REl - 0600001-35.2021.6.21.0024 - Voto Relator(a) - Sessão: 16/12/2022 às 14:00

VOTO

Da Admissibilidade

Preenchidos os pressupostos de admissibilidade recursal, merece ser conhecido o recurso.

 

Das Preliminares constantes nas contrarrazões

Eminentes Colegas, os recorridos apresentam em suas contrarrazões matérias preliminares e questões prejudiciais de mérito, quais sejam: inadequação da via eleita; inépcia da petição inicial por falta de justa causa; inépcia da petição inicial pela ausência de conteúdo eleitoral nos fatos; ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário (decadência da ação); requerimento, pelo Ministério Público, de improcedência dos pedidos na ação 0600372-33.2020.6.21.0024 diante da inexistência de provas de captação ilícita de sufrágio; erro material em certidão do Ministério Público; ilicitude da prova produzida por juízo incompetente, nulidade da prova dela decorrente e inviabilidade de utilizar da prova emprestada; e contaminação da prova decorrente de ato que se caracteriza como ilícito, além de ser tipificado criminalmente (condução coercitiva injusta e sem motivação) (ID 44867781).

Além dessas questões, também são trazidas, na mesma peça, alegações que confrontam o mérito da sentença.

Pois bem, não desconheço que o Tribunal Superior Eleitoral já se manifestou no sentido de que “o interesse recursal pressupõe a sucumbência da parte quanto ao seu pedido, o que se verifica no dispositivo da decisão, e não em seus fundamentos” (Recurso Ordinário Eleitoral n. 060390065, Acórdão, Relator(a) Min. Sergio Silveira Banhos, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 245, Data 26/11/2020) e que a mesma Corte admite "o enfrentamento de matéria arguida pela parte não sucumbente em contrarrazões" (AgR–RO 1136–70, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJE de 22.11.2016; REspe 20459, rel. Min. Og Fernandes, DJE de 14.3.2019).

A Procuradoria Regional Eleitoral, em seu parecer, enfrentou as preliminares e as questões prejudiciais de mérito - com exceção das teses de inadequação da via eleita e inépcia da petição inicial por falta de justa causa e por ausência de conteúdo eleitoral nos fatos, por se confundirem com o mérito -,opinando pela sua rejeição (ID 44969605).

Penso que, à semelhança do que ocorre com o recurso adesivo, o conhecimento das preliminares veiculadas em contrarrazões deve ficar condicionado ao provimento do recurso principal, o que seria hábil a fazer surgir o interesse em recorrer, sob pena de admitir, mesmo em tese, a possibilidade de reforma da sentença em prejuízo da única parte que recorreu.

No caso dos autos, eventual reforma da sentença em prejuízo ao único recorrente, o Ministério Público Eleitoral, somente seria admissível no exame de questão de ordem pública não examinada pelo juízo a quo, o que não é o caso dos autos. Cabe também mencionar que as preliminares em questão foram formuladas durante a tramitação do processo e enfrentadas na sentença.

Dessa forma, deixo de analisar as preliminares e prejudiciais veiculadas em contrarrazões.

DESTACO.

 

As preliminares e questões prejudiciais de mérito devem ser afastadas.

A fim de evitar tautologia, valho-me da atenta análise realizada pela Procuradoria Regional Eleitoral em seu parecer (ID 44969605) quanto à manutenção da sentença em relação a essas teses, bem como sobre a conveniência da análise dos argumentos sobre inadequação da via eleita, inépcia da petição inicial por falta de justa causa e por ausência de conteúdo eleitoral nos fatos, quando da apreciação do mérito da demanda.

Adoto, assim, a fundamentação como razões de decidir:

Os demandados invocam, no item 2.4. das contrarrazões, a preliminar de decadência, argumentando que o feito deve ser integralmente extinto em razão da ausência de formação do litisconsórcio passivo necessário em relação à Vereadora Nara Sirlaine Alegre Piegas, que, segundo a inicial, teve participação essencial nos fatos ilícitos, pois visou prejudicar as investigações e encobrir as ilegalidades supostamente praticadas pela Prefeita Adriane. Nesse ponto, argumentam que, ultrapassados 15 dias após a diplomação dos eleitos, houve o decaimento do direito de Ação, não sendo mais possível essa inclusão no polo passivo, razão pela qual a única alternativa que restava era a extinção do feito sem resolução de mérito.

Tal entendimento não merece prosperar, pois o TSE, recentemente, mudou seu entendimento sobre a natureza do litisconsórcio passivo para ações que veiculam análises de abuso de poder, tendo considerado que a sua natureza é facultativa. Segundo a Corte Superior Eleitoral, esse entendimento foi modulado, em virtude da necessidade de preservação da segurança jurídica, para os pleitos das Eleições de 2018 em diante, situação do caso em análise.

Assim, não há que se falar em decadência, por ausência de litisconsórcio passivo necessário, ante a hodierna jurisprudência da Corte Superior Eleitoral.

