HCCrim - 0600065-49.2023.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 05/06/2023 às 14:00

 VOTO

O impetrante busca o trancamento do Inquérito Policial n. 0600026-44.2022.6.21.0111 em que é apurada a suposta prática do crime previsto no art. 323 do Código Eleitoral por NAIR BERENICE DA SILVA.

A aventada ilegalidade estaria configurada na existência de dois expedientes de apuração sobre os mesmos fatos, quais sejam, a colocação de imensos outdoors em prédios localizados próximo ao Túnel da Conceição e na Av. Benjamim Constant, nesta Capital, com eventual conteúdo ilícito, consoante ilustra a seguinte imagem constante nos autos:

Sobre os fatos, após a retirada das peças em exercício do poder de polícia pelo Juízo Eleitoral Zonal (ID 45453403, fls. 4-5), a Procuradoria Regional Eleitoral instaurou o PPE n. 1.04.100.000224/2022-11, “destinado a apurar eventual atos de abuso de poder econômico na realização da propaganda eleitoral” (ID 45453403, fls. 25-26).

Posteriormente, “o Procurador Regional Eleitoral Auxiliar com atuação na propaganda eleitoral entendeu que o fato objeto do procedimento se referia ao cargo de Presidente da República, de modo que a competência para a questão se transferiria ao Superior Tribunal Eleitoral”, razão pela qual houve o declínio de atribuição à Procuradoria-Geral Eleitoral (ID 45453404, fls. 6-9).

Recebidos os autos pelo Vice-Procurador-Geral Eleitoral, foi determinado o seu arquivamento, uma vez que os fatos já se encontravam judicializados por meio da RP 0600794-94.2022.6.00.0000, oferecida perante o TSE (ID 45453404, fls. 13-16) sob a perspectiva da prática de propaganda eleitoral irregular, coibida nos termos do art. 36 da Lei n. 9.504/97.

Ao lado disso, noticia-se a existência do Inquérito Policial n. 0600026-44.2022.6.21.0111, em tramitação sigilosa, sobre os mesmos fatos, perante a 111ª Zona Eleitoral de Porto Alegre, a fim de apurar possíveis ocorrências do crime previsto no art. 323 do Código Eleitoral, “além de outras que porventura forem constatadas no curso da investigação” (ID 45453409, fls. 4-5).

Requerido pela ora paciente o arquivamento do expediente policial em razão do ajuizamento da mencionada representação eleitoral no TSE (ID 45453409, fl. 47), o Juízo da 111ª Zona Eleitoral indeferiu o pedido com os seguintes fundamentos (ID 45453409, fl. 55):

[...].

A alegação defensiva de ser devido o arquivamento do IP não pode ser acolhida, pelo menos neste momento. Faz alegações desprovidas de comprovação. Até porque o arquivamento do expediente do TRE foi em relação à empresa responsável pelos locais onde fixados os outdoors, reconhecidos como abusivos e ilícitos.

[...].

É exatamente essa última a decisão impugnada na presente ação mandamental, proferida pelo Juízo Eleitoral da 111ª Zona, embora nos autos de Inquérito Policial.

Adianto que não vislumbro ilegalidade, abuso de poder ou teratologia a autorizar a concessão da ordem de habeas corpus.

Primeiramente, a representação eleitoral ajuizada ante a Corte Superior aborda os fatos sob o enfoque do ilícito cível-eleitoral de propaganda irregular atinente ao pleito presidencial. Por outro lado, o Inquérito Policial n. 0600026-44.2022.6.21.0111 apura possível enquadramento das condutas no tipo penal do art. 323 do Código Eleitoral, dentre outros, ou seja, sob a ótica penal-eleitoral.

