “inexiste prova de que referidas candidatas efetivamente deixaram de realizar campanha para si”. O juízo confirma que não há qualquer imagem ou testemunho que comprove a participação em atos públicos para beneficiar as candidatas, o que, segundo o TSE, é elemento objetivo caracterizador da fraude. É grave a tentativa de deslocar o ônus probatório para pressupor que a candidatura foi legítima.

Esse tipo de argumento, contrário ao entendimento consolidado do TSE, que regulamenta como requisitos caracterizadores da fraude à cota, entre outros, a ausência de atos de campanha, prestação de contas padronizada e votação irrisória ou zerada, de todo fulmina o objetivo da ação afirmativa. E a decisão ainda compara as candidaturas impugnadas com a de candidatos homens, inclusive com a própria candidatura à eleição majoritária do partido, cujo perfil de rede social também estaria inativo, para presumir ter havido campanha na internet.

Essa equiparação é indevida e descontextualizada, já que o objeto da AIJE não são esses outros candidatos, mas sim a conduta específica das três investigadas. A tentativa de amenizar a ausência de campanha com base em terceiros, homens, alheios ao polo passivo do processo, enfraquece a análise e desvia o foco dos fatos relevantes apurados nos autos.

E esse é justamente um dos pontos mais frágeis e destoantes da sentença: a forma como relativiza a ausência de atos de campanha, tratando a exceção como regra, fazendo conjecturas descoladas dos autos, desconsiderando os elementos robustos de ausência de campanha com base em presunções subjetivas e não comprovadas. A sentença está em frontal desalinho com a jurisprudência do TSE que fixou critérios objetivos para a configuração da fraude à cota de gênero.

A jurisprudência do TSE é clara ao considerar a ausência de atos próprios de campanha, especialmente no contexto de prestação de contas padronizada e votação ínfima ou zerada, como elementos que caracterizam fraude à cota de gênero. Não se exige campanha digital profissionalizada, mas ao menos elementos mínimos de que uma candidatura foi levada a sério, tanto pela candidata quanto pela legenda, o que a sentença reconhece não ter acontecido.

Considero que a manutenção da decisão se trata de um retrocesso hermenêutico que esvazia a própria razão de ser da política afirmativa da cota de gênero. Como bem consolidado pela diretriz jurisprudencial firmada pelo Tribunal Superior Eleitoral: “Para a configuração de fraude à cota de gênero, não se exige prova cabal da existência de dolo, má-fé ou de ajuste de vontades entre representantes partidários e as candidaturas, bastando a evidência de elementos puramente objetivos” (TSE, AgR-AREspE 0600002–81, rel. Min. Sérgio Banhos, DJE 08.05.2023; REspEl 060000351/PA, rel. Min. Floriano de Azevedo Marques, DJE 08.05.2024).

Nos termos da jurisprudência firmada pelo TSE: “o elemento subjetivo consistente no conluio entre as candidatas laranjas e o partido político não integra os requisitos essenciais à configuração da fraude na cota de gênero” (AgR-REspEl n. 0600311-66/MA, Rel. Min. Raul Araújo Filho, DJe de 12.5.2023).

Colaciono, por elucidativa, a seguinte ementa:

