REl - 0601014-89.2020.6.21.0158 - Voto Relator(a) - Sessão: 29/06/2023 às 14:00

VOTO

 

Senhora Presidente, Eminentes Colegas.

 

Admissibilidade Recursal

O recurso interposto é regular, adequado e tempestivo, comportando conhecimento.

 

Mérito

Os fatos versam sobre a suposta prática, pelos recorridos, de captação ilícita de sufrágio, abuso do poder econômico e político, durante a campanha eleitoral no Município de Porto Alegre, em 2020.

O abuso de poder encontra-se normatizado no art. 22, caput e incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(...)

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

(...)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

 

Na lição de José Jairo Gomes (Direito Eleitoral Essencial, São Paulo: Editora Método, 2018, pp. 228-229):

Haverá abuso sempre que, em um contexto amplo, o poder – não importa sua origem ou natureza – for manejado com vistas à concretização de ações irrazoáveis, anormais, inusitadas ou mesmo injustificáveis diante das circunstâncias que se apresentarem e, sobretudo, ante os princípios e valores agasalhados no ordenamento jurídico. Por conta do abuso, ultrapassa-se o padrão normal de comportamento, realizando-se condutas que não guardam relação lógica com o que normalmente ocorreria ou se esperaria que ocorresse. A análise da razoabilidade da conduta e a ponderação de seus motivos e finalidades oferecem importantes vetores para a apreciação e o julgamento do evento; razoável, com efeito, é o que está em consonância com a razão.

(...)

No Direito Eleitoral, o abuso de poder consiste no mau uso de direito, situação ou posição jurídicas com vistas a exercer indevida e ilegítima influência em dada eleição. Para caracterizá-lo, fundamental é a presença de uma conduta em desconformidade com o Direito (que não se limita à lei), podendo ou não haver desnaturamento dos institutos jurídicos envolvidos. No mais das vezes, há a realização de ações ilícitas ou anormais, denotando mau uso de uma situação ou posição jurídicas ou mau uso de bens e recursos detidos pelo agente ou beneficiário ou a eles disponibilizados, isso sempre com o objetivo de influir indevidamente em determinado pleito eleitoral.

 

As práticas abusivas, nas suas diferentes modalidades, não demandam prova da sua interferência no resultado da votação, mas, tão somente, da gravidade das condutas para afetar o equilíbrio entre os candidatos e, com isso, causar mácula à normalidade e à legitimidade da disputa eleitoral (TSE, AIJE n. 060177905, Acórdão, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJE de 11.3.2021), valores tutelados pelo art. 14, § 9º, da Constituição Federal:

Art. 14. (...)

(...)

§9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

(Grifei.)

 

O abuso de poder político ocorre nas situações em que o detentor do poder utiliza sua posição para agir de modo a influenciar o eleitor, em detrimento da liberdade de voto. Caracteriza-se dessa forma, como ato de autoridade exercido em detrimento do voto.

Quanto ao tema, trago os ensinamentos de Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral – 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. Páginas 558-559):

(…) Abuso de poder de autoridade é todo ato emanado de pessoa que exerce cargo, emprego ou função que excede aos limites da legalidade ou de competência. O ato de abuso de poder de autoridade pressupõe o exercício de parcela de poder, não podendo se cogitar da incidência desta espécie de abuso quando o ato é praticado por pessoa desvinculada da administração pública (lato sensu). O exemplo mais evidenciado de abuso de poder de autoridade se encontra nas condutas vedadas previstas nos artigos 73 a 77 da LE. Enquanto o abuso de poder de autoridade pressupõe a vinculação do agente do ilícito com a administração pública mediante investidura em cargo, emprego ou função pública, o abuso de poder político se caracteriza pela vinculação do agente do ilícito mediante mandato eletivo. (Grifei.)

