REl - 0600636-38.2020.6.21.0028 - Voto Relator(a) - Sessão: 29/06/2023 às 14:00

VOTO

Inicialmente, afasto a alegação de presunção de veracidade dos fatos narrados na inicial, invocada em virtude da ausência de apresentação de defesa e de contrarrazões no feito, pois o instituto da revelia não tem relevo no processo eleitoral, dada a indisponibilidade dos interesses de que nele se cuidam, na forma do inc. II do art. 345 do CPC.

Assim, considerando que na hipótese em tela não há que se falar em presunção de veracidade dos fatos, a revelia dos recorridos não produz os efeitos pretendidos, merecendo ser analisado o caderno probatório para o julgamento do mérito da ação.

Quanto à questão de fundo, o TSE firmou jurisprudência de que não cabe apurar conduta vedada em ação de impugnação de mandato eletivo (AIME), devendo os fatos ser debatidos “sob ótica de abuso de poder e corrupção eleitoral, expressamente previstos como causa de pedir no art. 14, § 10, da CF/88”:

RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2012. PREFEITO. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO (AIME). ART. 14, § 10, DA CF/88. ABUSO DE PODER POLÍTICO ENTRELAÇADO COM ECONÔMICO. CORRUPÇÃO. CONFIGURAÇÃO. PROVIMENTO.

Das questões preliminares.

1. Embora não caiba, em princípio, apurar conduta vedada (no caso, a do art. 73, § 10, da Lei 9.504/97) em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), é incontroverso que os fatos também foram debatidos sob ótica de abuso de poder e corrupção eleitoral, expressamente previstos como causa de pedir no art. 14, § 10, da CF/88.

(...)

2. O vocábulo corrupção (art. 14, § 10, da CF/88) constitui gênero de abuso de poder político e deve ser entendido em seu significado coloquial, albergando condutas que atentem contra a normalidade e o equilíbrio do pleito.

Precedentes.

(...)

1. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido para cassar os diplomas dos recorridos.

(Recurso Especial Eleitoral nº 73646, Acórdão, Relator(a) Min. Herman Benjamin, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Data 13/06/2016)

 

Na espécie, o art. 14, § 10, da Constituição Federal estabelece que “o mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com as provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude”, de modo que o recorrente alega o cometimento das infrações pelos seguintes fatos:

a) A evolução desproporcional com períodos anteriores das despesas com combustíveis, especificamente da Secretaria Municipal de Assistência Social e Centro de Referência em Assistência Social – CRAS

O caderno probatório trazido aos autos demonstra que no ano de 2020 houve um aumento na utilização de veículos e combustível por parte da Secretaria Municipal de Assistência Social e Centro de Referência em Assistência Social (CRAS).

Os documentos apresentados (IDs 44952509 e 44952510 - empenhos combustível 2020) apontam que no ano de 2020 houve um aumento gradativo no consumo de combustíveis de 80,90% entre o primeiro semestre de 2020 e o mês de novembro do mesmo ano.

Ocorre que não foi devidamente comprovada a prática de abuso de poder econômico e corrupção eleitoral quanto a esse fato, pois, conforme bem refere a sentença, os dados demonstram que entre o ano de 2019 e 2020 houve um acréscimo de 59,18% no consumo de combustível, não tendo sido demonstrado suficientemente o vínculo eleitoral com a campanha dos recorridos.

Ademais, o magistrado corretamente referiu que “entre os meses do ano de 2020 houve uma discrepância na quantidade de litros de combustíveis consumidos, uma ora ocorrendo diminuição e outra ora ocorrendo aumento”, circunstância que não reflete “um abuso no consumo de combustíveis, por exemplo, nos meses que antecederam às eleições e no próprio mês de novembro de 2020, quando ocorreu o pleito municipal”.

De fato, no mês de agosto de 2020 houve consumo de 371,7 litros de combustível, enquanto que em setembro o consumo foi reduzido em 0,77%, o que revela uma estabilidade no gasto gasolina e óleo diesel, sendo que no mês de outubro se verifica um acréscimo de despesa de 28,78%, resultando no consumo de 474,98 litros. Em novembro de 2020, por sua vez, mês da eleição, houve uma diminuição de 37,94%, com um consumo de 294,75 litros de combustíveis, observando-se ter sido o mês com o menor consumo desde junho/2020.

Desse modo, correta a sentença ao concluir, nesse ponto, pela “inexistência de indícios de conduta fraudulenta ou abusiva no quesito consumo de combustíveis”, especialmente diante da falta de efetiva demonstração desse fato com o pleito.