A prejudicial de mérito contida no item 3.1 das contrarrazões, de igual maneira, não merece acolhimento.

De fato, não guarda nenhuma pertinência com o presente feito o fato do Ministério Público Eleitoral ter manifestado posicionamento contrário às suas próprias razões iniciais, ao pugnar pela improcedência do pedido formulado na Representação Especial nº 0600372-33.2020.6.21.0024.

Tal ação, que tem como fundamento a suposta cooptação de voto da eleitora Nilciele Nunes Borda, irmã de Cibele Nunes Borda, mediante a entrega de um poste de energia elétrica a ser instalado dentro do imóvel de sua propriedade, não possui nenhuma relação jurídica com os fatos aqui tratados, pelo que a mudança de postura do MP, ante o arcabouço probatório lá produzido, em nada interfere neste caso.

No item 3.2 das contrarrazões, os recorridos discorrem acerca de um suposto erro contido na certidão produzida pelo MP nos autos da Representação Especial nº 0600372-33.2020.6.21.0024 (ID 44867759), pois ao tempo em que declara que CIBELE teria prestado depoimento junto ao MPE em 3 (três) oportunidades, a análise do procedimento NF 00797.001.261/2020 evidencia que a oitiva ocorreu uma única vez (em 13/11/2020). Dizem que é entendem fundamental esclarecer que dois depoimentos de Cibele não foram produzidos na investigação eleitoral, e sim em investigação penal: (i) depoimento de 02/12/2021 – ID 74643818, e (ii) depoimento de 13/12/2021. Sustentam que em todos os depoimentos, na verdade, o Ministério Público Eleitoral estava investigando a Prefeita Municipal, e que, inclusive, no seu segundo depoimento, em 02/12/2021, Cibele já a acusava de crime de peculato, e em 13/12/21 firmava acordo de não persecução penal, sendo que, ao ser ouvida em Juízo no presente processo, negou peremptoriamente que tivesse confessado o crime de peculato, demonstrando ter assinado um acordo de não persecução penal sem compreender os seus termos, e, curiosamente, sendo assistida em todas as ocasiões pelo Advogado da candidatura adversária aos recorridos. Afirmam que tal ponto guarda relação com o tema abordado no item seguinte, que diz respeito à suposta nulidade do procedimento investigativo por violação à prerrogativa de foro.

No item 3.3, os recorridos sustentam que não há dúvida de que a prova emprestada acostada aos autos, que foi utilizada durante todo o depoimento das testemunhas, provém de ordem judicial proferida em inquérito no qual o Ministério Público pretendia investigar a Prefeita Municipal por suposto crime de peculato e falsidade ideológica, para o que ela, como se sabe, tem foro privilegiado.

Em suma, alegam que a prova emprestada utilizada na ação originária encontra-se eivada de vício insanável, uma vez que processada perante juízo incompetente.

A propósito, sugerem que o Ministério Público Eleitoral, embora tenha arquivado a Notícia de Fato nº 00797.001.261/2020, ante a impossibilidade de configuração da captação ilícita de sufrágio, deu continuidade às investigações somente em face dos servidores municipais, ocultando, porém, seu verdadeiro desiderato, que seria investigar a Prefeita Municipal, e desrespeitando, assim, a prerrogativa de foro da mandatária.

De acordo com os recorridos, o interesse em investigar Adriane persistiu mesmo após o arquivamento da NF eleitoral, até porque o MPE, desde o início das investigações, teve acesso à Nota de Empenho nº 6619/2020, referente à compra dos vidros, na qual consta a assinatura do Ordenador de Despesas do Município, que, segundo afirmam, é a Chefe do Poder Executivo Municipal, conforme disposto na Lei Orgânica de Maçambará e diante do entendimento do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Desse modo, afirmam que o Parquet desde o início soube que a Prefeita anuiu com a aquisição dos vidros, mas mesmo assim direcionou as investigações de modo a tangenciar a prerrogativa de foro de Adriane. Asseveram que o interesse investigativo em face da Prefeita Municipal restou cabalmente demonstrado durante os interrogatórios de Cibele, pois o Promotor expressamente a questionou sobre a participação de Adriane nos ilícitos por ela narrados.

Não assiste razão aos recorridos, uma vez que a premissa em que se baseia sua argumentação – de que o MPE, desde o início das investigações, teve conhecimento da participação da Prefeita no ilícito, pois obteve documento que só poderia ter sido assinado pela Chefe do Poder Executivo municipal (Nota de Empenho) – não se sustenta em face do disposto no artigo 65 da Lei Orgânica de Maçambará, indicado nas contrarrazões5. Isso porque não se mostra possível extrair da leitura do citado artigo de lei que tal atribuição seja de exclusividade do Prefeito.