 

No que respeita especificamente ao abuso de poder econômico, é necessário que a conduta abusiva tenha em vista processo eleitoral futuro ou em curso, concretizando ações ilícitas ou anormais, das quais se denote o uso de recursos patrimoniais detidos, controlados ou disponibilizados ao agente, que extrapolem ou exorbitem, no contexto em que se verificam, a razoabilidade e a normalidade no exercício de direitos e o emprego de recursos, com o propósito de beneficiar determinada candidatura, provocando a quebra da igualdade de forças, que deve preponderar no âmbito da disputa eleitoral.

Segundo Zilio (Direito Eleitoral – 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. Páginas 557-558):

Caracteriza-se o abuso de poder econômico, na esfera eleitoral, quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Pode-se configurar o abuso de poder econômico, exemplificativamente, no caso de descumprimento das normas que disciplinam as regras de arrecadação e prestação de contas na campanha eleitoral (v.g., arts. 18 a 25 da LE).

 

São institutos abertos, não sendo definidos por condutas taxativas, mas pela sua finalidade de impedir práticas e comportamentos que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos, capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

A quebra da normalidade do pleito está vinculada à gravidade da conduta capaz de alterar a simples normalidade das campanhas, sem a necessidade da demonstração de que sem a prática abusiva o resultado das urnas seria diferente.

Por fim, para a captação ilícita de sufrágio, é necessária a participação do candidato beneficiado, ou ao menos seu conhecimento, em qualquer das condutas previstas no art. 41-A da Lei Eleitoral, ocorridas entre a data do registro de candidatura e a eleição, bem como o dolo específico, consistente na intenção de obter o voto do eleitor.

Nessa linha, colaciono julgado do TSE:

AGRAVO INTERNO. RECURSO ORDINÁRIO. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. REPRESENTAÇÃO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ART. 41–A DA LEI 9.504/97. PAGAMENTO EM TROCA DE VOTOS. TRANSPORTE DE ELEITORES. BOCA DE URNA. CASSAÇÃO DO DIPLOMA. MULTA.

(...)

MÉRITO.

CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ART. 41–A DA LEI 9.504/97. CONFIGURAÇÃO. OFERTA DE TRABALHO REMUNERADO E TRANSPORTE GRATUITO DE ELEITORES NO DIA DA ELEIÇÃO EM TROCA DE VOTO. ANUÊNCIA DO CANDIDATO. COMPROVAÇÃO.

6. No mérito, nos termos do art. 41–A da Lei 9.504/97, “constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter–lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive”.

7. Conforme jurisprudência desta Corte Superior, para se configurar a captação ilícita de sufrágio, é necessária a presença dos seguintes elementos: (a) prática de qualquer das condutas previstas no art. 41–A; (b) o dolo específico de obter o voto do eleitor; (c) ocorrência dos fatos entre a data do registro de candidatura e a eleição; e (d) a participação, direta ou indireta, do candidato beneficiado, concordância ou conhecimento dos fatos que caracterizam o ilícito.

(…)

(RO n. 060186731, Acórdão, Relator Min. Luis Felipe Salomão, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 230, Data 14.12.2021). (Grifei.)

 

Ainda no que atina à captação ilícita de sufrágio, o TSE consolidou posicionamento no sentido de que a configuração da prática demanda atenção a alguns requisitos: “(a) capitulação expressa da conduta no tipo legal descrito no art. 41–A da Lei nº 9.504/1997; (b) realização da conduta no período eleitoral; (c) prática da conduta com o especial fim de agir, consubstanciado na vontade de obter o voto do eleitor ou de grupo determinado ou determinável de eleitores; (d) existência de conjunto probatório robusto acerca da demonstração do ilícito, considerada a severa penalidade de cassação do registro ou diploma” (RO n. 0603024-56.2018.6.07.0000/DF, Acórdão, Relator Min. Og Fernandes, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 215, Data 26.10.2020).

Com essa contextualização normativa e jurisprudencial, passo ao exame da moldura fático-probatória.

