RecCrimEleit - 0600057-89.2021.6.21.0114 - Divirjo do(a) relator(a) - Sessão: 05/06/2023 às 14:00

DECLARAÇÃO DE VOTO

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Vera Terezinha Falcão Souza foi denunciada pelo Ministério Público Eleitoral como incursa nas sanções previstas no art. 354-A do CE porque, na campanha eleitoral de 2018, quando disputou o cargo de deputada estadual, teria se apropriado, em proveito próprio ou alheio, do valor de R$ 15.000,00 do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), bem como de recursos não utilizados em campanha, sendo R$ 4,00 da conta “outros recursos” e de R$ 1,30 da conta destinada ao FEFC.

O tipo penal eleitoral em análise possui a seguinte redação:

Art. 354-A. Apropriar-se o candidato, o administrador financeiro da campanha, ou quem de fato exerça essa função, de bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral, em proveito próprio ou alheio: (Incluído pela Lei nº 13.488, de 2017)

Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 13.488, de 2017)

 

A dinâmica dos fatos está descrita na denúncia (ID 44997825) nos seguintes termos:

A acusada emitiu os cheques ao portador de números 900002, 90010, 900009, 900011, 900014 e 900007, que totalizaram o valor de R$ 15.000,00, sem comprovação dos beneficiários nem dos serviços prestados na campanha eleitoral.

 

Com efeito, compulsando-se os autos da PC n. 0602636-66.2018.6.21.0000, que analisou as contas eleitorais em tela, a então candidata realizou pagamentos mediante a emissão de cheques não nominais, no somatório de R$ 15.000,00, usando verbas do FEFC, razão pela qual o Tribunal concluiu não ser possível aferir se os recursos foram destinados aos fornecedores declarados.

Ressalto que a falha em tela envolveu tão somente a emissão não nominal dos cheques, porquanto o art. 40, inc. I, da Resolução TSE n. 23.553/17, regente das contas de campanha à época, não prescrevia a necessidade de cruzamento das cártulas, obrigatoriedade essa que somente surgiu para o pleito de 2020, a partir do art. 38, inc. I, da Resolução TSE n. 23.607/19, quando o termo “cruzado” foi inserido no texto normativo.

Ademais, conforme os dados disponíveis no sistema de divulgação de candidaturas e contas eleitorais, os cheques enumerados na denúncia foram sacados por caixa, sem identificação do beneficiário nos extratos bancários (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2018/2022802018/RS/210000605345/extratos).

Em suas razões (ID 44997893), a recorrente nega que tenha se apropriado dos valores em proveito próprio ou alheio. Alega que a comprovação dos gastos e a elaboração das contas de campanha ficaram a cargo do seu contador, de seu filho e de seu advogado. Defende, ainda, que os documentos acostados no processo de contas são suficientes para comprovar as despesas de campanha.

Com efeito, de acordo com o Relatório de Despesas Efetuadas juntado no processo de contas (ID 44997871), os cheques em questão foram assim emitidos:

  1. cheque n. 900002, no valor de R$ 10.000,00, emitido em 06.09.2018, em favor de DAURA FALCAO DE SOUZA, tendo por objeto a cessão/locação de veículos;

  2. cheque n. 900007, no valor de R$ 1.000,00, emitido em 11.09.2018, em favor de SINEZIO SALINOS DE SOUZA, por serviços contábeis de prestação de contas;

  3. cheques ns. 900009 e 900010, ambos emitidos em 10.09.2018, nos valores, respectivamente, de R$ 1.000,00 e R$ 1.500,00, em favor de MAURICIO GARCIA NOTARGIACOMO, por serviços de propaganda e divulgação de campanha;

  4. cheque n. 900011, emitido em 10.09.2018, no valor de R$ 500,00, para MARA ELIZETE GOMES FACAO, por serviços de propaganda e divulgação de campanha; e

  5. cheque n. 900014, com data de 11.09.2018, no valor de R$ 1.000,00, para GILMAR RANQUETAT FERNANDES, por serviços de divulgação de propaganda eleitoral em carro de som.

As informações declaradas no relatório contábil estão em conformidade com os respectivos contratos e recibos de pagamentos juntados nas contas da candidata (ID 44997865, 44997866, 44997867, 44997868 e 44997869) acompanhados de documentos de identificação de cada contratado, correspondente, também com as datas e valores das saídas de recursos registradas nos extratos bancários (ID 44997870).

Constam anexados aos autos, também, o comprovante de transferência bancária de R$ 4,00 para a conta “outros recursos” do MDB e o comprovante de recolhimento de R$ 1,30 ao Tesouro Nacional, via GRU, referente ao saldo de recursos do FEFC, ambos efetuados ainda em 07.11.2018 (ID 44997864).