Deveras, dispõe o artigo 65 da Lei Orgânica de Maçambará que compete privativamente ao Prefeito: (...) XXI - administrar os bens e as rendas municipais, promovendo o lançamento, a fiscalização e a arrecadação de tributos. Vê-se que o dispositivo invocado pelos recorridos em momento algum estabelece que o Prefeito é o único agente ordenador de despesa no Município de Maçambará. Determina, na verdade, que compete ao Chefe do Executivo a administração dos bens municipais, sendo as atribuições administrativas, dentre elas a ordenação de despesa, um ato administrativo perfeitamente delegável.

Releva notar, ademais, que não há nenhuma semelhança entre a assinatura da Prefeita, Adriane Bortolas Schramm, constante no Memorando nº 48/2021 (ID 44867529, p. 1), e aquela firmada na Nota de Empenho nº 6619/2020, no campo "Ordenador de Despesa" (ID 44867529, p. 3).

A argumentação de que competiria ao MPE conhecer da suposta exclusividade de atribuição da Prefeita para a ordenação de despesa, de igual forma, não merece ser acolhida. A uma, porque, como dito, não existe determinação legal nesse sentido. A duas porque, mesmo na hipótese de exclusividade da Prefeita para a ordenação de despesas, não seria exigível do agente ministerial o conhecimento irrestrito das normas internas dos munícipios de sua atribuição.

Outrossim, a divergência constante na certidão emitida pelo MPE acerca dos depoimentos firmados por Cibele, ao contrário do aduzido pelos recorrentes, não teve o condão de interferir nas conclusões da sentença recorrida, visto se tratar de mero erro material. Como descrito nas próprias contrarrazões, pela simples análise da prova compartilhada, acostada ao processo originário, verifica-se que, de fato, Cibele depôs em uma única oportunidade na NF nº 00797.001.261/2020, sendo que os outros depoimentos foram colhidos no âmbito das investigações efetuadas em face dos servidores públicos municipais (PIC nº 00797.001.390/2020).

Cumpre referir, ainda nesse ponto, que o questionamento feito pelo Promotor de Justiça sobre a eventual participação da Prefeita nos ilícitos descritos por Cibele é mera decorrência da narrativa da depoente acerca da prática ilícita que teria sido perpetrada pela então candidata (PIC nº 00797.001.390/2020).

Verifica-se, portanto, que a tese de direcionamento das investigações é resultado de meras ilações da parte demandada, não havendo nenhuma evidência concreta nesse sentido. O que se evidencia nos autos, em suma, é que, mesmo arquivando a NF eleitoral, com base na impossibilidade de subsunção dos fatos ao tipo de captação ilícita de sufrágio, já que Cibele não exercia o direito ao voto no Município de Maçarambá, o MPE, ao longo das investigações realizadas em face dos servidores municipais, concluiu que a conduta praticada pela Prefeita Municipal teve reflexos nas eleições de 2020 em Maçambará, cabendo-lhe ajuizar, como fez, a ação constitucional originária, baseada em corrupção e abuso de poder.

Quanto às teses constantes dos itens 3.4 e 3.5 das contrarrazões, pede-se vênia para transcrever excerto da sentença, que adequadamente as abordou, verbis:

(...)

No que toca a preliminar suscitada, acerca de eventual contaminação da prova decorrente da prova de ato que se caracteriza como ilícito, condução coercitiva injusta e sem motivação, de igual sorte não merece prosperar.

A defesa aduz que a prova produzida a partir do depoimento de CIBELE deve ser considerada nula, pois deriva de ato ilícito, já que houve condução coercitiva de forma manifestamente descabida e sem prévia intimação, o que se verificaria da íntegra da notícia crime acostada aos autos pelo próprio MP, razão pela que teria havido uso excessivo da autoridade, a caracterizar crime em tese, conforme previsto na Lei 13.869/19.

Como se sabe, o atual entendimento do STF indica a ilegalidade da condução coercitiva que não se refira ao comparecimento das testemunhas em audiência. Não cabe, portanto, a condução coercitiva de acusado para fins de interrogatório, já que aqui, prevalece os princípios da presunção de inocência e da não autoincriminação.

(ADPF s 395 e 444).

No caso dos autos, contudo, não se revela a ilegalidade do procedimento, conforme tenta argumentar a defesa. Isso porque o MP detém legitimidade para as providências necessárias à elucidação de delitos, inclusive a condução de pessoas para prestar esclarecimentos. No ponto, embora a Defesa omita, Cibele é categórica ao afirmar que se apresentou por livre e espontânea vontade (id 74643818).

Conforme se extrai dos autos, embora Cibele tenha se confundido quanto ao veículo que a encontrou, em momento algum se revela ter sido imposta sua locomoção com algum tipo de ameaça, mas tão somente a indicação dos fatos pelos quais estava sendo convidada a esclarecer e para onde foi por livre e espontânea vontade.

Dessa forma, não se verificando ilegalidade no procedimento adotado, rejeito a preliminar suscitada.