O recorrente alega que houve o desvirtuamento do programa social de incentivo à adesão ao pré-natal, instituído pela Prefeitura de Porto Alegre, devido à distribuição de kits bebê no ano eleitoral de 2020. Afirma que o kit, composto de enxoval para recém-nascidos, é brinde financiado pela iniciativa privada, distribuído por servidores públicos e pela primeira-dama, cuja figura se confunde com a pessoa do candidato à reeleição ao cargo de prefeito, em evidente promoção indevida do candidato. Afirma que, em especial a servidora Lia Fernandes Bernau, durante a entrega de kit, fez campanha eleitoral para o candidato a vereador Moisés da Silva Barboza, utilizando-se, inclusive, de fotógrafa oficial da prefeitura para documentar os fatos e promover indevidamente a imagem do candidato em rede social. Entende que os fatos denotam práticas de promoção pessoal e distribuição de brindes com utilização de agentes públicos, condutas vedadas nos termos do art. 37, § 1º, da Constituição, art. 73, inc. IV, §§ 1º, 10, 11, da Lei das Eleições, caracterizando abuso de poder político e econômico e captação ilícita de sufrágio, conforme os arts. 41-A, da Lei das Eleições e 22, inc. XIV, da Lei Complementar n. 64/90.

Pois bem. Não há irregularidade na instituição de programa social que prevê a distribuição dos kits bebê.

Conforme informações do Portfólio de Projetos da Secretaria Municipal da Saúde, os kits bebê ou kits pré-natal são parte do Programa Estruturante da Primeira Infância, desenvolvido pela Prefeitura de Porto Alegre, precisamente pela equipe da primeira-dama e do Programa POA Solidária, entre 2019 e 2020, com o propósito de apoiar o desenvolvimento das crianças, desde a gestação até os seis anos de vida, por meio do engajamento de cidadãos, empresas e poder público, com viés solidário. Com a intenção de garantir à gestante o acesso ao pré-natal, especialmente no período da Covid-19, a Prefeitura de Porto Alegre elaborou estratégia para distribuição de kits pré-natal, com suprimentos para mãe e bebê, a serem entregues ao final da gestação para gestantes em vulnerabilidade que, conforme os critérios estabelecidos, tivessem cumprido o pré-natal adequado (ID 44968364).

A entrega dos kits fazia parte do conjunto de ações previstas, desde março de 2020, pelo poder público, para enfrentamento da Covid-19 (ID 44968363). Sua efetiva distribuição ocorreu a partir de setembro de 2020, isto é, durante o período da pandemia, em que a situação de calamidade pública foi reconhecida em âmbito federal, pelo Decreto Legislativo n. 06, de 20 de março de 2020, e em âmbito estadual, pelo Decreto n. 55.128, de 19 de março de 2020. Na esfera municipal, a situação de calamidade pública foi estampada no Decreto n. 20.534, de 31 de março de 2020. Conforme as informações prestadas pelo Município de Porto Alegre, por meio da Assessoria para Assuntos Especiais e Institucionais do Gabinete do Procurador-Geral, resta clara a motivação do programa: “(…) para o enfrentamento da Covid-19, ante o aumento das vulnerabilidades sociais, o que sensibilizou as empresas privadas a destinarem kits pré-natais, pelo estrito período da calamidade pública, a gestantes em situação de risco social” (ID 44968361, fl. 07).

Reconhecida a situação de calamidade pública, não há impedimento para a distribuição gratuita de bens pela Administração Pública, tratando-se de exceção amparada pelo art. 73, § 10, da Lei das Eleições, que dispõe que, “no ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência (…)”.

