HCCrim - 0600010-98.2023.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 28/04/2023 às 14:00

VOTO

Trata-se de habeas corpus, com pedido liminar, impetrado em favor de LUIZ ROBERTO DE ALBUQUERQUE (Beto Albuquerque) contra atos da JUÍZA DA 160ª ZONA ELEITORAL DE PORTO ALEGRE que, nos autos da Ação Penal Eleitoral n. 0600010-40.2022.6.21.0160, recebeu a denúncia em desfavor do ora paciente, com acusação da prática do crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral, por, em tese, ter omitido em sua prestação de contas final da campanha de 2010, ao cargo de deputado federal, doação recebida do Grupo Odebrecht, no valor de R$ 200.000,00.

Relembro que, conforme jurisprudência do TSE, o trancamento de ação penal, por meio da via estreita do habeas corpus, somente é possível quando se constata ilegalidade ou teratologia capazes de suprimir a justa causa para o prosseguimento do feito, o que ocorre nas hipóteses de atipicidade da conduta descrita na denúncia, ausência de justa causa para a persecução ou quando presente causa extintiva da punibilidade (RHC n. 1203-89/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 31.3.2014; RHC n. 0600025-11/RO, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe de 3.2.2022; RHC n. 0600817-85/SP, Rel. Min. Sérgio Banhos, DJe de 4.8.2021; RHC n. 0600534-19/SC, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, DJe de 26.4.2021).

Isso posto, passo à análise das alegações deduzidas pelos impetrantes.

 

1. Da alegação de suspeição da magistrada

Quanto ao ponto, os impetrantes afirmam a suspeição da julgadora, nos termos do art. 254 do CPP, justificando que:

A Julgadora a quo e seu genitor foram (e continuam) “clientes” do escritório onde o paciente figura como um dos sócios, assim como uma das testemunhas de acusação (Sr. Fernando Variani) e o procurador firmatário e impetrante (Dr. Laércio de Lima Leivas). Isso ficou comprovado nos autos da Ação Penal, com a juntada da Consulta ao CNPJ do escritório (ID 110975554), da procuração firmada pela Magistrada e seu genitor na época (ID 110975555 e ID 111046223, respectivamente) e da consulta processual anexada no ID 110975556.

Essa situação foi levantada pela defesa do paciente quando da apresentação da defesa preliminar e durante a realização da audiência inicial.

 

Com efeito, constam, no ID 45397239, fls. 64-77, a procuração e os extratos de andamento processual pelos quais se demonstra que a Dra. Ana Cláudia Cachapuz Silva Raabe outorgou procuração a advogados e advogadas do Escritório Variani Giuliani Advogados Associados, em 06.6.2007, a fim de propor ações contra a empresa Brasil Telecom S/A, atuando no patrocínio da causa os advogados Fernando Antônio Variani e Laércio de Lima Leivas.

No ID 45397239, fls. 91-99, é possível visualizar outorga semelhante de poderes, conferida por Sérgio Lahude Silva, na condição de sócio da empresa TTT Serviços Ltda.

Ao examinar a defesa preliminar apresentada na ação penal, a magistrada assim enfrentou a questão (ID 45397239, fls. 107-108):

Não prospera a alegação de suspeição.

Por primeiro, não incidem as causas de suspeição de que trata o art. 254 do CPP, muito embora tenha sido mencionado o dispositivo no corpo da petição de defesa.

O fato de esta magistrada ter outorgado, no ano de 2007, uma procuração para Fernando Antonio Variani, não implica suspeição, que se daria por motivo de foro íntimo.

Na procuração – destaco de início – não há menção ao réu neste processo, Luiz Roberto de Albuquerque, de modo que jamais tomei conhecimento de que haveria sociedade entre ambos. Os demais advogados que constam da procuração são Ricardo Giuliani Neto, Marcos Eduardo Nondilo, Abel Romeu Dall´aqua, Maurício Gaboardi e Ana Paula Nunes Dias. O nome do escritório que costa do cabeçalho da procuração é Variani Giuliani – advogados associados.

Consultando o processo citado que se encontra ativo, não há menção ao réu, como advogado.

Não há e nunca houve nenhum contato com o advogado em questão, nestes mais de 15 anos de tramitação do processo.

O processo para o qual a procuração foi outorgada se tratava de ação de massa. Especificamente, processos de cobranças relativas a diferenças de ações da Brasil Telecom. Milhares de ações dessa natureza foram propostas.

Nesta ação citada, que embasaria a suspeição, em que a autora é parte, por exemplo, havia mais de 20 (vinte) pessoas no polo ativo.

Tais demandas, aliás, vinham propostas com base em um único documento - relatório das ações - e nenhum contato pessoal com o advogado se fazia necessário. Nenhum vínculo foi criado entre a testemunha e esta magistrada e – novamente repito – jamais houve qualquer contato com a testemunha, tampouco com o réu.

Em nenhuma oportunidade houve qualquer reunião, comunicação, telefonema, remessa de e-mail ou qualquer contato da banca de advogados da testemunha.

Não há, portanto, absolutamente nenhuma relação da magistrada com o réu ou a testemunha.

Os documentos por último juntados, de meu pai, que igualmente ingressou em juízo com a ação de massa, não se prestam para reconhecer minha parcialidade, minha isenção, ou qualquer fato impeditivo de julgamento deste processo. Servem apenas para eventual constrangimento ou exposição desnecessária, pois absolutamente impertinentes.

 

Pois bem.

A exceção de suspeição, via de regra, deve ser oposta com a resposta à acusação e, caso não acolhida, devem ser observadas as previsões dos arts. 100 e 101 do CPP.

Nada obstante, o STF já entendeu que “é possível o exame da alegação de parcialidade do magistrado em sede de Habeas Corpus se, a partir dos elementos já produzidos e juntados aos autos do remédio colateral, restar evidente a incongruência ou a inconsistência da motivação judicial das decisões das instâncias inferiores” (STF - HC: 164493 PR 0081750-08.2018.1.00.0000, Relator: MIN. EDSON FACHIN, Data de Julgamento: 23/03/2021, Segunda Turma, Data de Publicação: 04/06/2021).

