REl - 0600561-03.2020.6.21.0059 - Voto Relator(a) - Sessão: 07/11/2023 às 14:00

VOTO

1. Admissibilidade Recursal

O recurso é tempestivo e, diante da presença dos demais pressupostos de admissibilidade, está a merecer conhecimento.

2. Mérito

O Ministério Público Eleitoral ingressou com a presente ação de impugnação de mandato eletivo, de cunho constitucional, com assento no art. 14, §§ 10 e 11, da Constituição Federal, cujas hipóteses de cabimento são o abuso do poder econômico, corrupção ou fraude:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

§10 O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.

§11 A ação de impugnação de mandato tramitará em segredo de justiça, respondendo o autor, na forma da lei, se temerária ou de manifesta má-fé.

As condutas que podem caracterizar a procedência de uma AIME não são taxativas, mas substanciadas em quaisquer atos ilícitos que extrapolem o exercício regular e legítimo da posição pública, ou capacidade econômica, dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito, rompendo com a normalidade e legitimidade da eleição. Nessa linha, a doutrina de Rodrigo López Zílio (Direito Eleitoral - 8ª ed. rev., ampl. e atual., - São Paulo: Jurispodivm, 2022, p. 717):

[...] Portanto, da antinomia das normas, em uma interpretação sistemática, deve se sobrepor aquela que melhor observe o fim básico do Direito Eleitoral, que é a preservação da higidez da manifestação de vontade do corpo eleitoral. Em conclusão, não obstante a omissão do legislador constituinte ao estabelecer as hipóteses normativas do § 10 do art. 14 da CF, deve prevalecer o entendimento de que é cabível a apuração de toda e qualquer forma e espécie de abuso de poder – seja político, de autoridade, econômico ou uso indevidos dos veículos e meios de comunicação social – na AIME. (Grifo nosso)

Ainda, no tocante ao abuso de poder, convém assinalar que os atos eivados de tal vício serão interpretados sob o viés do indevido desequilíbrio ao pleito. A quebra da normalidade e legitimidade está vinculada à gravidade das circunstâncias, sem a necessidade de que seja demonstrada a relevância no tocante ao resultado das urnas. Nesse sentido, bem esclarece José Jairo Gomes:

É preciso que o de poder seja relevante, ostentando aptidão para comprometer a integridade, lisura, normalidade e legitimidade das eleições, pois são esses os bens jurídicos tutelados pela ação em apreço. Por isso mesmo, há mister que as circunstâncias do abuso sejam graves (LC considerado o evento 64/90, art. 22, XVI), o que não significa devam necessariamente propiciar a alteração do resultado das eleições. Isso significa que elas devem evidenciar “gravidade suficiente para amesquinhar a principiologia reitora do processo eleitoral (legitimidade e normalidade das eleições e lisura do prélio), independentemente da diferença de votos entre o primeiro e o segundo colocado. [...]. 20. O fato de as condutas supostamente abusivas ostentarem potencial para influir no resultado do pleito é relevante, mas não essencial. Há um elemento substantivo de análise que não pode ser negligenciado: o grau de comprometimento aos bens jurídicos tutelados pela norma eleitoral causado por essas ilicitudes, circunstância revelada, in concrecto, pela magnitude e pela gravidade dos atos praticados” (TSE – REspe no 139248/SP – DJe, t. 107, 2-6-2017, p. 37-40). Nessa perspectiva, ganha relevo a relação entre, de um lado, o fato imputado e, de outro, seu consectário consistente na falta de integridade, higidez, anormalidade ou desequilíbrio do pleito. Impõe-se a presença de liame objetivo entre tais eventos. (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 18. edição. Grupo GEN, 2022, pág. 923)

Estabelecidas tais premissas, passo à análise dos fatos e das provas contidas nos autos, associados às razões das partes.

2.1. Alteração das rotinas e fluxos da Unidade Básica de Saúde

Aduz o recorrente Ministério Público Eleitoral que, em período próximo à eleição, Ana Paula teria alterado rotinas e fluxos de trabalho da Unidade Básica de Saúde que coordenava, emitindo ordens – desbordantes de sua esfera de competência – para os servidores, com a finalidade de beneficiar a candidatura de JUAREZ, seu marido.

As atribuições de Ana Paula, conforme depoimentos das testemunhas, seriam de ordem administrativa e, especialmente, ligadas à gestão de servidores, ficando a parte técnica de avaliação de pacientes e marcação de visitas a cargo da equipe de enfermagem. Alega o Parquet, ademais, que Ana Paula teria interferido nos procedimentos técnicos da unidade.