Sobre a aplicação do art. 73, § 10, da Constituição Federal, ainda que em caráter não vinculante, em resposta à Consulta n. 0600098-44, feita pelo Prefeito de Porto Alegre, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul – TRE/RS fixou orientação de que a calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela Administração Pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais no trato da coisa pública, critérios objetivos para contemplar beneficiários, prazo, entre outros. Veja-se:

CONSULTA. PREFEITO. QUESTIONAMENTO ACERCA DE EDIÇÃO DE LEI, EM ANO ELEITORAL, PREVENDO BENEFÍCIOS GRATUITOS À POPULAÇÃO. ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA. PANDEMIA. CORONAVÍRUS. COVID-19. POSSIBILIDADE. EXCEÇÃO À REGRA. CONSULTA CONHECIDA. RESPONDIDA NEGATIVAMENTE.

1. Indagação formulada por prefeito, referente à possibilidade de edição de lei prevendo benefícios gratuitos à população, em especial isenção de tarifa de água e esgoto e concessão de auxílios assistenciais, diante do contexto atual de calamidade pública declarado via Decreto Municipal e reconhecido nacionalmente.

2. Ainda que não preenchido o requisito da formulação em tese, nos termos do art. 30, inc. VIII, do Código Eleitoral, uma vez que a eventual resposta do questionamento não atenderia à abstração inerente à atividade consultiva da Justiça Eleitoral, a situação posta nos autos deve ser tratada de forma excepcional, devido ao momento pelo qual está passando o Brasil e o mundo diante da pandemia do novo coronavírus (Covid-19).

3. A calamidade pública é exceção à regra que proíbe, em ano eleitoral, a distribuição de bens, valores ou serviços pela administração pública, mas não isenta o gestor da observância dos princípios constitucionais no trato da coisa pública e não dispensa a adoção de critérios objetivos para estabelecer beneficiários, prazo de duração e motivação estrita relacionada à causa da situação excepcional, bem como vedada a ocorrência de promoção pessoal de autoridades, servidores públicos, candidatos, partidos ou coligações, na publicidade ou distribuição do benefício.

4. Consulta conhecida e respondida. (Consulta n. 0600098-44, ACÓRDÃO de 11/05/2020, Relator(aqwe) CARLOS EDUARDO THOMPSON FLORES LENZ)

 

No caso, foram adotados critérios objetivos para selecionar as beneficiárias do programa, razão pela qual não se vislumbra ilegalidade. A testemunha Diane Moreira Nascimento, médica e ex-diretora-geral adjunta de Atenção Primária à Saúde, explicou como foram elaborados os critérios técnicos, de vulnerabilidade e adesão ao pré-natal, para definição de beneficiárias e especificações do programa (ID 44968437 e 44968438). Em síntese, para fazer jus ao recebimento dos kits, a gestante deveria satisfazer ao menos um dos seguintes requisitos (ID 44968361):

I. Gestante com idade inferior a 16 anos.

II. Gestante cadastrada no CADÚNICO / Programa Bolsa Família;

III. Gestante com histórico de violência intrafamiliar no último ano;

IV. Ausência de suporte para cuidado do filho se necessário ou mãe sem companheiro/a;

V. Gestante que não completou a 4ª série do ensino fundamental;

VI. Família com renda mensal per capita até R$ 178,00 ou chefe de família desempregado.

 

Acresço que nem mesmo a forma pela qual foi realizada a doação pelas empresas privadas implica ilegalidade, a macular a distribuição de kits. Em atenção à realidade de calamidade pública, a União publicou o Decreto n. 10.314/20, que, alterando o Decreto n. 9.764/19, facilitou a doação de bens de entes privados para a Administração Pública, mediante manifestação do interesse de doação. Conforme as informações prestadas pelo Município de Porto Alegre, as empresas privadas Zaffari, Melnik Even e Dimed manifestaram intenção de realizar doações para combate ao Covid-19, sendo o ato formalizado por termo de doação com encargos, de ID 44968326, de acordo com o processo administrativo SEI 20.0.000082158-7, sem utilização de recursos públicos (ID 44968361, fls. 7). O contrato de doação respaldou-se no art. 541 do Código Civil e no art. 9º, inc. IV, da Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, sendo que este último estabelece a competência do ente público para, no exercício de sua autonomia, aceitar doações e dispor sobre sua aplicação, exigindo a necessidade de manifestação do Poder Legislativo, apenas para doação de bem imóvel. Nesse contrato, ficou claro que a finalidade das doações era exclusivamente “entrega de kits pré-natais às gestantes em situação de vulnerabilidade, no período de calamidade pública em razão do enfrentamento da Covid-19” (ID 44968326), e que, sendo a doação com encargo, não se poderia dar aos bens outra destinação. Por fim, as entregas foram formalizadas pelas notas fiscais de ID 87676014. Em contrapartida, o município se comprometeu a montar os 1.955 kits.