Por outro lado, não há nos autos da ação penal quaisquer provas de que os instrumentos contratuais são inautênticos, de que os serviços não foram efetivamente prestados, de que houve um conluio entre a candidata e os diversos contratados, ou que a candidata redirecionou os valores, totais ou parcialmente, para suas próprias contas ou utilizou-os para quitação de despesas não eleitorais suas ou de terceiros, aspectos que poderiam ser esclarecidos por simples diligência nas contas bancárias e pela oitiva dos fornecedores.

O único indício da suposta prática criminosa consiste no fato de que os cheques não foram emitidos de forma nominal, o que, não conduz, automaticamente, à presunção de apropriação ou desvio dos valores pela candidata para efeitos de responsabilidade criminal.

As máculas no cumprimento dos deveres de transparência em processo de contas eleitorais, mesmo que formais ou praticados por terceiros, podem atrair consequências patrimoniais aos candidatos, em razão da sua responsabilidade objetiva e exclusiva na apresentação das contas de campanha.

Inclusive, a desídia da acusada na condução de seus gastos eleitorais e na instrução de suas contas recebeu a devida censura no processo próprio (PCE n. 0602636-66.2018.6.21.0000), em que desaprovada a contabilidade e determinado o recolhimento da quantia de R$ 16.501,30 ao Tesouro Nacional. Tal condenação encontra-se, hoje, em fase executiva, alcançado o valor atualizado de R$ 36.654,69.

Entretanto, em sede penal, vigora ao princípio da culpabilidade, sob o viés da responsabilidade penal subjetiva, de modo que é ônus do órgão acusador comprovar de que forma a acusada teria agido para, voluntária e conscientemente, apossar-se dos valores destinados à campanha.

Nessa esteira, ainda que a acusada não tenha vertido aos autos da ação penal as cópias dos cheques, extratos bancários de seus contratados ou outros documentos acerca dos fatos, tal conduta processual não deve ser tomada em seu desfavor, pois não se pode entregar ao acusado o ônus da prova de sua inocência, à luz dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.

Em um Estado Democrático de Direito, o ônus da prova sobre todos os elementos objetivo e subjetivos do tipo legal de crime é sempre do órgão acusador, sob pena de, não se desincumbindo a contente, advir um julgamento contrário à pretensão punitiva.

Especificamente em relação ao tipo penal inscrito no art. 354-A do CE, o édito condenatório reclama prova robusta sobre o efetivo destino dos valores, pois a apropriação ou uso não voltado ao financiamento de campanha constituem elementares do tipo, não bastando a simples dúvida ou carência de transparência no processo original de contas.

Sobre o tema, colaciono o escólio de Luiz Carlos dos Santos Gonçalves:

Toda a apropriação ou peculato traz uma noção de desvio: os recursos estavam com o candidato ou seu administrador financeiro para que fossem utilizados na campanha eleitoral, mas ele os guardou consigo, cedeu a terceiros, pagou dívidas pessoais, comprou um barco. Ele se locupletou de qualquer modo.

 

Esse aspecto demonstra o bem jurídico tutelado por este tipo penal: o emprego regular dos recursos dados para a campanha eleitoral. Recursos que deveriam ser empregados na campanha tiveram destinação diversa.

[...].

A apropriação precisa ser demonstrada por um elemento indicativo da alteração do ânimo da posse, a saber, a não apresentação dos recursos, quando requisitada, ou seu emprego em finalidade estranha ao financiamento eleitoral, daquela campanha específica.

(GONÇALVES, Luiz Carlos dos S. Investigação e processo dos crimes eleitorais e conexos. São Paulo: SaraivaJur, 2022. E-book.)

 

Ora, ausente provas cabais de apossamento indevido ou utilização não eleitoral da verba, “a dúvida a respeito do que teria efetivamente ocorrido já seria bastante para conduzir à absolvição, pois a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é firme no sentido de que –a condenação deve amparar–se em prova robusta pela qual se demonstre, de forma inequívoca, a prática de todos os elementos do fato criminoso imputado aos réus” (AgR–REspe nº 52–13, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe de 14.3.2017).

Assim, entendo que a falha no preenchimento dos cheques, emitidos ao portador, e a indiligência da acusada no processo de contas não permitem que se conclua induvidosamente pela consumação do crime de apropriação indébita dos recursos de financiamento de campanha, impondo-se a reforma da sentença pela insuficiência do acervo probatório.

 

ANTE O EXPOSTO, divirjo da eminente Relatora e voto pelo provimento do recurso, a fim de absolver VERA TEREZINHA FALCÃO SOUZA com fundamento no art. 386, inc. VII, do CPP.