No tópico, o Ministério Público destaca a testemunha Andressa Dutra da Silva Garcia:

[...] na época da campanha eleitoral começaram a ocorrer coisas muito estranhas no fluxo da unidade. Referiu que Ana ligava para a equipe durante atendimentos, mandando que fizessem atendimentos domiciliares para certos pacientes naquele momento. Disse que isso não era o correto, porque as visitas são feitas com hora marcada, há o carro que leva os profissionais, então começaram a se dar conta que ela estava fazendo isso como forma de campanha eleitoral. Referiu que é enfermeira da unidade e que estranhou uma vez que Ana mandou que um técnico fizesse visitas a uma senhora durante duas semanas para realizar curativos nela, sendo que Ana não poderia fazer tal determinação e que a senhora não precisava. Disse que um dia foi junto para verificar qual a complexidade e viu que aquele curativo nem era necessário. Referiu que os médicos começaram a estranhar as agendas deles porque eles é que solicitam retornos e, durante a campanha, esses retornos passaram a ser preenchidos sem que eles tenham solicitado.

Ainda, a testemunha Suélen Souza Rosa referiu que “(...) ouviu lá dentro que Ana Paula pedia para os médicos atenderem pacientes que não estavam na agenda. Disse que quando ficou na recepção, via pacientes chegarem e conversarem com Ana Paula e depois passarem por consulta, mas não sabe dizer qual a relação que tinham”.

Por seu turno, a testemunha Patrícia Kologeskia da Silva referiu ser “[...] comum médicos fazerem visitas a pacientes acamados. Explicou que primeiro é feita uma triagem e depois isso é passado para o médico pela equipe de enfermagem. Referiu que essa decisão é da equipe de enfermagem e não do diretor da unidade”.

Este magistrado é ciente da reserva com que se deve receber a prova testemunhal em feitos eleitorais, sobretudo porque o espaço político é, sabidamente, permeado de ideologias e interesses pessoais. Ainda assim, demandam atenção os testemunhos no ponto que abordam a ocorrência de modificações procedimentais das visitas domiciliares, sobretudo porque indicam o sensível período das eleições, e porque a decisão final quanto à realização de visitas cabia à equipe de enfermagem, e não à gestora da unidade (Ana Paula), mediante a aplicação de critério objetivo – aspecto técnico –, limite esse que parece de fato ter sido, ocasião ou outra, ultrapassado. Episódios sobre a troca de curativos de uma senhora, ou pedidos para médicos atenderem pacientes fora da agenda, ao que tudo indica, ficaram presentes na memória das testemunhas, por destoarem da prática usual.

2.2. Medicamentos e receituários apreendidos no automóvel

Na data de 17.12.2020, em cumprimento a mandado de busca e apreensão emanado do Juízo da 59ª Zona Eleitoral, foram apreendidos medicamentos e materiais médicos em veículo pertencente a JUAREZ e Ana, que se encontrava estacionado no pátio da residência do casal (ID 45126386).

O policial civil Fernando Barella participou das diligências de apreensão, e depôs perante o juízo:

Referiu lembrar que acharam no porta malas do veículo medicamentos, luvas, capilares, material utilizado em UBSs. Disse que os medicamentos eram, em sua maioria, utilizados em gestantes. Afirmou que também havia ansiolítico, medicamentos de uso controlado, e que na casa havia notas. Explicou que participou do cumprimento na casa, mas recorda que no compilado das apreensões constava apreensão de material de campanha na UBS. Disse que o veículo estava na garagem da casa do acusado e acha que era o único no local. Afirmou que o porta malas estava lotado e que havia coisas no banco traseiro também. Disse que não tem certeza, mas recorda que havia alguma coisa que indicava que os materiais eram do município de Viamão. Disse que os três estavam na casa: Juarez, Ana Paula e o filho. Afirmou que Ana Paula disse que o ansiolítico era dela, mas que havia grande quantidade. Afirmou que apreenderam bastante material e acha que havia receituários médicos em branco e acha que de mais de um lugar.

O conteúdo do testemunho é contundente sob vários aspectos. Relata uma situação no mínimo inusitada – um porta-malas de automóvel lotado de medicamentos. O recorrido, em defesa, asseverou que “os medicamentos encontrados com Ana na busca e apreensão eram de sua mãe doente (não eram da rede pública de saúde)” (ID 45126530).

O tópico sob exame merece alguns esclarecimentos.

O primeiro turno das eleições 2020 ocorreu no dia 15.11.2020, em razão da pandemia causada pela COVID/19, e a busca e apreensão foi realizada no dia 17.12.2020, havendo no caso considerável distância temporal entre a data da eleição e a da apreensão dos medicamentos.