O art. 254 do CPP dispõe sobre as hipóteses de suspeição do juiz, assim, prevendo:

Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:

I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;

II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;

III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consanguíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;

IV - se tiver aconselhado qualquer das partes;

V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes;

VI - se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.

 

Há certa controvérsia sobre a taxatividade ou não desse rol, predominando na doutrina e na jurisprudência a sua natureza exemplificativa, na medida em que há situações que, embora não expressamente tipificadas, podem interferir no ânimo do juiz, tornando-o carecedor da imparcialidade.

Nessa linha, ensina a doutrina de Norberto Avena:

Na moderna concepção dos tribunais, é firme o entendimento no sentido de que esse rol do art. 254 é meramente exemplificativo. Logo, para o reconhecimento da suspeição, não é decisiva a perfeita adequação do caso a um dos incisos do citado dispositivo legal, mas, sim, a constatação do comprometimento pessoal do juiz com a questão discutida no processo ou com as partes. O próprio STJ, inclusive, examinando essa questão, já flexibilizou o alcance do art. 254, permitindo a declaração de suspeição do juiz até mesmo com base no preceito genérico inscrito no art. 145, IV, do CPC/2015, que contempla a hipótese do juiz “interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes”. (AVENA, Norberto. Processo Penal. 14ª ed. Grupo GEN, 2022. E-book)

 

Paralelamente, não se pode elastecer as hipóteses descritas no art. 254 do CPP sem prova robusta do comprometimento de ânimo do julgador ou da julgadora, sob pena de se alargar exceções e desvirtuar a garantia constitucional do juiz natural contida na Constituição Federal e nas normas processuais.

Nessa linha, os fatos narrados pelos impetrantes e os documentos acostados não demonstram situação que, de plano, possa caracterizar amizade íntima, inimizade capital ou qualquer outro elemento indicativo de que a juíza tenha interesse no julgamento da causa em favor de uma das partes ou que tenha atuado com um mínimo de parcialidade, nos exatos termos da decisão que analisou a alegação contida na defesa preliminar.

Da mesma forma, não observo comprometimento da imparcialidade da juíza no fato de ter consignado na decisão que a juntada de documentos relativos aos processos particulares de seu genitor “servem apenas para eventual constrangimento ou exposição desnecessária, pois absolutamente impertinentes”, uma vez que não houve excessos nas razões ou na linguagem, consistindo em mera crítica fundamentada a ato praticado por uma das partes após o recebimento da denúncia.

Assim, na presente via processual, não vislumbro elementos que demonstrem a afetação subjetiva ou o interesse da magistrada em determinado resultado do processo penal a lhe comprometer a imparcialidade.

Registro, por fim, que as informações prestadas pelo juízo dão conta do encerramento do biênio da referida magistrada em 31.12.2022 e que os atos processuais futuros são conduzidos pelo Dr. Roberto Behrensdorf Gomes da Silva, atual Juiz Eleitoral da 160ª Zona Eleitoral (ID 45407219).

Com essas considerações, afasto as alegações dos Impetrantes.

 

2. Da alegação de incompetência do juízo

Quanto ao ponto, narram os impetrantes que a denúncia foi, inicialmente, distribuída à 160ª Zona, em razão da especialização da matéria, nos termos do art. 1º da Resolução TRE-RS n. 326/19. Posteriormente, entendendo que o caso não se amoldava à competência da zona especializada, a julgadora singular declinou da competência, determinando a redistribuição do processo. Ocorre que o feito retornou à 160ª Zona Eleitoral, tendo sido “redistribuído por competência exclusiva em razão de incompetência”.

Assim, entendem os impetrantes que, ao reconhecer a sua incompetência, o juízo encerrou sua prestação jurisdicional, razão pela qual deveria ter sido excluído de nova distribuição por sorteio. Além disso, asseveram que o processo sequer foi redistribuído por sorteio antes de retornar à 160ª Zona.

Isso posto, registro que a incompetência do juízo é arguida por exceção (art. 108 do CPP), somente sujeita a recurso quando houver acolhimento do pedido e declinação para o juízo competente (art. 581, incs. II e III do CPP).

A fim de evitar que o réu seja processado por juízo flagrantemente incompetente, admite-se o manejo do habeas corpus exclusivamente nas hipóteses em que haja prova pré-constituída e que o exame da matéria não se revista de complexidade incompatível com a estreita via do remédio constitucional (STJ; HC 201000250987, Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, DJe de 11.5.2011).

Na hipótese, a 160ª Zona Eleitoral cumula as competências de zona especializada em razão da matéria, na forma da Resolução TRE-RS n. 326/19, com a competência original, atribuída a todas as zonas eleitorais do Estado, para o processo de julgamento de infrações penais eleitorais que ocorram sob sua competência territorial, conforme estipula o art. 2º do referido diploma normativo:

Art. 2º. As zonas eleitorais designadas são consideradas zonas eleitorais especializadas em razão da matéria, e terão competência sobre toda a Jurisdição Eleitoral do Rio Grande do Sul, qualquer que seja o meio, modo ou local de execução dos eventuais delitos.

Parágrafo único. As zonas eleitorais designadas manterão a sua atual competência jurisdicional, facultado aos respectivos juízes eleitorais solicitar à Presidência do Tribunal a redistribuição de feitos que não tratem da matéria especializada a outras zonas eleitorais, ou requerer a atuação exclusiva na modalidade especializada em razão do volume de trabalho.

(Grifei.)

 

Dessa forma, não há ilegalidade no fato de a 160ª Zona Eleitoral ter declinado da competência em razão da inexistência de conexão do crime eleitoral com alguma das infrações que atrairiam a competência especializada em razão da conexão com delitos definidos na Resolução TRE-RS n. 326/19 (ID 45397238, fls. 93-94) e, posteriormente, após retorno do feito à Zona Distribuidora (ID 45397238, fl. 97), ter recebido o mesmo processo por competência criminal-eleitoral “comum”.

A questão restou bem exposta na decisão proferida pela Juíza Eleitoral da origem (ID 45397239, fl. 108):

Não há nenhuma incompatibilidade entre as duas decisões relativas à competência. A primeira delas, declinando a competência e a segunda a firmando, na 160ª Zona.

