ED no(a) PCE - 0603296-21.2022.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 08/11/2023 às 17:00

VOTO

O acórdão embargado desaprovou as contas e determinou o recolhimento da quantia de R$ 5.150,00 ao Tesouro Nacional, referente à aplicação irregular de verbas do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, devido ao pagamento de despesas de prestação de serviços de “atividades de militância e mobilização de rua”, mediante a emissão de dois cheques nominais, mas não cruzados, nos valores de R$ 5.000,00 e de R$ 150,00, o que impediu a correta identificação das supostas pessoas beneficiárias dos recursos nos extratos bancários das contas de campanha (ID 45358000).

A embargante alega dúvida e omissão no acórdão, pois a decisão foi omissa quanto à prova carreada aos autos após a emissão do parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, a qual comprovaria, por meio da microfilmagem dos cheques (frente e verso), que os valores foram pagos e descontados pelas militantes contratadas, Maria Irani Alves Garcia e por Cauane Bica de Bem.

Ainda, refere obscuridade sobre a lisura e a idoneidade da candidata relativamente ao pagamento de R$ 5.000,00 efetuado a Maria Irani Alves Garcia, pois o aresto concluiu que houve a compensação de um cheque, no valor de R$ 5.000,00 em benefício da pessoa física da candidata, a evidenciar que tais recursos, oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), não foram utilizados para o pagamento dos supostos serviços prestados por Maria Irani Alves Garcia, referente ao qual se juntou o contrato de prestação de serviço e cheque nominal de ID 45458343, que não foi registrado no extrato eletrônico.

Do exame dos autos, entendo que assiste razão à embargante quanto à omissão do acórdão por ausência de manifestação expressa sobre os documentos juntados com a nota explicativa acostada aos autos após o término da instrução, na semana anterior ao julgamento do feito (ID 45547379, 45547380 e 45547381).

Efetivamente, este Tribunal tem firme jurisprudência no sentido da possibilidade de apresentação intempestiva de documentos em processos de prestação de contas, após a emissão dos pareceres técnicos e ministerial, desde que não acarrete prejuízo à tramitação e que, com a sua simples leitura, seja possível sanar a irregularidade.

Se a documentação não demanda nova análise técnico-contábil e a reabertura da instrução, os documentos intempestivos podem ser conhecidos desde que apreciáveis sub icto oculi e que sejam fidedignos, trazendo juízo de certeza e segurança acerca da comprovação de despesas, sendo esse o caso dos autos.

Assim, o recurso merece ser acolhido nesse ponto, a fim de que os documentos juntados pela candidata após o parecer da Procuradoria Regional Eleitoral sejam apreciados, sanando-se a omissão.

Com respeito à documentação sob análise, os microfilmes das cártulas atestam o não cruzamento dos cheques, exigência prevista no art. 38, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607/19, e demonstram a realização de endossos em branco (IDs 45547380 e 45547381).

Assim, a nota explicativa e seus anexos (IDs 45547379, 45547380 e 45547381) não alteram a conclusão da decisão recorrida sobre o descumprimento da exigência de cruzamento dos cheques disposta no art. 38, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607/19.

Os documentos intempestivos, portanto, em nada modificam o julgado quanto à consideração de que a candidata declarou ter realizado o pagamento de R$ 5.000,00 a Maria Irani Alves Garcia e de R$ 150,00 a Cauane Bica de Bem, mediante emissão de cheque nominal e não cruzado, o que permitiu seu desconto e/ou saque sem a regular identificação das pessoas beneficiadas nos extratos bancários, impedindo o rastreio dos recursos públicos e a vinculação do crédito às fornecedoras declaradas, bem como a transparência das contas e sua fiscalização pela Justiça Eleitoral.