 

b) Quebra do valor inicial de R$ 300.000,00 do orçamento anual para gastos com Desenvolvimento da Politica Habitacional, que teve acréscimo de R$ 329.000,00 suplementados, formalizado mediante decretos com aditivos de valores quando da sua execução

A suplementação ocorrida fez com que um orçamento inicial de R$ 300.000,00 se transformasse em um orçamento de R$ 629.000,00. Formalmente, a referida suplementação efetuou-se por meio de decretos municipais de abertura de crédito suplementar (ID 44952508), cuja permissão de elaboração está inscrita na Lei Municipal n. 1.084/19, dessa forma, obedecendo aos trâmites legais.

Quanto à comprovação da realização de gastos excedentes, não se desconsidera aqui o aumento expressivo da previsão de gastos de recursos habitacionais, cujo volume mais do que dobrou em relação ao inicialmente previsto para o ano de 2020.

Porém, como constatado em análise de parecer juntado aos autos pelo autor (ID 44952515), no ano de 2019 já havia se iniciado um movimento de elevação dos gastos habitacionais, que em 2018 foi de R$ 42.834,13 e passou em 2019 para R$ 196.208,02, havendo uma elevação percentualmente maior (358,06%) do que a ocorrida do ano de 2019 para o ano de 2020 (R$ 165,81%).

Por fim, a ilegalidade da conduta perante a seara eleitoral não está comprovada, pois, conforme bem pontuado pelo magistrado a quo, “todos os Decretos Municipais citados no ID 69459304 foram editados com base em autorização contida na Lei n. 1.084/2019, de forma que, ao menos em tese há amparo legal nas condutas imputadas aos réus, afastando eventual finalidade eleitoreira dos atos. Portanto, e meu sentir está ausente a comprovação, por meio de provas, do uso promocional do programa em proveito dos demandados”.

 

c) Contratos com empresas fornecedoras de materiais de construção, vencedoras no Pregão Presencial 12/20, que foram assinados na data de 31.07.2020, e todos tiveram aditamento durante o período eleitoral

O demandante menciona um aditamento a contratos realizados com empresas fornecedoras de material de construção ocorrido durante o período de campanha, e que isso seria indício de eventual distribuição irregular de benesses.

Ocorre que os documentos juntados aos autos (ID 44952516) não provam a ocorrência de nenhuma irregularidade. O primeiro documento de “licitação detalhada” relativo ao Pregão Presencial n. 12/20 demonstra o resultado da licitação, com diversas empresas vencedoras e os respectivos materiais e valores contratados. O segundo documento é um “relatório de consulta a contratos firmados pela Prefeitura de Caseiros” obtido junto ao Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Não se consegue vislumbrar no exame dos referidos documentos nenhum indício de irregularidade formal ou material.

Além disso, no corpo da petição inicial existe uma tabela (item 3) que detalha a ocorrência de diversos aditivos contratuais, e da mesma forma não se vislumbra, a priori, nenhum tipo de mácula.

Por absoluta falta de comprovabilidade dos fatos, as alegações acima não merecem prosperar. Em precisa análise dos fatos, o magistrado assim se manifestou na sentença:

Novamente, entendo que há falta de provas produzidas pela parte autora sobre a ocorrência da ilegalidade. Tendo ocorrido a licitação para que tais empresas fornecessem materiais de construção, não revela, por sí só, uma ilegalidade ou uma fraude. Há que se ter um aparato probatório para demonstrar no que consistiu a ilegalidade, apontando ainda a norma legal violada pelo administrador público, não cabendo ao julgador extrair do mero enunciado apresentado pela parte autora tenha ocorrido as situações típicas que fundamentam a AIME.

 

d) Não bastasse o aditamento com empresas de materiais de construção, em contexto direto, denunciou-se a entrega de material para beneficiário que não consta no rol do Programa Habitacional do município

Afirma o demandante a existência de vídeos e fotos juntados aos autos em que aparece um carro da Assistência Social do município visitando a residência do Sr. Joacir Cazanatto e, após, surgindo um caminhão vermelho descarregando material de construção na mesma residência. O caminhão pertence à empresa Eloisa Brusamarello, vencedora do Pregão Presencial n. 12/20 de fornecimento de materiais de construção. Tais condutas teriam como objetivo a obtenção de apoio político em troca da distribuição de material. Além disso, a parte alega que o beneficiário da doação não está regularmente inscrito no Programa Habitacional do município.