Explico.

Esta Zona possui competência especializada, instituída pelo art. 1o da Resolução TRE-RS n. 326/2019, que diz respeito aos crimes eleitorais CONEXOS a crimes de corrupção ativa e passiva, de evasão de divisas (Lei n. 7.492/1986), de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores (Lei n. 9.613/1998), e os delitos praticados por organizações criminosas (Lei n. 12.850/2013). Possui, também, competência para julgamento de delitos comuns.

A denúncia, entretanto, quanto ao Sr. Luiz Roberto de Albuquerque, narrou a ocorrência do crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral, devido à possibilidade de ingresso de valores ilícitos em sua campanha não terem sido declarados na prestação de contas eleitoral. Não foi apontada a ocorrência do crime de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores (Lei n. 9.613/1998) e de delitos praticados por organizações criminosas (Lei n. 12.850/2013), mas tão somente o fato de o denunciado “ter recebido tais valores, estes não foram declarados em suas prestações de contas junto ao Sistema de Prestação de Contas Eleitorais (SPCE), e tampouco em sua Prestação de Contas Final, autos n.º 7146-55.2010.6.21.0000”.

Assim, em tese, caracteriza prática de falsidade ideológica eleitoral, delito tipificado no art. 350 do Código Eleitoral, o qual não atrai a competência da Zona Eleitoral Especializada.

Aliás, foi para evitar alegação de nulidade que este juízo declinou a competência, para que o inquérito fosse distribuído entre todos aqueles que tem competência para processo e julgar crimes comuns.

Redistribuído o processo, este veio, por sorteio, a esta 160ª Zona, agora de forma adequada, por sorteio. O fato de o processo cair novamente neste juízo foi decorrência do sorteio.

 

Além disso, a certidão acostada aos autos da ação penal confirma que a redistribuição ocorreu por sorteio (ID 45397238, fl. 102), nos termos lançados pelo juízo da Zona Distribuidora, não havendo comprovação clara e cabal sobre alguma irregularidade no procedimento cartorário.

No mais, trata-se, evidentemente, de incompetência territorial, que possui caráter relativo, sendo vinculada sua arguição ao prazo e à forma previstos em lei, sob pena de prorrogação, e permite, ainda que posteriormente reconhecida, a convalidação dos atos praticados, inclusive os decisórios (STJ; AgRg no REsp n. 1.758.299/SC, Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, DJe de 20.5.2019).

Assim, nos estritos limites da via, não vislumbro ilegalidade flagrante, demonstrada de plano, a recomendar a concessão do habeas corpus.

 

3. Da ausência de fundamentação da decisão de recebimento da denúncia

Em suas razões, os impetrantes alegam a carência de fundamentação da decisão que recebeu a denúncia, asseverando que:

(...) observa-se que denúncia também não está fundamentada, pois para concluir acerca da possibilidade de o paciente ter cometido o delito previsto no art. 350 do Código Eleitoral, afirma tão somente que “o Ministério Público já ofereceu denúncia que está embasada em documentos, com a descrição detalhada dos fatos”, o que evidentemente trata-se de mera indicação, reprodução ou paráfrase do dito pela acusação, não constituindo motivação idônea para receber a denúncia e determinar a citação do paciente para responder a denúncia, portanto.

Salienta-se que se faz necessário o recebimento fundamentado da denúncia, modo a oportunizar ao acusado o exercício pleno da sua defesa. Inobstante, conforme já constatado, tal não ocorreu nos autos.

 

De seu turno, a decisão impugnada faz remissão expressa aos documentos que instruíram a denúncia, consistentes na delação realizada por Alexandrino de Salles Ramos e na perícia técnica, efetivada por perito criminal federal, nos sistemas informatizados da suposta empresa doadora.

Aliás, se o magistrado recebe a denúncia, sendo esse um mero juízo de admissibilidade da acusação, é lógico e que o faz com base em seu conteúdo e nos documentos que a instruem.

Assim, a decisão que recebe a denúncia não reclama motivação profunda ou exauriente, sob pena, inclusive, de indevida antecipação do julgamento de mérito, que somente poderá ser proferido após o curso da instrução criminal, com as devidas garantias da ampla defesa e do contraditório.

Nessa linha, é reiterada a jurisprudência do STJ e do STF sobre a dispensabilidade de fundamentação minudente ou profunda no recebimento da denúncia:

PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. COLABORAÇÃO PREMIADA. OUTROS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. FUNDAMENTAÇÃO ADEQUADA. AUSÊNCIA DE NULIDADE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Hipótese em que os elementos de convicção que instruíram a denúncia decorreram, inicialmente, dos autos das colaborações premiadas, mas não se encontram isolados nos autos. A peça acusatória também têm sustentáculo em elementos de prova oriundos do Procedimento Investigativo Criminal MPMG n. 0702.17.004416-9, ficando, portanto, afastada a alegação de ofensa ao disposto no art. 4.º, § 16, inciso II, da Lei n. 12.850/2013. 2. Tanto a decisão que recebe a denúncia (CPP, art. 396) quanto aquela que rejeita o pedido de absolvição sumária (CPP, art. 397) não demandam motivação profunda ou exauriente, considerando a natureza interlocutória de tais manifestações judiciais, sob pena de indevida antecipação do juízo de mérito. 3. Conforme reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e na esteira do posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal, consagrou-se o entendimento de inexigibilidade de fundamentação complexa no recebimento da denúncia, em virtude de sua natureza interlocutória, não se equiparando à decisão judicial a que se refere o art. 93, inciso IX, da Constituição da República. 4. Agravo regimental não provido.

(STJ - AgRg no RHC: 149381 MG 2021/0192924-1, Relator: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 14/12/2021, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/12/2021.) (Grifei.)