Outra preliminar suscitada pelos impugnados reside em sustentar:

a) a inviabilidade de utilizar como prova emprestada documentos previamente conhecidos, produzidos vários meses antes da juntada;

b) a inviabilidade da juntada realizada fora do prazo concedido; e

c) e a impossibilidade da juntada de prova de forma parcial e desacompanhada de elementos essenciais.

A narrativa da defesa sustenta ser inaceitável que o MPE tenha juntado provas de forma intempestiva e incompleta, como ocorreu com os vídeos juntados em 23 de janeiro (ID 74643815), preexistentes à propositura da ação, bem como a de um relatório parcial de interceptação telefônica, datado de fevereiro e referente a escutas ocorridas de 8 a 12 de dezembro (juntado em maio) – ID 87076506.

Malgrado o esposado, ressalta-se que a juntada dos vídeos aos autos na data de 23 de janeiro, em momento posterior à propositura da ação, se deu antes da efetiva notificação dos promovidos, logo, não há que se ventilar qualquer prejuízo à defesa, tampouco qualquer irregularidade. Sabe-se que há permissibilidade legal para se colacionar documentos a qualquer momento no processo, desde que respeitado o contraditório e não se trate de má-fé da parte que o realiza. Concluo, portanto, ao compulsar os autos, que não fora verificada nenhuma violação ao contraditório, à ampla defesa e tampouco atestado qualquer ato de má-fé pelo promovente desta AIME.

A defesa assevera, também, que o Ministério Público Eleitoral, além de já possuir acesso a todas as escutas ocorridas entre 08/12 e 20/12, antes de propor a ação omitiu esse fato na inicial, além de omitir informações acerca do teor do que se pretendia formar com a prova que já se conhecia, o que a teria prejudicado por contestar sem conhecer os elementos constantes nos supostos inquéritos que serviriam como prova emprestada.

Contudo, o argumento suscitado não merece prosperar, seja porque não há norma legal impondo a necessidade de que a prova compartilhada esteja peremptoriamente anexada à exordial, seja porque não se vislumbra prejuízo à defesa dos requeridos o simples fato destas provas não estarem disponíveis na inicial, visto que o contraditório quanto a este tipo probatório foi devidamente oportunizado.

Nesse sentido, segue aresto do TSE, in verbis:

"PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. VEREADOR. PRELIMINARES AFASTADAS. MANIFESTAÇÃO MINISTERIAL EXTEMPORÂNEA. DOCUMENTAÇÃO ESTRANHA À LIDE.PROVA EMPRESTADA. VIOLAÇÃO AO ROL DE ATOS PROCESSUAIS. MÉRITO. OMISSÃO DE GASTOS COM COMBUSTÍVEIS. ART. 22, § 3º, DA LEI N. 9.504/97. DESAPROVAÇÃO. DESPROVIMENTO. ELEIÇÕES 2016.As questões preliminares foram afastadas. Os prazos conferidos ao Ministério Público Eleitoral, quando atuando como fiscal da lei, não são preclusivos .Possível anexar documentos como prova emprestada quando, em prestígio ao contraditório, é permitido à parte manifestar-se. O surgimento de indícios de omissão de dados na prestação de contas permite novo parecer ministerial pela desaprovação da contabilidade, visto que o prestador teve o ensejo de apresentar esclarecimentos sobre a prova acostada. O candidato adquiriu quantidade expressiva de combustível, distribuído em forma de vales durante a campanha eleitoral. Não há registro da despesa na prestação de contas, em desacordo com as disposições legais de regência. Desaprovação. Provimento negado. (RE n. 391-33, relator Dr. Eduardo Augusto Dias Bainy, julgado em14.11.2017.)

Não se pode olvidar que o parquet, em manifestação nos autos (id 79268041), informou que juntaria os documentos da prova emprestada antes da audiência de instrução, tendo em vista que as diligências ainda estavam em fase de conclusão pelo SISCRIM – Sistema Integrado de Investigação Criminal do Ministério Público, justificando, portanto. Assim, rejeito de igual forma a preliminar Os demandados postulam, novamente, a ocorrência de preclusão sobre a juntada de provas emprestas, porquanto inadmissível o apensamento a destempo destas.

Aqui, reputo conveniente repisar o que já fora argumentado em decisão anteriormente exarada por este juízo (id 79461344), senão, veja-se:

"... Malgrado o "parquet" tenha se pronunciado em momento diverso do supostamente estabelecido, não entendo que sua manifestação deva ser considerada tardia, porquanto, conforme já referido em despacho pretérito, além de não ter sido encerrada a instrução processual, a demanda em tela versa sobre litígio que envolve interesse público.

Inviável e desarrazoado, contudo, prestigiar, no caso in concreto, a mera formalidade em detrimento do que se representa uma ação de impugnação de mandato eletivo (AIME), a qual ocupa uma preferred position em relação às demais ações eleitorais, ante a jusfundamentalidade formal e material gravada pelo constituinte de 1988.

