RecCrimEleit - 0600057-89.2021.6.21.0114 - Voto Relator(a) - Sessão: 05/06/2023 às 14:00

VOTO

Senhor Presidente. Eminentes Colegas.

 

1. Preliminares.

1.1. Tempestividade.

O recurso é tempestivo, visto que interposto no prazo de dez dias da intimação da sentença, conforme dispõe o art. 362 do Código Eleitoral.

 

1.2. Prescrição.

Na linha do parecer ministerial, não há prescrição a ser reconhecida, pois a denúncia foi recebida em 26.5.2021 (ID 44997826) e a publicação da sentença condenatória (considerada como tal sua inserção no PJe pela magistrada sentenciante) se deu em 07.4.2022, de sorte que o interregno entre ela e a presente data é inferior a quatro anos, prazo prescricional previsto pelo art. 109, inc. V, do Código Penal. Inclusive, inferior a dois anos, com a aplicação da regra do art. 115 do mesmo código (quatro anos reduzidos pela metade, em razão de a ré contar com mais de 70 anos na data da sentença – nascimento em 26.8.1951).

 

1.3. Nulidade da sentença por vício de intimação em processo de prestação de contas.

A recorrente, em peça complementar (ID 45017790), alega nulidade da sentença, visto que o processo que deu azo à presente demanda (PC n. 0602636- 66.23018.6.21.0000) não lhe oportunizou o exercício do contraditório.

A tese vertida na irresignação vai no sentido de que a sentença deve ser anulada, na medida em que a contabilidade da prestadora restou eivada de vício na intimação do defensor da candidata, o qual, segundo a ré, não estava habilitado a receber intimações via PJe, em razão de seu não cadastramento no sistema.

Todavia, na linha do exauriente parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, a “ausência de intimação, trata-se de matéria que deve ser analisada na esfera própria, não se confundindo com o presente recurso de natureza penal. Eventual alteração no processo de prestação de contas poderá, futuramente, se for o caso, formar base para o oferecimento de revisão criminal ou mesmo de habeas corpus. Contudo, ao menos por ora, não há nulidade daquela ação a ser valorada no presente feito, cumprindo relembrar que houve julgamento, por essa egrégia Corte, de recurso eleitoral interposto pela candidata, tendo sido mantida a sentença que desaprovou as contas, por decisão já com trânsito em julgado - tanto que o débito está sendo executado pela União.”

Nesse norte, não há falar em nulidade da decisão obtida na presente ação penal, em decorrência de possível falha no processo de prestação de contas, motivo pelo qual afasto a arguição relativa ao vício de intimação em feito distinto.

 

2. Mérito.

Cuida-se de recurso interposto por VERA TEREZINHA FALCÃO SOUZA contra sentença em ação penal eleitoral, que a condenou à pena de 02 (dois) anos de reclusão (substituída por prestação de serviços à comunidade pelo prazo de 08 meses), assim como à penalidade de multa, fixada em 15 (quinze) dias-multa do salário mínimo, ao reconhecer a ocorrência de apropriação e uso indevido de valores destinados ao financiamento eleitoral, crime tipificado no art. 354-A, do Código Eleitoral.

A denúncia teve por lastro sentença no processo de prestação de contas n. 0602636-66.2018.6.21.0000, na qual se entendeu não demonstrada a escorreita utilização de valores do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), e foi oferecida pelo Ministério Público Eleitoral, nos seguintes termos:

No decurso do processo eleitoral de 2018, entre os dias 6, 10 e 11 do mês de setembro, em horário incerto, nesta Capital, a denunciada VERA TEREZINHA FALCÃO SOUZA, na qualidade de candidata a deputada estadual, apropriou-se em proveito próprio ou alheio, do valor de R$15.000,00 do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, bem como dos valores de R$4,00 e R$1,30 provenientes de sobra de campanha.

A acusada emitiu os cheques ao portador de números 900002, 90010, 900009, 900011, 900014 e 900007, que totalizaram o valor de R$15.000,00, sem comprovação dos beneficiários nem dos serviços prestados na campanha eleitoral.

Na oportunidade, foram apuradas irregularidades na prestação de contas da denunciada, junto a Secretaria de Controle Interno e Auditoria do TRE, que emitiu parecer conclusivo de desaprovação e determinação de devolução dos valores ao Tesouro Nacional.

Assim agindo, praticou a denunciada o crime eleitoral previsto no artigo 354-A do Código Eleitoral.