Esclareço que tal circunstância, por si só, afasta a possibilidade, mesmo hipotética, de que esses medicamentos e documentos tenham sido utilizados com finalidade eleitoral no pleito de 2020.

Contudo, parece nítido que, a par de eventualmente consubstanciarem ilícitos administrativos ou penais, a narrativa trazida pelos recorridos não se alinha aos fatos descritos pelo policial, pois um porta-malas "lotado" e "coisas no banco traseiro", em que a maioria de medicamentos era de uso destinado a gestantes (os recorridos não indicaram gravidez, mas apenas a "mãe doente" de Ana Paula), e "grande quantidade" de remédios de uso controlado (ansiolíticos que Ana Paula indicara uso próprio) desafiam o bom senso e as regras da experiência. Imagine-se, por exemplo, que a grande quantidade indicada pelo policial consubstanciasse 20 caixas de medicamento ansiolítico (as circunstâncias indicam que a quantidade seria bem maior).

Ora, sabidamente tal espécie de medicamento é ministrada conforme acompanhamento médico permanente e periódico (consultas semanais, mensais, no máximo bimensais), sempre com controle de receita e fornecido em pequenas quantidades exatamente pelos perigos notórios que representam. O relatado pelos recorridos traz um panorama de total desconexão com a verdade. Ainda que destacado o lapso temporal transcorrido, mostra-se clara uma nada recomendável relação de JUAREZ, então suplente de vereador no município, e de sua esposa, coordenadora de UBS, com medicamentos e materiais de saúde encontrados em sua propriedade, no porta-malas de seu carro.

Ou seja: ainda que não possa ser relacionada à fruição de vantagens, durante o processo eleitoral, pelo candidato, a situação também é adequada para indicar o grau de ciência de JUAREZ em relação a condutas de Ana – medicamentos dentro do carro do casal, no terreno da residência de ambos.

2.3. Arquivamento de inquérito civil de improbidade administrativa

Tramitou, perante o Ministério Público de Viamão, o Inquérito Civil n. 01548.000.599/2020, que teve como objeto de investigação supostas coações a funcionários da UBS, para que trabalhassem em prol da campanha de JUAREZ. A coatora seria Ana Paula, e a conclusão das investigações indicou o arquivamento do expediente (ID 45126428).

O recorrido sustenta, citando trecho da sentença, que “o inquérito civil averiguou fato idêntico ao objeto deste processo, reconhecendo a legalidade da realização da campanha por parte de Ana Paula, devendo prevalecer o mesmo raciocínio no âmbito eleitoral (ID 45126439)”.

Tenho que não assiste razão ao recorrido.

Em primeiro lugar, as apurações civil e eleitoral são independentes, de forma que o arquivamento ministerial, naquela esfera, não vincula o trâmite de processos e, menos ainda, o conteúdo de decisões judiciais eleitorais. Ademais, vale destacar que, no presente processo, há quantidade e qualidade bem maior de provas a serem analisadas em comparação com o citado inquérito civil, cujo objeto circunscreveu-se (em sua quase totalidade) a conversas existentes em grupos de aplicativo de mensagens.

2.4. Realização da campanha eleitoral por parte de funcionários da UBS

Preliminarmente à análise do presente tópico, tenho como necessário indicar, como incontroverso, o seguinte fato: Ana Paula atuou ativamente na campanha eleitoral de JUAREZ, conforme demonstram imagens de redes sociais (ID 45126426 - p. 11), e fruiu folgas, no turno da tarde, durante os 30 (trinta) dias anteriores à eleição, como consta no Memorando n. 075/20, documento oficial (ID 45126426 – p. 9).

Ademais, há demonstração segura de que o Bairro Santa Isabel se constitui em reduto eleitoral de JUAREZ, e a prova oral confirma tal circunstância. Na região, JUAREZ é conhecido como político, como personalidade pública pela população e, igualmente, não há dúvidas de que no Bairro Santa Isabel sua companheira, Ana Paula, foi nomeada, mediante cargo em comissão, Coordenadora de Unidade Básica de Saúde.

O Ministério Público Eleitoral alega ter havido coação – de parte de Ana Paula – a servidores da UBS, a fim de que realizassem campanha política para JUAREZ, sob pena de prejudicá-los em avaliação de estágio probatório (servidores concursados) e de não prorrogação de contratos de trabalho (servidores terceirizados). Além disso, Ana Paula teria solicitado aos servidores que distribuíssem propaganda eleitoral de JUAREZ nas visitas domiciliares, bem como controlassem minuciosamente, em planilhas, os eleitores visitados.