Examinada pelo viés material, salta aos olhos por ser a única ação eleitoral que conta com lastro constitucional para retirar um agente político investido no mandato pelo batismo das urnas, de ordem a mitigar, em consequência, o cânone da soberania popular. O regime jurídico-constitucional da AIME encerra critério substantivo de racionalização dos feitos eleitorais, i.e., trata-se do vetor hermenêutico apto a elidir a ausência de sistematicidade do processo eleitoral e evitar o descrédito da Justiça Eleitoral em razão do atual estado de risco potencial de decisões antagônicas em processos em que há identidade quanto às premissas fáticas, seja porque possuem eficácia interpretativa, ao servir de filtro hermenêutico a guiar a atuação do magistrado, seja porque possuem eficácia negativa, ao obstar qualquer atuação do legislador no sentido de subtrair sua máxima efetividade (FUX, Luiz; FRAZÃO, Carlos Eduardo. Reunião de processos no Direito Eleitoral quando veiculem os mesmos fatos: a proeminência constitucional da Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME). In: Novos paradigmas do Direito Eleitoral. Belo Horizonte, 2016, p. 299-312)..."

Por fim, reforço, sobremaneira, o desacolhimento das preliminares enfrentadas.

 

Ficam, portanto, afastadas as preliminares e prejudiciais de mérito.

 

Do Mérito

Passando à análise do mérito, repriso que o Ministério Público Eleitoral manejou Ação de Impugnação de Mandato Eletivo contra a Prefeita eleita do Município de Maçambará, ADRIANE BORTOLASO SCHRAMM, e o Vice-Prefeito, DÉCIO SILVESTRE BASTIANI DE DAVI, noticiando a prática de corrupção eleitoral e abuso de poder por ADRIANE, em razão da suposta anuência da candidata à reeleição com a entrega de 2,5m² de vidros canelados, pagos com recursos do Município de Maçambará, à Cibele Nunes Borda, após pedido desta, com o claro desiderato de se obter apoio político.

A sentença recorrida reconheceu que a eleitora Cibele recebeu vantagem que caracterizou corrupção eleitoral e que a prefeita forneceu “dinheiro para doação em troca de apoio político”. Vejamos:

A eleitora que recebeu a vantagem declarou com riquezas de detalhes a forma de negociação que culminou com a entrega de vidros pela então candidata à prefeita, integrante da chapa vencedora das eleições, o que se corroborou no curso da instrução com o advento das demais provas.

Nesse sentido, houve, sim, a ocorrência de corrupção eleitoral, visto que esse ilícito abraça todas as condutas desvirtuadas de agentes públicos tendentes a beneficiar determinado candidato na disputa eleitoral, […]

Nesse ponto entendo que merece guarida a insurgência apontada, uma vez que o fato hábil a justificar a interferência da Justiça Eleitoral no resultado das eleições, cassando os mandatos de quem foi eleito pelo povo, deve ser excessivamente grave. No caso, apesar da corrupção encontrar-se formalmente configurada, não vislumbro sua efetiva capacidade lesiva na eleição municipal de 2020.

[…]

No caso dos autos, não entendo que o resultado das eleições no município de Maçambará decorreu da entrega de vantagem pela prefeita Adriane a uma única cidadã, no caso, a Sra. Cibele, que nem sequer eleitora da municipalidade é. Também não há nenhuma prova nos autos de que a ilicitude afigurada nos autos influenciou o eleitorado e gerou desigualdade apta a determinar a realização de novas eleições.

Muito embora a irregularidade praticada pela investigada seja reprovável, tenho que tal fato, desacompanhado de demais circunstâncias, não demonstra capacidade, por si só, de afastar os candidatos eleitos de seus mandatos, sendo esse também o entendimento do TSE e dos tribunais eleitorais pátrios […]

Na hipótese dos autos, apreciando os referidos fatos como uma sucessão de eventos interrelacionados e interdependentes, facilmente se chega a conclusão de que estes não conseguiram afastar a isonomia entre os postulantes no pleito e, por consequência, não desequilibraram a disputa em favor de quem detinha a máquina pública.

[…]

Seguimos, agora, com a argumentação defensiva atinente à inexistência de abuso de poder, veja-se:

[…] Concentro atenção, nesse momento, à efetiva ocorrência do abuso econômico na presente lide, visto que a documentação reunida nos autos indica a ocorrência de abuso do poder econômico pela então candidata Adriane, com o fornecimento de dinheiro para doação em troca de apoio político, tudo em benefício da campanha a reeleição da impugnada. A compra de apoio político constitui manifesto ato de abuso de poder econômico, já que as condutas são praticadas mediante o emprego de aporte financeiro para obtenção de vantagem de cunho eleitoral.