 

PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS DECLARATÓRIOS RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. DECISÃO MONOCRÁTICA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. INDÍCIOS DE AUTORIA E MATERIALIDADE. FATOS E PROVAS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. 1. Tendo em vista o caráter infringente da pretensão formulada pela parte recorrente de ver reformada a decisão impugnada, os embargos de declaração devem ser recebidos como agravo regimental. Precedentes. 2. Do ponto de vista processual, o caso é de habeas corpus substitutivo de agravo regimental (cabível na origem). Tendo em vista a jurisprudência da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o processo deve ser extinto sem resolução de mérito, por inadequação da via eleita (HC 115.659, Rel. Min. Luiz Fux). Inexistindo pronunciamento colegiado do Superior Tribunal de Justiça, não compete ao STF examinar a questão de direito implicada na impetração. Precedentes. 3. O Supremo Tribunal Federal (STF) pacificou o entendimento no sentido de que “não se exigem, quando do recebimento da denúncia, a cognição e a avaliação exaustiva da prova ou a apreciação exauriente dos argumentos das partes, bastando o exame da validade formal da peça e a verificação da presença de indícios suficientes de autoria e de materialidade” (HC 128.031, Relª. Minª. Rosa Weber). 4. A “alegação de ausência de autoria e materialidade é insuscetível de deslinde em sede de habeas corpus, que, como é cediço, não comporta reexame de fatos e provas” (RHC 117.491, Rel. Min. Luiz Fux). 5. O STF possui o entendimento de que o trancamento da ação penal, por meio do habeas corpus, só é possível quando estiverem comprovadas, de plano, a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a evidente ausência de justa causa. Precedentes. 6. Embargos recebidos como agravo regimental a que se nega provimento.

(STF - ED RHC: 169214 MG - MINAS GERAIS 0688343-56.2018.8.13.0000, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 06/09/2019, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-204 20-09-2019.) (Grifei.)

 

Logo, não observo, de plano, a sustentada carência de fundamentação da decisão que recebeu a acusação.

 

4. Da prescrição da pretensão punitiva estatal pela pena em abstrato

De acordo com os impetrantes, não deve ser considerado marco inicial da prescrição a data de 02.11.2010, até a qual o candidato poderia prestar as contas de campanha à Justiça Eleitoral, mas, sim, “a última data em que o delator teria repassado valores não declarados ao réu (em 17.09.2010)”. Nessa esteira, concluem que “entre a última data do suposto fato delituoso, em 17.09.2010, e a data do recebimento da denúncia, em 24.10.2022 (ID 110113545 – Decisão), transcorreram-se mais de 12 (doze) anos, interstício temporal superior àquele delineado pelo Código Penal”, operando-se a prescrição da pretensão punitiva in abstrato.

De seu turno, a magistrada da origem rejeitou a alegação, considerando como data do fato o dia até o qual o denunciado poderia sanar tempestivamente eventual omissão em sua prestação de contas finais, ou seja, 02.11.2010.

De fato, o verbo nuclear do tipo penal imputado ao denunciado consiste em “omitir” em documento público ou particular declaração que nele devia constar, nos termos do art. 350 do CE. Ou seja, o crime não se consuma no momento do recebimento de eventuais doações eleitorais, mas na data em que tais recursos não são declarados na prestação de contas de campanha apresentada à Justiça Eleitoral.

No aspecto, ensina José Jairo Gomes que o crime é formal e sua consumação, na modalidade omissiva, ocorre “com a omissão, a qual só se patenteia com a conclusão do documento, até esse momento é possível que o agente se arrependa e preste a declaração devida” (GOMES, José Jairo. Crimes Eleitorais e Processo Penal Eleitoral. 6ª edição. Grupo GEN, 2022. E-book).

Vale dizer, a “omissão” de informações nos documentos de prestação de contas somente se configura por ocasião da própria prestação de contas dos candidatos, que, em regra, deve ser realizada 30 dias após o pleito.

Logo, para o crime do art. 350 do CE é cominada pena de reclusão de até cinco anos, com prescrição em doze anos (art. 109, inc. III, do CP), a qual não ocorreu, pois o candidato teria até 02.11.2010 para prestar contas sobre a campanha de 2010, quando, de fato, apresentou os documentos, e a denúncia foi recebida 24.10.2022.

Assim, não ocorrente a prescrição ou patente ilegalidade na decisão que afastou a alegação de extinção da pretensão punitiva estatal.

 

5. Da ausência de justa causa para o exercício da ação penal e da inépcia da denúncia

Os impetrantes defendem que a denúncia não atende ao art. 41 do CPP e que os documentos que a acompanham não conferem lastro de autoria e materialidade sobre a imputação criminosa.

De seu turno, a inicial acusatória (ID 45397239, fls. 3-12) narra “que o denunciado recebeu do Grupo Odebrecht duas doações oriundas do ‘caixa 2’ da empresa, em 11 de agosto e 17 de setembro de 2010, destinadas ao financiamento de sua campanha eleitoral, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) cada uma, totalizando R$ 200.000,00, em razão de ser tido pela empresa como um político de influência nacional e em ascensão”, bem como que “tais valores referidos foram disponibilizados em espécie ao denunciado, que deixou de declará-los em suas prestações de contas à Justiça Eleitoral”.

No tópico, tenho que assiste razão aos impetrantes.

Extrai-se da denúncia que a acusação do Ministério Público Eleitoral está baseada na delação de Alexandrino de Salles Ramos de Alencar, no âmbito da Operação Lava-Jato, como também em laudo pericial elaborado pelo setor técnico da Polícia Federal sobre a análise dos sistemas Drousys e MyWebDay, utilizados pela Odebrecht, e nas próprias Prestações de Contas Finais apresentadas pelo denunciado, em que omitidos os valores indicados pelo colaborador premiado.

Além disso, acompanha a denúncia o rol com três testemunhas, cuja oitiva é requerida pelo Ministério Público Eleitoral: Alexandrino de Salles Ramos de Alencar, Valter Luis Arruda Lana e Fernando Antônio Variani.

Dos elementos que lastreiam a acusação, consta que Alexandrino de Salles Ramos de Alencar firmou termo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal, em 15.12.2016, no qual narra que, em 2010, a empresa Odebrecht teria ajudado na campanha à reeleição de Beto Albuquerque à Câmara dos Deputados, com o valor de R$ 200.000,00, acima do padrão estipulado pela empresa para essa espécie de candidatura, que estava na média de R$ 50.000,00, e que a doação ocorreu via “caixa 2”, bem como que teria sido utilizado o codinome “trinca-ferro” ao candidato, uma vez que o símbolo do PSB é um pássaro (ID 45397129, fls. 140-148, nestes autos, e vídeo no ID 104184636, nos autos da APEl 0600010-40).