Analisando os vídeos (ID 44952518 e 44952519) e a foto (ID 44952511), realmente constatou-se que houve entrega de material de construção ao cidadão. Porém, as provas servem apenas como indícios da ocorrência de conduta ilegal, não havendo um juízo de certeza de que ação assistencial foi realizada com finalidade eleitoral.

A residência na qual foi entregue o material é de baixa renda, sendo legítimo o recebimento de materiais pela população menos favorecida, ainda mais se tratando de contexto pandêmico. Ademais, a entrega foi realizada por veículo pertencente à empresa privada, não se podendo descartar que houve uma relação comercial privada de compra de materiais de construção entre as partes.

Quanto à alegação de que o beneficiário da doação não estaria regularmente inscrito no Programa Habitacional do município, a análise fica prejudicada, pois não foi produzida prova nesse sentido pela parte autora. Ademais, infrações administrativas estão fora do escopo de análise dessa Justiça Especializada.

 

e) Durante o período eleitoral diversas obras habitacionais foram realizadas ou finalizadas, inclusive com entrega de mais de uma unidade para o mesmo núcleo familiar durante a campanha eleitoral

A parte demandante arrolou, na petição inicial,  seis eleitores que teriam sido beneficiados com obras e reformas habitacionais no período de campanha. Em suas alegações, pontuou que seria difícil apresentar documentos que comprovassem o recebimento das vantagens pelos beneficiados, condicionando a obtenção das informações a futura oitiva dos referidos eleitores. Porém, a obrigação legal de promover o comparecimento em juízo para oitiva dos eleitores beneficiados cabe à parte, conforme o rito legal da AIME (art. 22, inc. V, da LC n. 64/90). No curso da instrução processual, entretanto, o autor não providenciou o comparecimento dos eleitores beneficiados, ficando prejudicada a análise das alegações, não sendo dever da Justiça Eleitoral intimá-los de ofício ou a requerimento do autor.

Em relação à audiência de instrução, o depoimento da testemunha José Mateus Telles noticiou fatos graves (ID 44952596): que foi procurado em sua casa por Mário Comparin; que Mário lhe prometeu R$ 10.000,00 pelo seu voto e de sua esposa; que recusou a oferta de Mário; que após uma ou duas semanas do ocorrido Mário mandou a Margarete e a Rosiclei que trabalham na Assistência Social para novamente lhe oferecer dinheiro; que recusou o dinheiro; que estava construindo sua casa e que então lhe ofereceram material de construção.

Da mesma forma, o depoimento da testemunha Raquel da Silva (ID 44952598): que foi procurada em sua casa pelo Leo Tessaro e que ele lhe ofereceu uma casa nova e um emprego em troca de seu voto; que foi ameaçada para votar em Leo Tessaro pelo Adelar Lunéli.

Todavia, não existem outras evidências documentais ou testemunhais nos autos que possam comprovar o alegado no depoimento das testemunhas José e Raquel, não sendo essa prova unilateral declaratória de ocorrência de eventos, por si só, suficiente a ensejar uma condenação de cassação dos acusados.

No que se refere ao depoimento das testemunhas Neri Flores (ID 44952597) e Carlos Justino dos Passos (ID 44952595), declararam de forma vaga e genérica que residências foram construídas no município em época de campanha em troca de votos. O sr. Carlos sequer prestou compromisso porque se encontra filiado ao PP, partido promotor dessa ação. Os depoimentos, conforme asseverado em sentença pelo magistrado, “não apontaram de forma clara e objetiva onde e como ocorreram as ilegalidades, tampouco nomes de agraciados foram indicados, de que forma que não se pode falar, nesse ponto, tenha ocorrido a prática de abuso de poder ou corrupção, ou fraude”.

 

f) Distribuição de cestas básicas, mas sob a descrição de “material, bem ou serviço para distribuição gratuita”, qual teve no ano de 2018 o valor total pago de R$ 3.507,10, no ano de 2019 o valor foi de R$ 4.036,70 e no ano de 2020, somente até o mês de novembro, já somava R$ 16.649,45

O autor juntou como meio de prova relatórios de “Despesas por Elementos da Prefeitura Municipal de Caseiros”, da atividade de “Proteção e Assistência às famílias e à comunidade em geral”, em que consta a descrição da despesa “Material, bem ou serviço para distribuição gratuita”, a qual se refere à distribuição de cestas básicas. Efetivamente, percebe-se uma elevação crescente dos valores gastos (liquidados) a partir do ano de 2018.