[…]

Por fim, os impugnados aduzem que para fins de AIME deve ser perquirido se a conduta é grave o suficiente para abalar o processo eleitoral, e, na concepção destes, a toda evidência, não seria possível concluir que a normalidade da eleição restaria ferida com a suposta doação de 2,5m² de vidros a uma pessoa que sequer vota no Município, sem pedido explícito de voto, sem qualquer condicionamento, e sem qualquer vinculação ao pleito.

[…]

Aqui, mais uma vez, faz-se necessário pontuar que, apesar de o conjunto probatório inclinar-se claramente no sentido de que houve a promessa e entrega de vantagem à Sra. Cibele, com a irregular utilização de recursos públicos e a participação de servidores da prefeitura para aperfeiçoar o ilícito, a Sra. Cibele, ainda que possuísse título de eleitora no município de Maçambará, não teria, a partir de um único voto, como influenciar o resultado das eleições.

Afora essa questão, verifica-se, ainda, o valor utilizado pela prefeita para fins de concretizar a irregularidade, qual seja: R$230,00 (duzentos e trinta reais). Percebe-se, portanto, que não houve utilização excessiva, antes ou durante a campanha eleitoral, de recursos materiais ou humanos que representem valor de relevante monta buscando beneficiar candidato, partido ou coligação, afetando a normalidade e a legitimidade das eleições, ou seja, referida importância não consegue gerar, outrossim, impacto no resultado do pleito a ponto de alavancar vantagem superior aos réus em detrimento dos outros candidatos que concorreram à eleição.

Ainda que a casuística dos autos possa indicar gravidade, não compreendo esta conduta isolada como ofensiva ao bem jurídico tutelado pela AIME, que é a legitimidade da eleição.

Não se mostra razoável ou proporcional acolher o pedido de impugnação do mandato eletivo obtido por intermédio do voto popular, diante da apuração de prática ilícita de uma única cidadã, que não é eleitora do município. Ato contínuo, não se demonstrou emprego desproporcional de recursos financeiros. Essas circunstâncias mitigam a gravidade da conduta em si, assim como a sua capacidade para interferir na normalidade e na legitimidade do pleito, bens jurídicos tutelados pela ação de impugnação de mandato eletivo.

Nesse cenário, do exame que empreendo sobre a matéria posta em litígio, não encontro elementos de convicção que inspirem um juízo de procedência da postulação autoral, porquanto não se configuram nos autos a existência de proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a sanção que o MPE postula em juízo, ou seja, a cassação dos mandatos dos impugnados.

[…]

Feitas essas considerações, e tudo o quanto esposado até aqui, não encontro no caderno processual, após análise detida de toda a instrução realizada, a existência de gravidade frente ao cometimento do ilícito pelos impugnados, requisito imprescindível para procedência do pedido de cassação em AIME.

 

Para a adequada análise do caso dos autos, é preciso mencionar que, para além da conduta indicada na inicial, outros fatos também foram apurados paralelamente, todos envolvendo familiares da pessoa aqui reconhecida como beneficiária da conduta ilegal, Cibele.

Vários dos depoimentos que constam nos autos mencionam um “poste”, fato investigado na Representação Especial n. 0600372-33.2020.6.21.0024, julgada improcedente em 09.11.21, com trânsito em julgado. Naquela ação, o Ministério Público Eleitoral sustentou na inicial a existência de captação ilícita de sufrágio em razão de ADRIANE BORTOLASO SCHRAMM, DÉCIO SILVESTRE BASTIANI DE DAVID e ALMIR MORAIS DENIS supostamente terem oferecido, prometido e entregue um poste de energia elétrica a ser instalado dentro do imóvel da eleitora Nilciele Nunes Borda (irmã de Cibele) com o desiderato de angariar seu voto. As denúncias envolvendo supostas concessões de benesses à família de Cibele também envolveram episódio com adesivo de campanha.

A sentença proferida nos presentes autos menciona, ao arrolar a prova dos autos, os elementos obtidos em outros processos que apuram os fatos sob a ótica criminal (ID 44867774):

citado diálogo no Messenger, há depoimentos, a exemplo do prestado pela Sra. Valdereza Mafaldo e pelo Sr. Cristian Lopes; há documento atinente ao orçamento acerca do objeto prometido à Sra. Cibele; houve o compartilhamento de provas, uma oriunda do relatório de investigação e análise de interceptações telefônicas produzido nos autos nº5001362-27.2020.8.21.0054, e outra advinda do resultado da Medida Cautelar Criminal de Busca e Apreensão nº 5001371-86.2020.8.21.0054, ambos processos com tramitação na 1ª Vara Judicial da Comarca de Itaqui; nota de empenho emitida pela prefeitura, dentre outras.

 

As mencionadas interceptações telefônicas autorizadas por autoridade judicial foram juntadas aos autos e fornecem um panorama da campanha política de 2020 em Maçambará.