Embora a colaboração premiada seja apta a autorizar a instauração de inquérito policial para a apuração dos fatos, o meio de prova não se presta, por si só, a justificar a deflagração da ação penal quando desacompanhada de outros elementos externos de informação que corroborem as declarações do informante e demonstrem a viabilidade mínima da pretensão punitiva do Estado.

Sobre o tema, a jurisprudência enuncia que o acordo de colaboração premiada se esvazia de força probatório sem outros meios de prova hábeis e diversos, alcançados no curso de investigação, que lhe garantam a credibilidade:

A colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, destina-se à “aquisição de entes (coisas materiais, traços [no sentido de vestígios ou indícios] ou declarações) dotados de capacidade probatória”, razão por que não constitui meio de prova propriamente dito. [...] Enquanto o acordo de colaboração é meio de obtenção de prova, os depoimentos propriamente ditos do colaborador constituem meios de prova, os quais somente se mostrarão hábeis à formação do convencimento judicial se vierem a ser corroborados por outros meios idôneos de prova. [...] Logo, uma investigação deflagrada por um acordo de colaboração tem por escopo a obtenção de meios idôneos de prova que possam corroborá-lo.

(STF, Pet 6138 AgR-segundo, Relator: MINISTRO EDSON FACHIN, Relator: p/ Acórdão: MINISTRO DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 21/02/2017, DJe-200 05-09-2017)

 

Na mesma linha, o STJ definiu que “a natureza jurídica da colaboração premiada é de delatio criminis, porquanto é mero recurso à formação da convicção da acusação e não elemento de prova, sendo insuficiente para subsidiar, por si só, a condenação de alguém” (STJ, AgRg no Inq n. 1.093/DF, Relatora: MINISTRA NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 6/9/2017, DJe de 13/9/2017).

No caso em exame, tal elemento externo de confirmação seria a perícia técnica sobre os arquivos eletrônicos dos sistemas Drousys e MyWebDay, utilizados pela empresa Odebrecht para gerenciar a distribuição de doações de campanha, no qual seria possível observar o registro do codinome “TRINCAFERRO” associado a “2 pagamentos de R$ 100.000,00 cada, realizados em 11/08/2010 e 17/09/2010” (ID 45397131, fls. 108-116).

Ocorre que o STF já teve oportunidade de analisar diversos casos semelhantes decorrentes do conjunto de colaborações premiadas havidas no contexto da Operação Lava-Jato, concluindo que os lançamentos em tais sistemas consistem em planilhas de anotações gerenciadas unilateralmente pelos próprios colaboradores, de modo que não caracterizam fontes diversas de prova para corroborarem o conteúdo das delações, sequer para legitimarem a persecução judicial-penal.

Nessa linha, o seguinte julgado do STF:

Inquérito. Corrupção passiva (art. 317, § 1º, CP). Corrupção ativa (art. 333, caput, CP). Lavagem de dinheiro majorada (art. 1º, § 4º, da Lei nº 9.613/98). Denúncia. Parlamentar federal. Suposto envolvimento em esquema de corrupção de agentes públicos relacionado à Diretoria de Abastecimento da Petrobras. Solicitação de vantagem indevida, com desdobramento em pagamentos fracionados. Recebimento em espécie e por meio de contratos fictícios. Alegação de incompetência do relator. Distribuição por prevenção. Matéria que deve ser alegada no primeiro momento em que o interessado se pronunciar nos autos. Fatos apurados nas mesmas circunstâncias. Conexão probatória e intersubjetiva. Artigos 80 e 83 do CPP. Esgotamento temporal das penas impostas no acordo de colaboração. Aferição em momento processual posterior. Busca e apreensão em escritórios de advocacia. Possibilidade. Requisitos analisados quando do deferimento da medida. Preclusão. Inviolabilidade relativa. Incidência da causa de aumento de pena do delito de lavagem de dinheiro prevista no § 4º do art. 1º da Lei nº 9.613/1998. Habitualidade descrita na denúncia. Inépcia da denúncia não configurada. Concurso de pessoas. Descrição suficiente. Enquadramento como autores ou partícipes. Irrelevante. Ausência de dolo e consciência da ilicitude. Matérias afetas ao mérito. Preliminares rejeitadas. Inexistência de justa causa para a ação penal. Imputação calcada em depoimentos de réus colaboradores. Ausência de provas minimamente consistentes de corroboração. Documentos produzidos pelos próprios colaboradores. Inadmissibilidade. Registros de entrada, saída e deslocamentos. Ausência de elementos concretos que tornem induvidosa a materialidade. Fumus commissi delicti não demonstrado. Falsidade ideológica dos contratos. Ausência de lastro mínimo quanto ao liame subjetivo. Não demonstração, em termos probatórios, da alegada ligação entre o escritório de advocacia e o apontado real beneficiário dos valores por ele intermediados. Denúncia rejeitada (art. 395, III, CPP).

[...].

9. Para o recebimento da denúncia, exige-se “a demonstração – fundada em elementos probatórios mínimos e líticos – da realidade material do evento delituoso e da existência de indícios de sua possível autoria” (Inq 3.507/MG, Plenário, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 11/6/14).

10. A colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, tem aptidão para autorizar a deflagração da investigação preliminar, visando adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória. Essa, em verdade, constitui sua verdadeira vocação probatória.

11. Todavia, os depoimentos do colaborador premiado, sem outras provas idôneas de corroboração, não se revestem de densidade suficiente para lastrear um juízo positivo de admissibilidade da acusação, o qual exige a presença do fumus commissi delicti.

12. O fumus commissi delicti, que se funda em um juízo de probabilidade de condenação, traduz-se, em nosso ordenamento, na prova da existência do crime e na presença de indícios suficientes de autoria.

13. Se “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador” (art. 4º, § 16, da Lei nº 12.850/13), é lícito concluir que essas declarações, por si sós, não autorizam a formulação de um juízo de probabilidade de condenação e, por via de consequência, não permitem um juízo positivo de admissibilidade da acusação.