Isso posto, requer o Ministério Público seja recebida a inicial, determinando-se a citação da denunciada para apresentar defesa, com posterior instrução e inquirição de testemunhas, até a final condenação.

 

Recebida a denúncia, foi instaurada a presente ação penal, a qual foi objeto de recurso, visto que exarada decisão pela procedência da demanda e condenação da ré. Segue excerto da sentença, que bem sintetiza o julgado:

Apesar de alegar, em interrogatório, que os gastos de campanha e sua comprovação e entrega dos documentos ao Contador não ficaram a seu encargo, incumbência que ficou a cargo seu filho e de seu Advogado, a justificativa não isenta a denunciada da culpa pela prática de apropriação dos valores em proveito próprio ou alheio. Ocorre que, como candidata, era a responsável por tudo que dizia respeito à campanha e como tal, assim deveria por responder pelos gastos efetuados bem como aos chamados da Justiça Eleitoral para prestar as contas e regularizá-las antes do oferecimento da denúncia. Resta, portanto, provada a autoria e materialidade.

 

Sobre o crime vertido no art. 354-A do Código Eleitoral, leciona José Jairo Gomes que:

"no peculato eleitoral o agente se apropria de “bens, recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral”, os quais se encontram em sua posse e sob seus cuidados na qualidade de candidato ou administrador de campanha. O agente não é proprietário de tais bens e recursos, tendo apenas sua posse ou detenção como gestor a fim de empregá-los em suas precípuas finalidades. A apropriação indevida viola a boa-fé objetiva, implicando quebra de fidelidade do gestor para com a campanha e o partido.

A objetividade jurídica do presente delito consiste na proteção dos recursos destinados ao financiamento de campanha, mas também e principalmente na garantia de sua apropriada realização e regular desenvolvimento. É dever de quem detenha tais recursos investi-los adequadamente, pois é pela campanha (sobretudo pela propaganda eleitoral que ocorre em seu bojo) que os candidatos se apresentam ao eleitorado, expondo suas ideias e projetos. Ademais, a redução dos recursos disponibilizados impõe à campanha um dano não só material, como também político. Indiretamente, os próprios eleitores são lesados, pois ficam privados de receber mais informações a respeito do candidato” (Gomes, José Jairo. Crimes eleitorais e processo penal eleitoral. 6. ed. Barueri [SP]: Atlas, 2022)

 

Em irresignação, a ré alega que o contador informou ter apresentado a documentação pertinente à Justiça Eleitoral, a qual foi juntada pelo defensor após a instrução e o julgamento. Assevera que o material colacionado comprova os gastos referidos na inicial, bem com a entrega dos documentos. Aponta que, conforme depoimento de servidora, os arquivos poderiam estar em alguma pasta do sistema do TSE. Ressalta que o acervo probatório, carreado a destempo, não foi analisado. Defende que não há motivo para condenação, aplicados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, na medida em que ausentes improbidades aptas a comprometer a regularidade das contas (ID 44997893).

Em peça complementar, a recorrente prosseguiu com sua argumentação defensiva, aduzindo inexistente o dolo necessário à configuração do crime de apropriação, vertido no art. 354-A do Código Eleitoral. Arguiu ser leiga e já contar com idade avançada, o que, visando à lisura da sua conduta durante o pleito, motivou a contratação de suporte contábil e jurídico para assessorar sua campanha. Referiu que as falhas ocorreram de forma alheia ao seu conhecimento, sendo, em realidade, vítima da desídia do escritório de contabilidade e da inércia de seu procurador. Suscitou imprescindível, na busca da verdade real, a intimação do escritório contábil, o que não ocorreu. E repisa que a documentação saneadora da falha (ID 44997862) foi colacionada ao feito, ainda que intempestivamente. Indicou que os cheques que deram origem aos apontamentos da unidade técnica foram apresentados pela candidata ao escritório de contabilidade, mas que desconhece os motivos pelos quais não tenham sido repassados ao Poder Judiciário, sendo, um deles, para pagamento do próprio contabilista. Informou sobre a regularidade das cártulas, despesas e aplicações, bem como quanto ao recolhimento das sobras de campanha. Requereu, ao fim, o recebimento da peça adicional, para ver afastado o dolo do fato, e a nulidade da sentença, diante da mácula existente no processo contábil, referente à carência de intimação do defensor outorgado (ID 45017790).

Passo à análise.