Nelas é possível verificar um aspecto não considerado na sentença recorrida: a relação próxima que a família de Cibele (esta e seus irmãos Nilciele e Caio) mantinha com NEGRO DO BRASIL (José Mário dos Santos), único adversário da recorrida ADRIANE na disputa ao cargo de prefeito no município.

Nilciele Nunes Borda foi inclusive contratada para prestação de serviços para a campanha do opositor dos recorridos (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/candidato/2020/2030402020/88447/210000856697/integra/despesas).

Colho das transcrições da interceptação telefônica (ID 44867550) trecho em que Nilciele e Cibele mencionam que Negro “quer tentar tirar ela [Adriane] de lá de todo custo” e que o candidato teria tentado amedrontar Caio para que este denunciasse Adriane por oferecer dinheiro para colocação de adesivo em carro. Vejamos (44867550 - pág. 31):

NILCIELE: Sim, eu como eu disse pra ela, eu digo, eu não… simplesmente eu vou pegar um advogado particular, vou levar lá e vou falar o que tiver que falar e deu.

CIBELE: E deu.

NILCIELE: Pronto, se o Negro gostou, gostou, se não gostou que adoce.

CIBELE: Pois é.

NILCIELE: Que eu não vou acabar me prejudicando mais por causa dele, pra alegrar ele.

CIBELE: Pois é. Báh, isso aí tá fedendo, guria.

NILCIELE: Não, isso aí tá complicando é pra gente, como diz ela.

CIBELE: É.

NILCIELE: Se é a gente que precisa, é a gente que necessita das coisa ali.

CIBELE: Pois é. É, é o que eu digo, eu dei por encerrado, eu disse, eu não tenho, eu não vou tá prejudicando ninguém, né, Nilciele. Porque eu sou pobre, eles tem dinheiro, né.

NILCIELE: É, é como eu disse pro Negro, "tu tem a tua padaria, tu quer tentar tirar ela de lá de todo custo, mas tu, tem a tua padaria, tem a tua veterinária".

CIBELE: Eu não tenho nada, não posso... Graças a Deus...

NILCIELE: E ele fica, e como eu digo, e ele fica influenciando até com advogado do partido dele, que tem que ser do partido dele o advogado (ininteligível).

[…]

NILCIELE: Que o Negro teve ali e falou pra ele.

CIBELE: Mas Deus que me perdoe.

NILCIELE: Por isso que eu te disse, ele quer tentar ame... amedrontar, sabe? Foi aí que o Caio se revoltou com ele, porque ele quis tentar amedrontar o Caio, se o Caio não falasse nada, se o Caio não... não falasse da Adriane, não dissesse que a Adriane comprou ele por adesivo, que a Adriane deu o dinheiro pra ele, aí ele que ia se prejudicar. Aí ele tentou querer amedrontar e daí se deu de mal, porque o Caio deu um corridão nele.

 

Nas gravações, as irmãs também conversavam sobre as declarações que prestariam no Ministério Público. Em determinada ocasião, Nilciele afirma que fez a solicitação de benefício e esta não foi acolhida pela candidata (ID 44867550 - pág. 36):

CIBELE: Pois é. Pois é, mas daí foi assim ó, que ele me disse assim ó, "tu diz pra tua irmã e pro teu irmão pra não mentirem aqui, pra falar só a verdade que nem a senhora tá falando". Eu disse, "tá bem", e ele, "porque a senhora sabe, isso causa consequência, né, daí eu só quero a verdade, somente a verdade". Daí então que ele disse que tá sabendo que te deram o poste, que a Prefeita deu o poste. Então ele vai querer saber da tua boca se a Prefeita te deu um poste e que o poste já tá no teu terreno. E daí se ela... se foi por voto, ele vai querer saber, né, porque que ela te deu.

NILCIELE: Eu já vou dizer pra ele, vou dizer, eu digo, "olha em nenhum momento ela me deu nada, senhor, eu digo, ela não me deu, eu pedi pra ela, realmente, confesso, eu pedi, mas só que ela foi e me respondeu o seguinte, ela me respondeu que não poderia dar nada por causa das eleição, depois que passasse as eleição era pra mim procurar e eu não quis procurar ela porque eu tava precisando do poste, aí eu resolvi pegar e comprar. Aí eu peguei e comprei o poste parcelado, e digo, e fiz um empenho na Prefeitura dum poste pra... que passe a trinta metro da casa onde eu moro, que aí a RGE exigiu esse outro poste, mas só que esse outro poste vai sair pela Prefeitura sim, esse vai, mas eu fiz o (ininteligível) na Prefeitura do protocolo".

[…]

NILCIELE: É, mas é como eu disse, em nenhum momento ela me deu nada, não tem... fui eu que comprei, tenho os outros material também que eu tô pagando, se o senhor quiser eu lhe mostro, tenho aqui os carnês dos outros também que eu tô pagando.