14. No caso concreto, faz-se referência a documentos produzidos pelos próprios colaboradores, a exemplo de anotações, registros em agenda eletrônica e planilhas de contabilidade informal. A jurisprudência da Corte é categórica em excluir do conceito de elementos de corroboração documentos elaborados unilateralmente pelo próprio colaborador. Precedentes.

15. Demais registros colhidos no decorrer das investigações, por si sós, não comprovam a materialidade dos delitos imputados aos acusados. Quanto muito possibilitam inferências e ilações no sentido de que os acusados mantinham algum contato, ou que fizeram deslocamentos mencionados pelos colaboradores, mas não bastam para tornar estreme de dúvidas a materialidade especificamente das condutas criminosas imputadas aos denunciados.

[...].

(Inq 4074, Relator: MINISTRO EDSON FACHIN, Relator p/ Acórdão: MINISTRO DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 14/08/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe de 17-10-2018.) (Grifei.)

 

Trata-se de entendimento acolhido no âmbito do TSE em julgamento de caso também envolvendo possível omissão nas contas de campanha de doação advinda da empresa Odebrecht (art. 350 do CE), tendo o Tribunal decidido pelo trancamento do inquérito policial que tramitava por mais de 10 anos, ao fundamento de que o acervo probatório até então angariado limitava-se “a depoimentos de colaboradores e à perícia realizada nos sistemas internos do Grupo Odebrecht”. Perícia essa, justamente, nos sistemas Drousys e MyWebDay da empresa, tal como no caso em testilha.

Transcrevo a ementa do referido julgado:

ELEIÇÕES 2010. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. ACÓRDÃO REGIONAL QUE, NO JULGAMENTO DE HABEAS CORPUS, FIXOU PRAZO CONCLUSIVO PARA O TÉRMINO DO INQUÉRITO POLICIAL. DECISÃO QUE SE REVESTE DE CONTEÚDO CONCESSIVO DA ORDEM, SENDO IMPUGNÁVEL POR MEIO DO RECURSO ESPECIAL. ESTIPULAÇÃO DE PRAZO PARA A CONCLUSÃO DO PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO. COMPETÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO DE CONTROLE DE LEGALIDADE DOS ATOS PRATICADOS NA FASE PRÉ–PROCESSUAL. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. ART. 350 DO CÓDIGO ELEITORAL. PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO INSTAURADO HÁ 5 ANOS, VISANDO A APURAR SUPOSTO FATO DELITUOSO OCORRIDO AINDA EM 2010. EXCESSO DE PRAZO CONFIGURADO. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA CONTINUIDADE DAS INVESTIGAÇÕES. INFORMAÇÕES PRESTADAS POR COLABORADORES DESACOMPANHADAS DE ELEMENTOS EXTERNOS DE CORROBORAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA QUE DEMONSTRE A VIABILIDADE DA INVESTIGAÇÃO. RECURSO ORDINÁRIO PROVIDO.

Agravo em Recurso Especial interposto pelo Ministério Público.

[...].

Recurso Ordinário em Habeas Corpus interposto pela investigada.

1. Pretensão de trancamento do Inquérito Policial instaurado há 5 anos, cujo objeto consiste na prática, supostamente ocorrida no ano de 2010, do crime previsto no art. 350 do Código Eleitoral.

2. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL firmou o entendimento no sentido de que "a pendência de investigação, por prazo irrazoável, sem amparo em suspeita contundente, ofende o direito à razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF)", norma que também se projeta sobre a fase pré–processual, de modo que "a duração indefinida ou ilimitada do processo judicial afeta não apenas e de forma direta a ideia de proteção judicial efetiva, como compromete de modo decisivo a proteção da dignidade da pessoa humana" (AgR–Inq 4.393, Rel. Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, DJe de 27/8/2020).

3. Além do evidente excesso de prazo, o conjunto probatório produzido reveste–se de fragilidade, pois, nada obstante o fato investigado tenha ocorrido ainda em 2010, limita–se a depoimentos de colaboradores e à perícia realizada nos sistemas internos do Grupo Odebrecht, em que constavam indicação do repasse de R$ 200.000,00 e o suposto codinome da investigada.

4. Embora a colaboração premiada, como meio de obtenção de prova, seja apta a autorizar a instauração do inquérito policial, as informações prestadas pelo colaborador, desacompanhadas de elementos externos de corroboração, não legitimam o prosseguimento de investigações por prazo indefinido e sem demonstração mínima de sua viabilidade. Precedentes.

5. Ausência de justa causa para a continuidade do procedimento investigatório respaldada, inclusive, pela superveniente manifestação, na origem, do Ministério Público no sentido de arquivamento, tendo em vista a inexistência de elementos de convicção que corroborem as informações do colaborador e o iminente advento do prazo prescricional em abstrato (12 anos).

6. Os incidentes ocorridos durante tramitação do inquérito apontados pela Corte Regional, consistentes na declinação da competência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL para a JUSTIÇA ELEITORAL, na crise sanitária decorrente do coronavírus e na existência de dois conflitos de competência suscitados, não justificam o prosseguimento das investigações relacionadas a suposto crime ocorrido há mais de 12 anos.

7. A demora na tramitação do inquérito que decorre do próprio sistema judicial e de motivos não atribuíveis à atuação da defesa não legitima, sem nenhuma prova que demonstre mínimo de viabilidade das investigações, a perpetuação indefinida e desproporcional do procedimento investigatório.8. Recurso Especial do Ministério Público CONHECIDO e, no mérito, DESPROVIDO. Recurso em Habeas Corpus PROVIDO, para TRANCAR o inquérito policial.

(Recurso em Habeas Corpus nº 060023621, Acórdão, Relator(a) Min. Carlos Horbach, Relator(a) designado(a) Min. Alexandre de Moraes, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Tomo 183, Data 20/09/2022.) (Grifei.)

 

Em relação ao rol de testemunhas apresentado pelo Ministério Público Eleitoral, igualmente não vislumbro indícios suficientes a corroborarem as afirmações do colaborador premiado e capazes de fornecer um lastro probatório mínimo à acusação.