No que tange à demonstração de que os cheques foram endossados por meio de endosso em branco, a Procuradoria Regional Eleitoral aponta que os cheques são nominais a Maria Irani Alves Garcia e a Cauane Bica de Bem, e que as microfilmagens demonstram que o cheque de R$ 5.000,00 foi firmado, no verso, por Maria Irani Alves Garcia e pela candidata embargante Edilamar Alves Rodrigues, e o de R$ 150,00 foi firmado somente por Cauane Bica de Bem.

Nesse ponto, o Parquet considera ter sido esclarecido o pagamento de R$ 150,00 realizado a Cauane Bica de Bem, porque o valor é acima de R$ 100,00, hipótese em que a regulação do Banco Central determina ser possível o desconto em boca de caixa se o cheque for nominal e contenha o registro do beneficiário do saque, concluindo ser certo que a assinatura do verso é a da beneficiária do pagamento, Cauane.

Adotando esse mesmo raciocínio, a Procuradoria Regional Eleitoral considera irregular o pagamento do cheque de R$ 5.000,00, visto que, embora nominal à prestadora do serviço de militância Maria Irani Alves Garcia, foi endossado pela militante e firmado, no verso, pela própria candidata Edilamar, demonstrando que o valor foi revertido pela pessoa física da prestadora.

Acerca do tema, não desconheço que esta colenda Corte afastou a tese esposada pelo órgão ministerial em julgamentos que envolveram o desconto do cheque por terceiros.

Nesses casos, considerou-se que o endosso somente pode ser realizado regular quando o cheque for emitido de forma nominal e cruzada, obedecendo ao art. 38 da Resolução TSE n. 23.607/19, única hipótese em que os candidatos não poderiam ser responsabilizados pelo endosso e pagamento a terceiro diferente da relação contratual entre as partes indicadas na contabilidade, dado que o cheque nominal e cruzado pode ser endossado por meio de assinatura no verso.

Isso porque, na forma do art. 17, § 1°, da Lei n. 7.352/85 (Lei do Cheque), para proibir o endosso de cheque, ainda que nominal e cruzado, deve-se marcar como “não à ordem” a cártula, pois todo o cheque, por padrão, apresenta a expressão “à ordem”, podendo ser endossado normalmente. Para proibir a concessão, deve-se riscar o “à ordem” e colocar “não à ordem” em cima, mas o art. 38, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607/19 não estabelece essa exigência, de vedação ao endosso.

Cito, a propósito, os seguintes precedentes:

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATOS. PREFEITO E VICE. DESAPROVAÇÃO. PRELIMINAR. CONHECIDOS OS DOCUMENTOS JUNTADOS AO RECURSO. MÉRITO. APLICAÇÃO IRREGULAR DE RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO E DO FUNDO ESPECIAL DE FINANCIAMENTO DE CAMPANHA – FEFC. DESPESAS PARCIALMENTE COMPROVADAS. ENDOSSO. POSSIBILIDADE. PAGAMENTO POR MEIO DE CHEQUE SEM CRUZAMENTO. MANTIDA A DESAPROVAÇÃO DAS CONTAS. REDUZIDO O MONTANTE A SER RECOLHIDO AO TESOURO NACIONAL. PARCIAL PROVIMENTO.

(...)

3. Os gastos eleitorais devem ser comprovados por documentos idôneos, nos termos do art. 60 da Resolução TSE n. 23.607/19. Quanto ao pagamento, devem os dispêndios observar a forma prescrita no art. 38 da referida resolução. A legislação eleitoral, ao estabelecer as formas de pagamento dos gastos eleitorais, não impõe a emissão de cheque não endossável (“não a ordem”), não sendo exigível dos candidatos que o próprio prestador do serviço ou o fornecedor do bem faça o desconto do título, o qual pode ser licitamente transmitido a terceiros, conforme previsto no art. 17 da Lei n. 7.357/85, desde que sejam observados os fins colimados pelo art. 38, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607/19. Na hipótese, ocorrência de despesas pagas por meio de cheques não endossados, não tendo sido demonstrada a coincidência entre fornecedor e beneficiário de pagamento com recursos públicos, impõe-se o recolhimento da quantia equivalente ao Tesouro Nacional. Por outro lado, ordens de pagamento que, embora tenham sido descontadas por terceiros, foram depositadas em conta bancária a partir de endossos realizados pelos fornecedores declarados, o que viabiliza o afastamento do dever de recolhimento da quantia ao Tesouro Nacional.