ELEIÇÕES 2020. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. VEREADOR. FRAUDE À COTA DE GÊNERO. ART. 10, § 3º, DA LEI 9.504/97. CANDIDATURAS FEMININAS FICTÍCIAS. CARACTERIZAÇÃO. PROVIMENTO. (...) 4. A partir do leading case de Jacobina/BA (AgR-AREspE 0600651-94, redator para o acórdão Min. Alexandre de Moraes, DJE de 30.6.2022), a jurisprudência deste Tribunal tem reiteradamente assentado que a obtenção de votação zerada ou pífia das candidatas, a prestação de contas com idêntica movimentação financeira e a ausência de atos efetivos de campanha são suficientes para evidenciar o propósito de burlar o cumprimento da norma que estabelece a cota de gênero, quando ausentes elementos que indiquem se tratar de desistência tácita da competição (REspEl 0600001-24, rel. Min. Carlos Horbach, DJE de 13.9.2022). Precedentes. 5. A jurisprudência desta Corte está alinhada ao entendimento do STF, firmado no julgamento da ADI 6.338/DF, rel. Min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, sessão virtual, DJE de 4.4.2023. 6. Ao apreciar o REspEl 972-04, rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 26.10.2022, o REspEl 0600965-83, rel. Min. Floriano de Azevedo Marques, DJE de 15.9.2023, e o RO-El 0601822-64, rel. Min. Raul Araújo Filho, DJE de 15.2.2024, esta Corte reconheceu a fraude à cota de gênero, considerando, além de outros elementos objetivos – votação ínfima ou zerada, inexistência de atos efetivos de campanha, ausência de registro de despesas, não apresentação das contas, entrega de prestações de contas padronizadas ou com movimentação financeira zerada, conforme o caso –, as seguintes circunstâncias fáticas, por, em conjunto, evidenciarem inércia dolosa do partido em se adequar aos percentuais estampados no art. 10, § 3º, da Lei das 9.504/97: (...) d) as candidatas Geovana de Sousa Ferreira, Nubia Gardeny Cardoso da Silva e Marciléa da Silva Cardoso obtiveram, respectivamente, votação inexpressiva de 3, 8 e 13 votos; e) não há qualquer prova de campanha eleitoral realizada por essas candidatas, tendo o voto divergente da Juíza Federal Carina Cátia Bastos de Senna destacado que “não há um santinho no processo, não há uma bandeira, não há uma prova de que essas candidatas fizeram campanha” (ID 159985389); f) não houveram gastos eleitorais efetuados nestas candidaturas, nas quais consta, nas prestações de contas, o valor de R$ 200,00 reais em estimativa decorrente do trabalho do advogado e do contador fornecido pelo partido para fazer a própria prestação de contas; g) não há nenhum gasto eleitoral para a realização de campanha eleitoral. Das razões para o não acolhimento das alegações de mérito apresentadas pelas partes recorridas 8. Para a configuração de fraude à cota de gênero, não se exige prova cabal da existência de dolo, má-fé ou de ajuste de vontades entre representantes partidários e as candidatas, bastando a evidência de elementos puramente objetivos (AgR-AREspE 0600002-81, rel. Min. Sérgio Banhos, DJE de 8.5.2023; e AgR-REspEl 0600311-66, rel. Min. Raul Araújo Filho, DJE de 12.5.2023), a exemplo da votação ínfima ou zerada, da ausência de atos efetivos de campanha, da inexistência de gastos eleitorais e da não apresentação de prestação de contas (...)  10. O partido é o responsável pela apresentação à Justiça Eleitoral dos pedidos coletivos de registro das suas candidatas e dos seus candidatos e, na hipótese, o indeferimento ocorreu em razão da ausência de certidões da Justiça Estadual de 1º e 2º graus, comprovante de escolaridade, certidão de quitação eleitoral e comprovação de filiação partidária, o que evidencia a desídia na apresentação de documentos elementares para a apreciação do pedido de registro e cuja ausência tornava sabidamente inviáveis as candidaturas. (...)  Conclusão Agravo e recurso especial eleitoral a que se dá provimento, para reformar o acórdão regional e julgar procedentes os pedidos formulados na ação de impugnação de mandato eletivo, com base em ofensa ao art. 10, § 3º, da Lei 9.504/97, determinando-se o seguinte: a) a nulidade dos votos obtidos pelo Partido Social Democrático (PSD) e por todos os seus candidatos e candidatas ao cargo de vereador do Município de Abaetetuba/PA nas Eleições de 2020; b) a cassação do Demonstrativo de Regularidade de Atos Partidários (DRAP) do Partido Social Democrático (PSD) do Município de Abaetetuba/PA, nas Eleições de 2020, e dos diplomas dos candidatos e das candidatas a ele vinculados, com o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário. Determina-se, ainda, o cumprimento imediato da decisão, independentemente de publicação do acórdão.

(TSE, RESPE 0600003-51.2021.6.14.0007, Rel. Min. Floriano de Azevedo Marques, DJe 08/05/2024)

 

Portanto, com base nos elementos constantes dos autos e na diretriz jurisprudencial consolidada do TSE, não há como sustentar a validade das candidaturas que se limitaram a preencher formalmente o sistema de registro, sem qualquer mobilização mínima de campanha.

DIANTE DO EXPOSTO, renovando as vênias ao pensamento contrário, acompanho integralmente a Relatora.