Nos termos de declarações prestados perante a Autoridade Policial, Alexandrino de Salles Ramos de Alencar limitou-se a reafirmar o conteúdo da colaboração acordada com o Ministério Público Federal (ID 45397129, fls. 151-155), referindo:

QUE BETO ALBUQUERQUE sempre aparece nas planilhas do sistema DROUSYS com o codinome ‘TRINCAFERRO” em alusão ao pássaro que é o símbolo do PSB; QUE o declarante não tem informações sobre como foram operacionalizadas os pagamentos; QUE pelas informações disponíveis na planilha do DROUSYS acredita que os valores tenham sido alcançados por intermédio do operador denominado TONICO; QUE o declarante jamais teve qualquer contato com ANTONIO CLAUDIO ALBERNAZ CORDEIRO, vulgo TONICO; QUE o declarante não faz ideia de quem possam ser as pessoas para quem TONICO efetuasse o repasse dos valores.

 

As declarações evidenciam que o delator apenas associa o paciente com a alcunha de “trincaferro” anotada nas planilhas, promovendo outras afirmações meramente especulativas sobre como ocorreram as doações. Consta, ainda, a admissão de que não conhece “Tonico” ou ANTÔNIO CLAUDIO ALBERNAZ CORDEIRO, pessoa, já falecida, que a denúncia aponta como tendo disponibilizado os valores para o então candidato.

Por sua vez, Fernando Antônio Variani, que atuou como administrador financeiro de campanha para Beto Albuquerque nas eleições de 2010, negou conhecimento dos fatos investigados, reputando a citação de seu nome a uma confusão do delator, pois “acredita na possibilidade de que um advogado de nome FERNANDO VARIANI, pessoa de confiança de BETO ALBUQUERQUE, tenha, em algum momento, participado de negociações que dissessem respeito às doações para algumas das campanhas, via caixa 2, embora não recorde em que campanha isto teria ocorrido”. Disse, ainda, que, no pleito de 2010, “foram repassadas duas contribuições oficias da Brasken via PSB estadual para a campanha de BETO ALBUQUERQUE, nos valores de 50 e 80 reais” (ID 45397129, fls. 235-237).

Ou seja, o depoente “acredita” que a indicação de seu nome pelo delator se deve a um homônimo que, em algum momento anterior ao pleito de 2010, poderia ter intermediado as doações do grupo empresarial em eleições passadas, sem “lembrar” maiores detalhes, o que nada agrega para os fatos determinados contidos na acusação.

Quanto a Valter Luis Arruda Lana, então diretor do Grupo Odebrecht na região Sul, narrou ter firmado acordo de colaboração com o Ministério Público Federal no âmbito da Operação Lava-Jato e que “tomou conhecimento de que houve pagamentos ao codinome “trinca-ferro” ou a Beto Albuquerque, porém não se recorda se soube disso antes ou depois da deflagração da Operação Lava Jato”, bem como que “se recorda que a Odebrecht fez contribuição oficial para a campanha de Beto Albuquerque, porém não recorda o ano e o cargo” (ID 45397131, fls. 68-69).

Logo, o depoente, sem especificar cargo ou ano de eleição, apenas confirmou que a empresa realizou “contribuições oficiais” ao então candidato, o que não era vedado à época, sem delinear aspecto mínimo que permita pressupor eventual “caixa 2”.

Após a impetração do presente habeas corpus, Alexandrino Alencar e Valter Lana prestaram depoimentos em juízo, nos autos da ação penal, os quais, juntados em memoriais pelos impetrantes (ID 45446384), embora dispensáveis para a análise de mérito, no meu entendimento, reforçam as conclusões desenhadas a partir da prova pré-constituída oportunamente apresentada.

Assim, tem-se que, em juízo (ID 45446390 e 45446403), Alexandrino Alencar declarou que não conhece os detalhes operacionais das doações ou como eram entregues aos candidatos, pois a sua atuação na empresa era mais institucional. Disse que apenas soube do codinome “trinca-ferro” após ter conhecimento das planilhas. Asseverou não conhecer a pessoa identificada como Tonico, que o Ministério Público Eleitoral indica como quem entregou os valores. Informou que seu envolvimento com a Brasken se deu até 2007, bem como confirmou que nunca presenciou os valores sendo entregues ao então candidato Beto Albuquerque.

Da mesma forma, na instrução judicial (ID 45446391, 45446392, 45446393, 45446394, 45446395, 45446396, 45446397 e 45446401), Valter Lana afirmou que somente teve conhecimento dos fatos quando recebeu cópia da denúncia. Esclareceu que firmou acordo de delação premiada no âmbito da operação Lava-Jato, mas abarcando outros casos, sem relação com o fato contido na denúncia contra Beto Albuquerque. Disse que desconhece o nível de relação entre Alexandrino Alencar e Beto Albuquerque, bem como desconhece as doações que teriam sido entregues ao candidato em 2010. Asseverou que somente soube do codinome “trinca-ferro” a partir da leitura da denúncia e que apenas teve contato com as planilhas quando já havia saído da empresa Odebrecht e que seu nome pode ter lá constado em razão da posição hierárquica de Superintendente da Região Sul.

Finalmente, o ora paciente Luiz Roberto de Albuquerque, ouvido no curso da investigação policial, não negou que fez pedidos “de contribuição legal/oficial a sua campanha para deputado federal”, mas, diferentemente da narrativa acusatória, disse que houve a opção da empresa por realizar as doações ao órgão partidário estadual do PSB, que lhe repassou os valores, os quais foram declaradas em ambas as contas de campanha e que nunca operou com “caixa 2” em campanha (ID 45397129, fls. 250-255).

Consultando-se as contas da campanha de 2010 apresentadas pelo paciente, observa-se, efetivamente, as doações de R$ 50.000,00 (em 20.7.2010) e de R$ 80.000,00 (em 29.8.2010), provenientes do respectivo Diretório Estadual (ID 45397131, fls. 232-236, e ID 45397239, fls. 78-81)[1].