Esclareça-se que partes no contrato de doação eram empresas privadas e o próprio ente público, não havendo participação pessoal dos recorridos, não sendo aplicável o art. 73, § 11, da Lei das Eleições, pelo qual, “nos anos eleitorais, os programas sociais de que trata o § 10 não poderão ser executados por entidade nominalmente vinculada a candidato ou por esse mantida”.

Também não há falar que a distribuição dos kits bebê se deu mediante abuso de poder político e econômico acarretando captação ilícita de votos.

Segundo as informações prestadas pela Secretária da Saúde de Porto Alegre (ID 44968360, fls. 2/3), a participação da primeira-dama, Tainá Vidal, na distribuição de kits ocorreu por ocasião da cerimônia de entrega das primeiras unidades na Unidade de Saúde Moab Caldas, no dia 30.9.2020, quando acompanhada pelo Secretário-Adjunto da Secretaria Municipal da Saúde, Natan Katz, e pela presidente da FASC, Vera Ponzio, oportunidade em que não houve alusão à campanha eleitoral ou a qualquer dos candidatos. Ora, é sabido que a primeira-dama possui gabinete instituído na Prefeitura de Porto Alegre para, entre outros, organizar e mobilizar ações sociais em conjunto com secretarias e órgãos da Administração Pública, tendo o papel de executar ações assistenciais e voltadas à caridade. A testemunha Natan Katz, ex-Secretário Municipal de Saúde Adjunto, confirma que a primeira-dama sempre esteve envolvida em projetos solidários; estava presente nas reuniões que organizaram o projeto específico da adesão ao pré-natal e participou, como de costume, da solenidade para lançamento do kit bebê na UBS Moab Caldas; que foi uma reunião restrita em relação ao número de pessoas presentes no dia do lançamento; que não houve nenhum pedido de voto e o evento foi eminentemente técnico (ID 44968449 e 44968450). As publicações feitas na rede social privada da então primeira-dama tratam objetivamente de seu trabalho, em especial da entrega dos primeiros kits, não havendo excesso a representar propaganda eleitoral ou promoção indevida de imagem de agente público (ID 44968300, 44968301, 44968302, 44968303 e 44968304). Portanto, a atuação da primeira-dama não caracterizou promoção pessoal de autoridade, conforme art. 37, § 1º, da Constituição, não havendo atuação com abuso de poder político ou econômico.

Mesma conclusão é alcançada em relação à alegação feita com base em printscreen de postagem em rede social privada, de Lia Fernandes Bernau de ID 44968292, fl. 10, em que aparece a então funcionária detentora de cargo em comissão em companhia de mulher segurando um kit bebê e um panfleto do candidato Moisés da Silva Barboza, em frente à residência.