O valor gasto em 2020 foi de R$ 16.449,45. Com certeza, em termos percentuais, houve um grande crescimento em relação aos anos de 2018 (R$ 3.507,10) e 2019 (R$ 4.036,70). Porém, considerando os valores de forma nominal, o gasto efetuado em 2020 não foi expressivo, e pode-se dizer que foi necessário, visto estarmos, na época, em um contexto preocupante de pandemia da Covid 19, em que muitas pessoas ficaram desempregadas e impedidas de exercer a sua atividade laboral, tendo que se socorrer de auxílios públicos para satisfazer necessidades básicas de sobrevivência.

Ademais, o programa de distribuição de cestas básicas foi criado por lei e já estava em execução orçamentária no ano de 2019, o que autoriza a distribuição das cestas básicas pela prefeitura no ano eleitoral sem ofender a proibição do § 10 do art. 73 da Lei 9.504/97. Por fim, da mesma maneira, não há impedimento legal para incremento em gastos de valores nesse programa, ausente infração às normas eleitorais.

 

g) Evolução das despesas referentes a material, bem ou serviço para distribuição gratuita em período eleitoral

A parte autora colaciona parecer de técnico contábil (ID 44952515) que analisa a evolução das despesas do Município de Caseiros referentes à rubrica de “material, bem ou serviço para distribuição gratuita, no período de 2018 a novembro de 2020”. Os dados foram obtidos em consulta ao Portal de Transparência do município e ao sítio do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.

A referida rubrica contempla diversas despesas orçamentárias de bens, materiais ou serviços que são gratuitamente entregues à população, tais como: livros didáticos, medicamentos, gêneros alimentícios etc.

Com efeito, os valores gastos (executados) aumentaram de forma crescente durante o período de análise: 2018 (R$ 481.545,05), 2019 (R$ 778.100,09) e 2020 (R$ 1.068.863,82). No entanto, não se pode olvidar que a pandemia da Covid 19 praticamente “obrigou” a que houvesse um aumento na distribuição de bens e serviços (alimentos, remédios, auxílios financeiros, assistência à saúde etc.) pelo poder público, visto que todas as classes sociais foram atingidas de maneira severa por uma crise econômica, havendo muito desemprego e falência de empresas de maneira súbita.

Além disso, como bem explanado pelo parecer ministerial de 2º grau, o simples aumento de gasto de recursos não constitui abuso de poder político e econômico (ID 45432594):

Quanto ao aumento das despesas referentes a material, bens ou serviços distribuídos gratuitamente (fato 7), deve-se considerar que se trata, simplesmente, de reflexo do aumento de gastos nas políticas assistenciais do Município, cuja execução superou sensivelmente o valor fixado no orçamento municipal. Na mesma linha do que foi referido anteriormente, a simples constatação desse aumento não implica a caracterização do abuso de poder político. É necessária a exploração eleitoral desse incremento nos gastos pela campanha eleitoral dos demandados, de modo a afetar a normalidade e a legitimidade do pleito, prova que, contudo, não foi produzida.

Em outras, palavras, simples demonstrações matemáticas dos dispêndios financeiros não se prestam, por si sós, para caracterizar o abuso de poder político.

 

Entendo que, conforme explanado acima, referentemente aos itens “a” até “g”, não há como se inferir no caso a ocorrência de abuso do poder econômico, político ou fraude, face às situações fáticas e legais citadas pela parte autora no processo. Os fatos de apoio à tese da parte autora não são suficientemente graves para atrair um juízo de condenação de perda de mandato eletivo.

Da mesma forma, o fato de a parte representada ser ré em ações civis públicas por improbidade administrativa em tramitação na Comarca de Lago Vermelha não serve de prova à causa dos autos, pois as referidas ações estão em estágio inicial de procedimento (ID 99173615 e ID 100551156), não havendo nenhum juízo condenatório.

Acompanho a leitura do órgão ministerial sobre o caso trazido a julgamento, pois para que haja a declaração de procedência da AIME, deve haver demonstração de ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma do art. 14, § 10, da CF/88, que é a lisura e o equilíbrio do pleito, o que não ocorreu no caso em tela.

Com esses fundamentos, correta a sentença ao julgar improcedentes os pedidos condenatórios, devendo ser mantida a decisão.

ANTE O EXPOSTO, afasto a matéria preliminar e VOTO pelo desprovimento do recurso.