4. Pagamento de gastos por meio de cheques emitidos sem cruzamento e descontados na boca do caixa. Mesmo nos casos em que este Tribunal tem admitido a circulação do título mediante endosso, não se tem mitigado a exigência de que o cheque tenha sido originariamente cruzado e descontado em conta bancária, ainda que sob a titularidade de terceira pessoa. A finalidade da exigência do cruzamento do cheque reside na obrigação do recebedor de depositá-lo em conta bancária para compensação, integrando um ciclo ou arquitetura de formalidades previstas na Resolução TSE n. 23.607/19, desde o recebimento de doações, passando pelas contratações à quitação de despesas, tendentes a possibilitar a fiscalização e diminuir a possibilidade de fraudes, especialmente em se tratando de verbas públicas. Na hipótese, existência de falha quanto à forma de pagamento dos gastos realizados com recursos públicos, cuja quantia deve ser restituída ao Tesouro Nacional, por ausência de comprovação segura de sua utilização regular, nos termos do art. 79, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19.

5. Parcial provimento. Manutenção da desaprovação das contas. Redução da quantia a ser recolhida ao Tesouro Nacional.

(TRE/RS – REl nº 060051881, Relatora Desembargadora Eleitoral Kalin Cogo Rodrigues, Publicação: DJE, Data 10/06/2022).

 

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. CARGO DE VEREADOR. DESAPROVAÇÃO. RECOLHIMENTO DE VALORES AO TESOURO NACIONAL. DESPESA COM SERVIÇOS NÃO COMPATÍVEIS COM ATIVIDADES DE CAMPANHA ELEITORAL. CONTRATO IRREGULAR. DESPESA PAGA COM CHEQUE NÃO CRUZADO. SAQUE EM “BOCA DO CAIXA”. DÍVIDAS DE CAMPANHA. NÃO APRESENTADOS DOCUMENTOS OBRIGATÓRIOS. INVIABILIDADE DA APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. PROVIMENTO NEGADO.

(...)

3. Despesa paga com cheque não cruzado, em desobediência ao art. 38 da Resolução TSE n. 23.607/19. Verificado em sistema da Justiça Eleitoral que o cheque foi sacado na “boca do caixa”, impossibilitando a identificação da contraparte beneficiada com o recurso. Inviabilizada a comprovação da correta destinação do recurso público, irregularidade que macula a higidez e transparência das contas. Mantida a determinação de recolhimento do valor irregular ao Tesouro Nacional.

4. Ocorrência de dívidas de campanha oriundas do não pagamento de despesas contraídas. Uma vez não acostados os documentos exigidos pelo art. 33, §§ 2º e 3º, da Resolução TSE n. 23.607/19, relativos à assunção do débito pelo partido, a irregularidade deva ser mantida. Nesse sentido, jurisprudência do TSE. Alegação de que o procedimento é prejudicial aos candidatos, não afasta a incidência da norma.

5. As irregularidades representam 27,58% do total das receitas declaradas, circunstância que torna inviável a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade para aprovar as contas com ressalvas. Manutenção da sentença.

6. Provimento negado.

(TRE/RS – REl nº 060061983, Relator Desembargador Eleitoral Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle, Publicação: DJE, Data: 17/03/2022.)

 

Ocorre que, no caso dos autos, não há dúvidas de que o cheque de R$ 150,00 foi efetivamente descontado na boca do caixa pela prestadora de serviços contratada nas contas, Cauane Bica de Bem, não sendo caso de desconto do cheque por terceiros porque, embora endossado, o cheque estava nominal e a microfilmagem confirma o desconto pela própria militante.