Compulsando os autos, de fato, constam documentos sobre as despesas relacionadas pela ré, a saber:

- Termos de cessão de uso de veículo, firmado entre a candidata e Daura Falcão Souza, no valor de R$ 10.000,00 (ID 44997865);

- Documento, sem numeração, do Escritório de Contabilidade Salinos, relativo à prestação de contas, no montante de R$ 1.000,00, o qual faz referência ao cheque n. 90007 (ID 44997866);

- Recibo indicando a contratação de carro de som de Gilmar Ranquetat Fernandes, sem data ou valor acordado (ID 44997867);

- Contrato de prestação de serviços de panfletagem, ajustado entre a ré e Mara Elizete Gomes Falcão, tendo por pagamento a quantia de R$ 500,00 (ID 44997868);

- Contrato de prestação de serviços de panfletagem, ajustado entre a ré e Maurício Garcia Notargiacomo, no valor de R$ 2.500,00 (ID 44997869).

 

Todavia, conforme extrato eletrônico constante no sistema de divulgação de candidaturas e contas eleitoral - DivulgaCand - os referidos gastos foram quitados com cheques em que não estavam informados os destinatários, de sorte que impraticável aferir sua real aplicação (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2018/2022802018/RS/210000605345/extratos, Acesso em 16.01.2023).

A única peça acostada pela recorrente que tenta suprir tal lacuna, e que consta do ID 44997870, é uma cópia de extrato bancário em que apostos manualmente, ao lado de cada número de cártula, os beneficiários dos adimplementos, ou seja, desprovida da força probante necessária a ratificar o aduzido pela ré.

Houvesse o real interesse em demonstrar o fiel cumprimento da legislação eleitoral e o escorreito uso da verba pública, a ré poderia ter carreado ao feito as microfilmagens dos cheques ou, ainda, juntado extratos das contas bancárias dos beneficiários das cártulas, de forma a comprovar a verdadeira destinação dos valores públicos, por exemplo.

Acerca do depoimento trazido a lume, em que servidora informa sobre a probabilidade de os documentos pertinentes à contabilidade da prestadora constarem de pasta “avulsa” do sistema da Justiça Eleitoral, a declaração não tem o condão de suprir a falha na entrega dos mesmos a esta especializada, pois ainda que revestido de formalidade, não conduz a um juízo de adequação dos atos por parte da prestadora, mas sim a mera possibilidade, não comprovada nos autos.

Na mesma linha, o alegado pela recorrente quanto à assunção jurídica e financeira dos atos de campanha por seu advogado e pelo escritório contábil, os quais, no seu entender, tiveram suas condutas pautadas pela desídia e inércia diante dos chamados desta Justiça Eleitoral, na medida em que as alegações da ré aportaram aos autos desprovidas de qualquer suporte documental, ou mesmo testemunhal, não bastando o simples deslocamento da responsabilidade para outrem, a fim de desincumbir a candidata das suas responsabilidades para com o dinheiro público. Calha frisar que, em nenhum momento, foi requerida pela parte a oitiva do contabilista responsável - à exceção da irresignação aqui tratada.

A responsabilidade da candidata quanto ao manuseio dos valores durante a corrida eleitoral vem plasmada nos arts. 37, § 6º, e 48, § 2º, da Resolução TSE n. 23.533/17:

Art. 37. São gastos eleitorais, sujeitos ao registro e aos limites fixados nesta resolução:

§ 6º O pagamento dos gastos eleitorais contraídos pelos candidatos será de sua responsabilidade, cabendo aos partidos políticos responder apenas pelos gastos que realizarem e por aqueles que, após o dia da eleição, forem assumidos na forma do § 2º do art. 35 desta resolução.

 

Art. 48. Devem prestar contas à Justiça Eleitoral:

I - o candidato;

§ 2º O candidato é solidariamente responsável com a pessoa indicada no § 1º e com o profissional de contabilidade de que trata o § 4º deste artigo pela veracidade das informações financeiras e contábeis de sua campanha.

 

No que concerne à declaração da recorrente, no sentido de ser leiga, causa estranheza, dado que a mesma já concorreu em eleições pretéritas, as quais demandaram a mesma atenção à contabilidade de campanha, tendo alcançado a suplência para o cargo de vereador no Município de Uruguaiana, nos pleitos 2012 e 2016, e, ainda que sem êxito, concorrido à vereança em 2020. Do que se depreende não se tratar de pessoa leiga, mas sim de candidata tarimbada, com participação em diversos prélios eleitorais.