Ocorre que o sistema jurídico nacional adota o princípio da independência entre as instâncias civil, penal e administrativa. Logo, não há ilegalidade na instauração de diferentes processos em instâncias distintas, uma vez que um mesmo fato pode constituir, a um só tempo, um ilícito civil e um ilícito penal, sendo que, em regra, as decisões proferidas em uma determinada instância não vinculam a outra e nem existe uma relação de prejudicialidade entre as diferentes searas. Nessa linha, o seguinte julgado:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO. AÇÃO PENAL. CORRUPÇÃO ELEITORAL. FATOS APURADOS EM AIJE JULGADA IMPROCEDENTE. APLICAÇÃO DO § 3º DO ART. 96-B DA LEI Nº 9.504/97. IMPOSSIBILIDADE. INDEPENDÊNCIA DE INSTÂNCIAS. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. REQUISITOS PRESENTES. PROVAS ROBUSTAS. DESNECESSIDADE. DESPROVIMENTO. 1. O trancamento de ação penal por meio da via estreita do habeas corpus somente é possível quando, de plano, se constate ilegalidade ou teratologia capazes de suprimir a justa causa para o prosseguimento do feito, o que ocorre nas hipóteses de atipicidade da conduta descrita na denúncia, ausência de indícios de autoria e materialidade delitiva, ou quando presente causa extintiva da punibilidade. Precedentes. 2. A disposição constante do § 3º do art. 96-B da Lei das Eleições constitui alteração legislativa que não afeta as ações penais eleitorais. 3. As esferas cível-eleitoral e criminal são incomunicáveis e independentes entre si. Ainda que os fatos apurados na ação penal sejam os mesmos sobre os quais se funda a ação de investigação judicial eleitoral citada pelo recorrente, a improcedência desta última não representa qualquer impedimento à apuração criminal. Precedentes. 4. O caput do art. 96-B trata de ações que, embora sustentadas sobre os mesmos fatos, são propostas por partes distintas. Tal diversidade subjetiva não pode ocorrer nos feitos penais afetos a esta Justiça Especializada, tendo em conta ser o Ministério Público Eleitoral o único legitimado para a propositura da correspondente persecução. 5. A alegação de que não foram apresentados provas ou fatos novos, além dos já trazidos na Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE), não constitui argumento apto a ensejar o trancamento da ação penal, uma vez que as provas produzidas perante a instância criminal poderão, em tese, conduzir à formação de juízo diverso. 6. Na decisão que recebe a denúncia, o juiz verifica, tão somente, se o relato da exordial evidencia indícios de materialidade e autoria delitiva, não sendo necessária, nessa fase, a presença de prova robusta e segura. 7. Recuso desprovido.

(TSE - RHC: 00001805720156190000 DUQUE DE CAXIAS - RJ, Relator: Min. Luciana Christina Guimarães Lóssio, Data de Julgamento: 07/06/2016, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 126, Data 01/07/2016, Página 10) Grifei.

Desse modo, a instauração e a tramitação simultâneas de processos na esfera criminal e na esfera cível-eleitoral, tendo como objeto os mesmos fatos, desde que observadas as regras de competência, não configuram ilegalidade.

A impetração traz alusão, ainda, à atipicidade do fato, afirmando que os painéis foram instalados e removidos antes do início do período de propaganda eleitoral e que o tipo penal do art. 323 do CE tem por elementar que a conduta ocorra “durante período de campanha eleitoral”, in verbis:

Art. 323. Divulgar, na propaganda eleitoral ou durante período de campanha eleitoral, fatos que sabe inverídicos em relação a partidos ou a candidatos e capazes de exercer influência perante o eleitorado:

Pena – detenção de dois meses a um ano ou pagamento de 120 a 150 dias-multa.

Sem fazer qualquer juízo de mérito no presente momento, o que seria incompatível com a via pleiteada, o fato é que, consultando-se a NIP n. 0600016-91.2022.6.21.0113, vê-se que a decisão que determinou a retirada do painel instalado na Avenida Osvaldo Aranha teve cumprimento em 17.08.2022, a partir das 7 horas (ID 108398022), pela empresa contratada para a instalação original. Logo, a remoção ocorreu após 16.08.2022, quando iniciado o período de campanha eleitoral, aspecto fático suficiente para afastar a alegação do impetrante.

A referida peça publicitária, portanto, foi veiculada durante o período eleitoral, permitindo a análise, em tese, de suposta infração ao artigo 323 do Código Eleitoral.

Ademais, ao contrário do que defende o impetrante, não há indeterminação do objeto investigado ou “devassa” sobre a vida da paciente a partir da mera referência na portaria de instauração do inquérito sobre a possível ocorrência do art. 323 do CE, “além de outras que porventura forem constatadas no curso da investigação” (ID 45453409, fl. 4-5).

Ora, o que se apura é fato delimitado praticado pela paciente, que, em tese, estaria amoldado ao art. 323 do CE, além de outros que se possam cogitar, conforme se desvelem aspectos relacionados, por exemplo, ao envolvimento de candidatos ou partidos políticos no financiamento das instalações (art. 350 do CE).

Dessa forma, ausente flagrante ilegalidade ou abuso de poder contra a liberdade de locomoção da paciente, e não evidenciadas, de plano, a atipicidade da conduta ou a insubsistência dos indícios que embasaram a instauração da investigação, inviável o trancamento do inquérito policial.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pela denegação da ordem de habeas corpus.

 

Comunique-se ao juízo eleitoral de primeiro grau.