Há depoimentos de duas testemunhas nesse sentido bastante contundentes.

A testemunha Suélen Souza Rosa, agente comunitária de saúde na UBS à época, asseverou que:

 [...] um dia fez uma visita domiciliar com um médico e, ao retornar à UBS, foi chamada na sala de Ana, a qual lhe entregou um envelope onde constava uma planilha com nome, título de eleitor, zona e alguns papéis com propaganda eleitoral. Disse que Ana Paula pediu que os papéis fossem entregues para os cadastrados onde a declarante era agente de saúde. Afirmou que olhou assustada para Ana Paula e disse não. Referiu que Ana Paula disse: “tu não te esquece que para renovação do contrato de trabalho precisa da indicação da coordenadora”. Afirmou que se sentiu super coagida a fazer algo que não queria. Disse que pegou o envelope, levou para casa, onde rasgou e jogou fora.

Já a testemunha Andressa Dutra, à época enfermeira na UBS, assim manifestou-se:

Esclareceu que os responsáveis pelos agentes de saúde são as enfermeiras e que foi procurada por uma, chamada Suelen, que contou que Ana entregou envelopes aos agentes e mandou que distribuíssem e fizessem campanha para o esposa dela durante o trabalho. Disse que a agente de saúde achou um absurdo e, logo depois, a declarante também foi chamada na sala de Ana, que lhe entregou um envelope com panfletos do marido. Disse que Ana lhe informou que as agentes de saúde, naquele período, iriam trabalhar para ela na rua. Explicou que Ana disse que as agentes de saúde estava sob as ordens dela, para funções particulares da campanha. Disse que as agentes eram Suelen, Guacira e Cátia e isso ocorreu mais ou menos um mês antes das eleições. Afirmou que nesse período Ana Paula estava trabalhando e que apenas cerca de uma semana antes da eleição é que ela se afastou, com folgas que tinha por tirar. Disse no material entregue havia santinho com o nome do marido dela, o cargo e o número de votação, além de fichas com nomes, números de zonas eleitorais e de títulos de eleitor. Referiu que o material também foi entregue a Cátia e a Guacira. Disse que não sabe o que Cátia e Guacira fizeram com o material, mas que foi constatado que estava sendo feita campanha, porque duas pacientes contaram que receberam ligações em casa, em que afirmaram que era do posto da Santa Isabel e pedindo voto para o candidato Juarez. Disse que uma das pacientes era Mônica. Afirmou que fez a denúncia no Ministério Público Eleitoral pela internet, ocasião em que solicitou sigilo. […] Disse que quando recebeu o material, não verbalizou que não iria fazer porque Ana Paula era possessiva, era a “dona da unidade”, ameaçava pelos corredores que iria tirar os profissionais de lá e, inclusive, quando a declarante chegou lá foram retirados dois agentes de saúde. Disse que estava apavorada como que acontecia lá. Afirmou que Ana Paula ameaçava o estágio probatório da declarante e de outros colegas, que ela falava pelos corredores: “estão tudo no probatório”.

São afirmações alinhadas, coerentes e que retratam a prática de ilícitos graves sob o prisma da legislação eleitoral.

E, sobretudo, não são provas isoladas.

Houve a apreensão de documentos que corroboram os testemunhos e comprovam a ocorrência dos fatos. Na residência de Ana Paula, foi apreendido caderno com capa preta com anotações acerca da contagem dos votos auferidos pelos agentes de saúde em suas visitas (ID 45126390), inclusive com a anotação “trabalho agentes” (p. 4 do ID 45126390).

Ainda, foram apreendidas, na residência de Ana e na Unidade Básica de Saúde, planilhas fornecidas aos agentes de saúde para que coletassem informações de eleitores visitados, com campos para preenchimento de “nome, data de nascimento, zona eleitoral, endereço, e-mail e contato” (p. 7-12 do ID 45126390).

Ora, são aquelas exatamente as planilhas descritas pelas testemunhas Suélen e Andressa, de modo que a realização de atos de campanha eleitoral por parte dos funcionários da UBS,  sob ilegais mando e coação de Ana Paula, está comprovada pela prova testemunhal e documental juntada aos autos em contexto suficiente, ainda que – expressamente refiro – se entenda que outras planilhas  (ID 45126388) tenham sido criadas para mero controle de vacinados contra H1N1, conforme testemunho de Patrícia Kologeskia de Souza, versão confirmada pelo depoimento do técnico em enfermagem Édson Ricardo da Silva Cardoso.