O mesmo vale para a questão da idade avançada, pois, ainda que a recorrente busque mitigar suas falhas contábeis ao aludir à questão etária, antes mesmo do desfecho do processo de prestação de contas, quando já contava com 69 anos, peticionou indicando intenção de candidatar-se novamente (ID 6792133 na PC n. 0602636-66.2018.6.21.0000), motivo pelo qual a argumentação deve ser superada.

A título de conclusão, vale citar o art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:

Art. 3º. Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

 

Nesse trilhar, alegar que as falhas ocorreram de forma alheia ao seu conhecimento, ao contrário do que a defesa pretende, conduz a uma ideia de despreparo e desatenção com o dinheiro público, principalmente quando lembramos que estamos a tratar de candidata que, pelo tempo do seu mandato, teria que gerir valores dessa natureza, mas que, em sua própria contabilidade de campanha, não atentou para as formalidades no uso das verbas oriundas do Fundo Especial de Financiamento de Campanha.

Prossigo.

No que atina ao tipo subjetivo, temos o dolo, não sendo prevista para o tipo a forma culposa.

Nada obstante, dada a qualidade especial do sujeito ativo – candidata – é justo assumir que esta tinha conhecimento sobre a destinação da verba pública para o financiamento de campanha e que, para tanto, imprescindível era a atenção aos requisitos vertidos na norma eleitoral, sem os quais a aferição dos gastos e a transparência das contas restariam maculadas.

O escólio de Rodrigo Lopes Zílio relata o prejuízo, não apenas aos atores do processo eleitoral, mas também ao próprio eleitorado, quando da ocorrência do peculato eleitoral (Zilio, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 8. ed. rev. ampl. e atual. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2020):

 

O crime previsto no art. 354-A do Código Eleitoral busca tutelar a lisura e transparência do financiamento de campanha. Pretende-se assegurar que os recursos de campanha sejam aplicados em conformidade com sua destinação legal, o que é uma forma de consolidar a própria representatividade democrática. Ademais, a ausência de destinação adequada dos recursos de campanha eleitoral importa em prejuízo não apenas para os atores do processo eleitoral, mas também para o próprio eleitorado – que é o fiador da soberania popular. (grifei)

 

Sobre a conduta, o aludido autor, na mesma obra, dispõe que:

 

A conduta de apropriação pode ser tanto comissiva ou omissiva. Na espécie, a conduta comissiva pode ocorrer, v.g., na hipótese de pagamento de serviços ou material de propaganda fictícios com recursos de campanha eleitoral e, na sequência, o direcionamento desses recursos para si ou para outrem. De outro lado, a conduta omissiva é possível de ocorrer quando o gestor não restituir a verba não utilizada do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (art. 16-C, §11, da LE) ou, mesmo, das sobras de campanha (art. 31 da LE). (grifos nossos)

 

E arremata, ao tratar da seguinte forma o dolo:

 

O dolo do crime revela-se na consciente e voluntária inversão da posse dos bens, recursos e valores com a ciência de que eles são destinados para custear a campanha eleitoral. O crime do art. 354-A do Código Eleitoral consuma-se com a inversão da posse, sendo desnecessário demonstrar prejuízo à transparência e à higidez do financiamento da campanha eleitoral. (Grifei.)

 

Do contexto, não há como afastar o dolo especial atrelado à candidata, a qual, ciente das formalidades inerentes ao uso do dinheiro público, somada à experiência adquirida em outras eleições, emitiu as ordens de pagamento sem identificar seus beneficiários, o que, ao fim e ao cabo, impossibilitou o esclarecimento quanto à verdadeira destinação do montante malversado.

Nesse cenário, considerando que a tese recursal se mostra insuficiente a infirmar o dispositivo sentencial, demonstradas a autoria e a materialidade do delito, consubstanciadas no processo de contas n. 0602636-66.2018.6.21.0000, corroboradas pela experiência em outros pleitos como candidata, a conduta restou evidenciada, de modo que ausentes causas excludentes de tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, deve ser integralmente mantida a sentença condenatória, ora impugnada, inclusive quanto às sanções impostas à ré, com fundamento no art. 354-A do Código Eleitoral.

Diante do exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso interposto por VERA TEREZINHA FALCÃO SOUZA, nos termos da fundamentação.

É como voto, senhor Presidente.