Segundo as testemunhas Pablo de Lannoy Stürmer, médico e ex-Secretário Municipal da Saúde de Porto Alegre (ID 44968432), e Natan Katz (ID 44968447), Lia Fernandes Bernau não trabalhava na Secretaria da Saúde e não tinha ingerência sobre seleção de beneficiárias do programa e da distribuição de kits, conforme ficou apurado em sindicância instaurada à época. Já a testemunha Diane Moreira Nascimento acrescenta que Lia Fernandes Bernau não tinha ligação com o programa social de distribuição dos kits e que a investigação realizada por sindicância interna não constatou nenhum ilícito relacionado aos servidores da Secretaria Municipal da Saúde e irregularidades no programa assistencial; assegura que houve um kit entregue a familiar de gestante que cumpria os critérios objetivos para recebê-lo (ID 44968438, 44968439, 44968440, 44968441). Já a testemunha Jussara Silveira da Silva assevera que recebeu um kit bebê de um enfermeiro, dentro do Posto de Saúde Pitoresca, para sua neta, que estava grávida; que ia ao posto regularmente para fazer curativos na perna, inclusive naquela ocasião; que os recorridos e a primeira-dama não estavam presentes; que não recebeu material publicitário no posto de saúde; que sua vizinha Lia Fernandes Bernau estava no Posto de Saúde de passagem e lhe deu uma carona de volta para casa; que ao chegar em casa deu o kit para uma de suas filhas carregar; que não recebeu pedido de voto, nem de Lia Fernandes Bernau (ID 44968424 a 44968427).

A corroborar a versão apresentada pelas testemunhas, os depoimentos que instruíram o Processo de Sindicância n. 20.0.000093973-1 (ID 44968355) apontam que o kit da fotografia de ID 44968292, fl. 10, foi entregue por enfermeiro da UBS Pitoresca à Jussara Silveira da Silva, a qual se comprometeu a entregá-lo a sua neta, à época gestante, que preenchia os requisitos objetivos para participar do programa social. Ainda, consta que Lia Fernandes Bernau é vizinha da família e estava presente durante a entrega, porque deu carona à senhora Jussara. Por fim, Lia Fernandes Bernau foi exonerada em 23.10.2020, conforme Portaria n. 11934860 (ID 44968330), antes mesmo da conclusão da sindicância (ID 44968355).

Certo é que, embora o protocolo previsse a entrega dos kits bebê pelos profissionais da saúde que integravam o quadro de servidores dentro da Unidade Básica de Saúde à gestante, nas semanas finais do acompanhamento pré-natal (ID 44968359), houve um único caso em que a entrega ocorreu a familiar da gestante, oportunidade em que foi feito um registro em rede social privada de Lia Fernandes Bernau. Como ressalta a médica Diane Moreira Nascimento, tão logo ocorreu o caso de entrega a familiar da gestante, foi ratificada a orientação para reforçar o protocolo de entrega somente à gestante, mediante recibo, não tendo sido reportado nenhum outro caso que fosse de encontro a essa orientação, além de, mesmo nesse caso, a gestante satisfazer os requisitos para o benefício (ID 44968441).

Por se tratar de um fato isolado — um único caso, cujo desfecho foi prontamente solucionado pela administração pública, com o recrudescimento dos protocolos e exoneração da servidora responsável —, não se pode concluir que tenha ocorrido o desvirtuamento da política social em prol da promoção pessoal dos candidatos à reeleição, Nelson Marchezan Júnior, Gustavo Tanger Jardim e Moisés da Silva Barboza. Soma-se a isso o fato de que a publicação de ID 44968292, fl. 10, não alcançou notoriedade apta a desequilibrar a corrida eleitoral, haja vista a publicação ter ocorrido no âmbito da rede social privada da ex-servidora.

Como bem pontuou o Douto Procurador Regional Eleitoral (ID 45438448):

“(…) A imagem da servidora Lia Fernandes Bernau entregando um kit com um panfleto do investigado Moisés Barboza, ainda que demonstre finalidade eleitoreira vinculada ao programa social em comento, não basta para uma procedência do pedido de condenação dos demandados por captação ilícita de sufrágio e/ou abuso do poder político e econômico.