Portanto, nesse ponto o recurso comporta provimento, a fim de que sejam agregados efeitos infringentes, mantendo-se o apontamento de irregularidade devido à falta de cruzamento do cheque, mas afastando-se a determinação de recolhimento do valor ao erário por ter sido devidamente confirmada a destinação dos recursos à militante contratada.

Por fim, conforme bem apontado pela Procuradoria Regional Eleitoral, tem-se que a microfilmagem do cheque de R$ 5.000,00 apenas confirma a constatação realizada pelo órgão técnico de que o valor, procedente do FEFC, foi sacado pela própria candidata, a qual firmou o verso da cártula que estava nominal a Maria Irani Alves Garcia.

A fim de afastar qualquer obscuridade, a Procuradoria Regional Eleitoral ilumina a cadeia de endossos do cheque de R$ 5.000,00, sendo a candidata a última endossatária, constando sua firma no verso da cártula (ID 45547381):

No cheque de R$ 5.000,00 que beneficiou a embargante, EDILAMAR ALVES RODRIGUES, é possível concluir que a beneficiária original, Maria Irani Alves Garcia, promoveu o endosso em branco do título, como admite o art. 19, §1º, da Lei nº 7.357/85, devolvendo-o para a emitente, transformando o título em um cheque ao portador.

Todavia, como dito, os bancos devem recusar cheques desta qualidade, quando o valor for superior a R$ 100,00, razão pela qual, quando o cheque foi descontado pela embargante na boca do caixa, foi exigida a sua assinatura, tanto como forma de identificação do beneficiário do pagamento como de endosso do título à instituição financeira.

Nesse contexto, é possível verificar que a despesa de R$ 150,00 foi paga à prestadora dos serviços, mas a despesa de R$ 5.000,00 é inquestionavelmente ilegal, pois beneficiou a própria candidata, ora embargante.

 

De fato, ao observar o extrato bancário disponível ao público em site da Justiça Eleitoral na divulgação das contas da candidatura em análise referente ao trânsito de valores do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, para o desconto do título de crédito de R$ 5.000,00, registra-se o saque em nome da candidata Edilamar Alves Rodrigues, com anotação do seu respectivo CPF como beneficiária.

Quanto ao ponto, foi determinado no acórdão embargado o envio de cópia dos autos ao Ministério Público Eleitoral da zona eleitoral da candidata, para apuração de suposta prática de ilícito criminal.

Com esses esclarecimentos, os embargos merecem parcial acolhimento, com efeitos infringentes, para sanar a omissão referente ao exame dos documentos juntados, após o término da instrução, e afastar a determinação do recolhimento da quantia de R$ 150,00 ao Tesouro Nacional, mantida a desaprovação das contas.

A conclusão pela desaprovação das contas merece ser mantida porque a irregularidade de R$ 5.000,00 representa 18,45% do montante de recursos recebidos (R$ 27.086,00), encontrando-se acima do parâmetro legal de R$ 1.064,10 admitido pela jurisprudência como “balizador, para as prestações de contas de candidatos” e “como espécie de tarifação do princípio da insignificância” (AgR–REspe 0601473–67, de relatoria do Ministro Edson Fachin, de 5.11.2019), sendo adequado, razoável e proporcional, no presente caso, o julgamento desaprovador em controle judicial de contas.

Ante o exposto, VOTO pelo acolhimento parcial dos embargos de declaração, com efeitos infringentes, para sanar o apontamento de omissão, agregando-se a presente fundamentação na decisão embargada, e afastar a determinação do recolhimento da quantia de R$ 150,00 ao Tesouro Nacional, mantida a desaprovação das contas e a arrecadação de R$ 5.000,00 ao erário, relativo à irregularidade na aplicação de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).