Aliás, cuida-se, aqui, de comprovação clássica de prática de abuso de poder, documentos de controle das práticas abusivas – cadernos, agendas, planilhas, listas – ratificados por prova testemunhal bastante verossímil.

Além disso, não há como desvincular os atos praticados por Ana Paula do candidato JUAREZ. A tese de defesa afirma que “caso Ana Paula realmente tivesse agido da forma descrita pela acusação, não há qualquer indício de que Juarez tenha agido em união de esforços com a companheira” (ID 45126530). Entretanto, o casal coabitava à época dos fatos. Ana atuava ativamente na campanha do marido nas redes sociais e, acima de tudo, os materiais incriminatórios foram apreendidos na residência do casal, no porta-malas do automóvel de ambos, constituindo-se em elementos que fazem concluir, com sobradas razões, o conluio na prática das irregularidades no reduto eleitoral do então candidato, onde (nitidamente não por coincidência) Ana Paula ocupava cargo em comissão em UBS e, valendo-se de posição gerencial, perpetrou abuso de poder político com finalidade eleitoral em benefício e cumplicidade com JUAREZ, ferindo a isonomia do pleito.

Recorro ao parecer da d. Procuradoria Regional Eleitoral, (ID 45461092) e expressamente adoto-o como razões de decidir:

Como se depreende dos relatos apresentados, Ana Paula efetivamente atuou para explorar eleitoralmente os serviços de saúde prestados na UBS Santa Isabel em Viamão. Os testemunhos evidenciam que, na posição de coordenadora da UBS Santa Isabel, Ana Paula interferiu no modo de funcionamento da unidade e de atendimento à população, instando os funcionários públicos a realizar propaganda político eleitoral em prol de seu companheiro, JUAREZ DE SOUZA.

[…]

De todo modo, adiro expressamente à argumentação da d. Procuradoria Regional Eleitoral (ID 45461092) no sentido de que, "[...] ainda que não houvesse provas da participação de JUAREZ DE SOUZA, o art. 22, XIV, da LC nº 64/90 impõe a 'cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade'”.

Ora, ainda que JUAREZ figurasse apenas na condição de beneficiário do abuso de poder político, a legislação impõe a cassação de seu diploma eleitoral. Diante do destaque de JUAREZ perante o eleitorado do Bairro Santa Isabel, a atuação de agentes comunitários de saúde – reforçando o nome do candidato e associando-o aos serviços de saúde – possuiu inequívoco apelo eleitoral que rompeu com a normalidade e a legitimidade do pleito, em inegável quebra da isonomia entre os candidatos ao cargo de vereador.

Por tais fundamentos, e na esteira do posicionamento externado pela Procuradoria Regional Eleitoral, uma vez constatada a prática das condutas irregulares, deve ser provido o recurso para o fim de cassar o diploma de JUAREZ GUTIERRES DE SOUZA, incidindo, no caso dos autos, a inelegibilidade por 8 (oito) anos, nos termos do art. 1º, inc. I, al. “h”, da LC n. 64/90:

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

[…]

h) os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

Em relação ao cômputo dos votos, entendo configurada a hipótese prevista no caput do art. 237 do Código Eleitoral (desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade de voto), devendo os votos dados ao candidato ser declarados nulos, nos termos do art. 222 do referido diploma legal, com o respectivo recálculo dos quocientes eleitoral e partidário pela Justiça Eleitoral:

Art. 222. É também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.

[…]

Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos.

Destaco como inaplicável, no caso, o disposto no art. 175, § 4º, do Código Eleitoral, pois a procedência da presente demanda decorre do reconhecimento da prática de atos abusivos com impacto no pleito, com a consequência direta de anulação dos votos obtidos ilicitamente, conforme previsão legal explícita. Nesse sentido, recente julgado deste Tribunal, processo n. 0601017-44.2020.6.21.0158. 

Diante do exposto, VOTO no sentido de reformar a sentença e dar provimento ao recurso, determinar a perda do diploma de JUAREZ GUTIERRES DE SOUZA, declarar sua inelegibilidade pelo prazo de 8 anos e a nulidade dos votos a ele conferidos, bem como determinar o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário para a ocupação da vaga, por força do disposto no art. 198, inc. II, al. “b”, da Resolução TSE n. 23.611/19, dispositivo que foi objeto inclusive de confirmação pelo TSE no RO 603900 65.2018.6.05.0000, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJE de 26.11.2020.

Comunique-se, após a publicação do acórdão, esta decisão à respectiva Zona Eleitoral, para cumprimento imediato do aqui decidido.