Com efeito, o ato praticado por Lia não pode resultar na condenação dos investigados por captação ilícita de sufrágio, eis que ausente prova de sua ciência e/ou anuência acerca da conduta da servidora, elemento essencial para o acolhimento da pretensão inicial quanto ao artigo 41-A da LE. Como bem referido pelo juízo, não restou comprovado que os investigados anuíram à suposta captação ilícita de sufrágio, ou que dela se beneficiaram, direta ou indiretamente. Não basta para um juízo condenatório a fotografia juntada pelo autor, na qual a então servidora municipal LIA, no gesto de entregar um kit bebê a uma beneficiária do programa social (tal pessoa seria ANA PAULA SILVEIRA, segundo informou o investigado MOISÉS, que a arrolou como testemunha), ostenta na mão esquerda um “santinho” de propaganda eleitoral de MOISÉS, então candidato a uma vaga na Câmara Municipal de Porto Alegre.

De se destacar que as consequências jurídicas da infração descrita no art. 41-A da lei n° 9.504197 são definitivamente graves, sendo que a prova do ilícito e da participação ou anuência do candidato deve ser precisa, contundente e incontestável, não sendo bastantes, para tanto, meras presunções, especialmente quando se trata da suposta participação mediata dos candidatos, como ocorrido na espécie.

Além dos mais, tal ato não detém capacidade de interferir na legitimidade e normalidade do pleito, de modo a se reconhecer a existência de abuso de poder político e econômico. Trata-se, em verdade, de ato isolado praticado por servidora que sequer fazia parte dos quadros da Secretária Municipal da Saúde, e que, diante de tal publicação, foi exonerada da função que exercia junto à Prefeitura. (…)”

 

Ressalta-se não haver provas de que a foto ilustrativa da postagem de ID 44968292, fl. 10, tenha sido capturada pela fotógrafa oficial da prefeitura, Ana Maria Krack. Em verdade, consta dos autos informação do Gabinete de Comunicação Social a revelar que a única oportunidade em que a referida fotógrafa registrou um kit bebê foi em 23 de setembro de 2020, o que foi devidamente publicado em matéria jornalística no site oficial da prefeitura (ID 44968294); havendo ainda relação das coberturas oficiais em que a servidora trabalhou, sendo que não consta que tenha acompanhado Lia Fernandes Bernau (ID 44968365).

Aliás, a cobertura das ações da Administração Pública nas plataformas oficiais da prefeitura teve caráter informativo, desprovida de finalidade eleitoreira, não sendo identificado pedido de voto, menção à pretensa candidatura ou exaltação das qualidades de candidatos. Assim, integra o arcabouço contido na esfera do direito à informação, protegido constitucionalmente.

Em síntese, não há nos autos elementos para se concluir que os recorridos praticaram condutas vedadas e fizeram mau uso de direito, situação ou posição jurídica, nem mediante a utilização de prepostos, com vistas a exercer indevida e ilegítima influência na eleição, não havendo abuso de poder político. Igualmente, não foi comprovada a utilização de mão de obra de servidores públicos ou emprego de recursos, especialmente públicos, a caracterizar abuso de poder econômico. Por fim, não foram demonstradas condutas ilícitas com fins eleitoreiros, tampouco a participação, anuência, ciência ou beneficiamento dos candidatos à reeleição a prefeito e vereador, ora recorridos, em relação aos fatos narrados na peça recursal, a justificar a aplicação do art. 41-A da Lei das Eleições.

Do exposto, na esteira do parecer ministerial, tenho que a conduta tida por irregular não ostenta a gravidade pretendida pelo recorrente, capaz de macular a paridade de armas entre os candidatos durante o prélio eleitoral, diante da inexistência de prova cabal e segura da aventada captação ilícita de sufrágio e abuso de poder econômico e político, devendo a sentença de improcedência ser mantida.

Conclusão

Desse modo, inexistentes provas robustas e cabais da ocorrência de abuso de poder econômico ou político, nem tampouco prática de captação ilícita de sufrágio, impõe-se a manutenção da sentença que julgou improcedente a AIJE ajuizada contra NELSON MARCHEZAN JUNIOR, GUSTAVO TANGER JARDIM e MOISES DA SILVA BARBOZA.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo desprovimento do recurso.

É como voto, senhora Presidente.