As quantias são exatamente equivalentes às doações recebidas pelo órgão estadual do PSB da empresa BRASKEN S.A, então subsidiária do Grupo Odebrecht, sendo R$ 80.000,00, em 31.8.2010, e R$ 50.000,00, na data de 30.9.2010 (ID 45397239, fls. 82-86)[2], em convergência com o que afirmaram Luiz Roberto de Albuquerque e Fernando Antônio Variani no âmbito policial.

Portanto, as declarações prestadas no procedimento extrajudicial, reiteradas por Alexandrino Alencar e Valter Lana na fase judicial, nada ratificam ou agregam ao que foi dito pelo colaborador e ao que consta nas planilhas gerenciadas pela empresa em que atuava como liderança executiva, que permanecem como provas isoladas e unilaterais do suposto fato delituoso.

Vale dizer: não há nos autos elementos idôneos mínimos que corroborem as declarações do colaborador premiado.

Ressalta-se que o inquérito policial que acompanha a denúncia foi instaurado em 06.6.2017 (ID 45397129, fls. 109-110), perante a Justiça Federal, e, após declínio de competência, recebido em 15.3.2022 pela Justiça Eleitoral (ID 45397131, fl. 202), não havendo, transcorridos mais de 5 anos, diligências ou oitivas capazes de alterar a situação de debilidade probatória sobre a hipótese investigativa, sequer suficientes para o oferecimento da denúncia.

Embora não se ignore que a opinio delictio do titular da ação penal não esteja condicionada às conclusões da apuração policial, cabe registrar que o oferecimento da denúncia ocorreu quando ainda pendentes diligências investigatórias, inclusive nova oitiva do investigado, havendo, inclusive, pedido da autoridade policial de prazo adicional para a continuidade da apuração (ID 45397238, fls. 99).

É certo que o diligente representante do Ministério Público Eleitoral atuante no feito somente teve vista dos autos após longa trajetória em outra jurisdição e, ao receber o feito, já sob a iminência do advento prescricional e antevendo o tempo exíguo para providências adicionais, optou por oferecer a denúncia desde logo, fazendo-o em 05.10.2022, ou seja, menos de 30 dias antes do marco de prescrição (02.11.2022).

Apesar do esforço do laborioso Promotor de Justiça Eleitoral, é manifesto que a demanda penal, sob a perspectiva da colheita de elementos que lhe conferissem suporte probatório mínimo, foi ajuizada de forma precoce, não havendo sequer indicativos de que outras provas pudessem ser alcançadas.

Logo, o conjunto probatório produzido no curso da investigação reveste-se de fragilidade manifesta, pois se limita ao depoimento do colaborador premiado, então executivo da Odebrecht, e à perícia realizada nos sistemas informatizados manejados pelo mesmo grupo empresarial.

Tal arcabouço probatório carece de elementos que o confirmem ou reforcem, a exemplo de vídeos, fotos ou outras testemunhas sobre as tratativas havidas para a doação ou sobre o momento do pagamento da quantia acordada, visto que, pelo modo unilateral como foram produzidas e por se supor o interesse do colaborador na confirmação do que restou relatado, possível declaração de ineficácia probante do acordo lhe subtrairia os benefícios alcançados.

Ora, qual era a fonte de tanto dinheiro e onde era guardado? Quem realizou o transporte, como foram sacados os recursos e como foram entregues ao suposto intermediário? Como “Tonico” prestava contas dos valores distribuídos e a quem? Por quem passavam as cifras enquanto na empresa, no transporte e na entrega?

Esses são exemplos de questões em relação às quais não houve detalhamento na delação ou na instrução e o delator, no depoimento judicial, tampouco foi devidamente questionado sobre os fatos, reiterando que nada sabia.

Dessa forma, na esteira da jurisprudência dos Tribunais Superiores, as provas carreadas com a denúncia não podem ser consideradas como configuradoras de justa causa para a ação penal, entendida como o lastro probatório mínimo que justifique a manutenção do réu no polo passivo da lide penal.

No aspecto, colho a festejada lição de Gustavo Badaró:

Em razão do caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já significa uma grave 'pena' imposta ao indivíduo, não é possível admitir denúncias absolutamente temerárias, desconectadas dos elementos concretos de investigação que tenham sido colhidos na fase pré-processual. Aliás, uma das finalidades do inquérito policial é, justamente, fornecer ao acusador os elementos probatórios necessários para embasar a denúncia. A noção de justa causa evoluiu, então, de um conceito abstrato para uma ideia concreta, exigindo a existência de elementos de convicção que demonstrem a viabilidade da ação penal. A justa causa passa a significar a existência de um suporte probatório mínimo, tendo por objeto a existência material de um crime e a autoria delitiva. A ausência desse lastro probatório ou da probable cause autoriza a rejeição da denúncia e, em caso de seu recebimento, faltará justa causa para a ação penal, caracterizando constrangimento ilegal apto a ensejar a propositura de habeas corpus para o chamado “trancamento da ação penal”. A razão de exigir a justa causa para a ação penal é evitar que denúncias ou queixas infundadas, sem uma viabilidade aparente, possam prosperar.

(BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 210)

 

Ora, ainda que se cogite que o denunciado poderá demonstrar a sua inocência ao final da instrução processual, são evidentes as pechas morais, sociais e pessoais que afligem o indivíduo pelo simples fato de estar submetido a um processo criminal, de modo que a continuidade de ação penal sem suporte e viabilidade probatória viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção de inocência.

Isto posto, constatada a ausência de justa causa para o prosseguimento da ação, deve ser concedida a ordem para trancar a ação penal por ausência de substrato probatório mínimo de autoria e materialidade sobre os fatos narrados na denúncia.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pela parcial concessão da ordem de habeas corpus para trancar a ação penal n. 0600010-40.2022.621.0160, nos termos da fundamentação.

Comunique-se com a urgência ao Juízo da 160ª Zona Eleitoral.

 

[1]Disponível também em: https://spce2010.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2010/resumoReceitasByCandidato.action?filtro=N&sqCandidato=210000000190&sgUe=RS&nomeVice=null

[2]Disponível também: https://spce2010.tse.jus.br/spceweb.consulta.receitasdespesas2010/resumoReceitasByComite.action?filtro=N&sqComiteFinanceiro=2363&sgUe=RS