 

Em outra gravação, Cibele conversa com seu companheiro, Leandro, e mais uma vez afirma a relação de Negro do Brasil com as denúncias (ID 44867550 - pág. 42):

CIBELE: E o Caio Borda? Não falou nada?

LEANDRO: Não, não falou nada, hoje não...

CIBELE: Não, mas vão chamar ele.

LEANDRO: Hoje não, hoje ele não falou nada, ontem eu falei as coisa…

CIBELE: Aí, eu pensando, meu Deus, se esse guri inventar de abrir a boca e entregar seu Negro daí vai feder merda.

LEANDRO: Não fala coisa com coisa o Caio, ele acha que é esperto, (ininteligível).

CIBELE: Tem que deixar quieto.

LEANDRO: Aquela frescura que ele fez de botar foto do Negro, se ele nem saí na caminhonete não saía, botar foto do Negro, depois tirar e botar da Adriane na porta. Aquele mundaréu de gente batendo foto, ah, tudo quem cruzava batia foto. Por isso que hoje em dia não dá pra ti falar bobagem.

CIBELE: Não dá pra falar bobagem.

LEANDRO: Eles metem um... metem um telefone no bolso, chegam perto de ti e ficam... eles ficam te filmando.

 

O relatório da interceptação telefônica ainda menciona “o delito de falsificação da nota fiscal do referido poste de luz”, antes do diálogo entre Cibele e Nilciele (ID 44867550 - pág. 24). Nessa ocasião, fica evidenciado que as irmãs combinavam o que iriam dizer em seus depoimentos, tentavam antecipar quais seriam as perguntas a ser respondidas, como também se constata que Nilciele teria insinuado a Negro que poderia fazer alguma coisa se o candidato fosse seu avalista para compra de material de construção:

NILCIELE: Teve o seu Negro hoje aqui.

CIBELE: É?

NILCIELE: É.

CIBELE: Que ele disse?

NILCIELE: Entrou ali falar com o Caio.

CIBELE: Hum?

NILCIELE: O Caio brabo com ele.

CIBELE: Por quê?

NILCIELE: Diz o Caio, "mas pra mim ela não me deu nada, (ininteligível), o senhor tá inventando lá que ela me deu dinheiro pra tirar adesivo, isso aí é pura mentira, ela não me deu, por que que eu vou tá inventando?".

CIBELE: Tá e por que que ele colocou o adesivo?

NILCIELE: Aí eu não sei.

CIBELE: Isso eles vão perguntar. Eu sei só por causa... eu tenho noção assim ó, se tu fala uma coisa eles, "por que te deu"?

NILCIELE: Eu disse pro seu Negro, eu digo, "Báh, seu Negro, eu digo, o senhor sabe, eu digo, o senhor sabe que eu não tenho condições, eu digo, o senhor tem a padaria, tem o veterinário, eu digo, pra que que tu fez isso? Eu digo, eu confiar do jeito que eu confiei no senhor, trabalhei pro senhor, eu digo, o senhor pegar me botar... eu já tinha lhe explicado, já tinha lhe falado, eu digo, pra que o senhor fazer isso? Eu digo, isso não se faz".

CIBELE: E ele?

NILCIELE: Aí ele ficou. Eu digo, "ó, eu tô muito chateada com o senhor por causa disso, como eu lhe disse, eu lhe expliquei toda a situação, pro senhor pegar e mandar me chamarem lá. Eu digo que o senhor não pode ganhar lá no (ininteligível), quer ganhar agora ela a força. Digo, isso não se faz, a mulher já ganhou o que que o senhor quer? Eu digo, porque depois quem me ferra sou eu. Eu digo, a não ser que o senhor entre de avalista pra mim nas loja e me de os material restante que tá faltando".

CIBELE: (Risos) e ele?

NILCIELE: Não, ele ficou, acho que (ininteligível), "tô muito chateada mesmo e eu nem tô, nem conta comigo, se for presa ou não, qualquer coisa, independente do que der, o senhor nem me venha mais aqui". Eu disse pro Filó, eu não consegui nem comer direito, dizendo pro compadre, eu digo, sabem a situação da gente, por que fazerem isso?

CIBELE: Pois é. Mas, NILCIELE, ele tem tudo lá as coisa.

NILCIELE: Ter, ele não tem, por que como é que ele vai ter o papel? O papel ele não tem, como é que vão pegar ali de dentro da loja do Paulo e levarem?

CIBELE: Não, isso daí acho que não tem, é.

NILCIELE: Não tem como ele ter, e prova ele não tem, que prova que ele tem? Não tem. Não mandei nada pra... pra eles, não foi feito nada de empenho, agora se tivesse saído um empenho, alguma coisa, tudo bem.

CIBELE: Mas do poste ele sabe porque ele me disse. Né? Então já chegou lá nos ouvido dele.

NILCIELE: Mas como eu disse, como é que eu vou botar o outro lá em risco? Agora eu vou ter que descontentar cinco, seis, pra contentar o Negro?

CIBELE: Não, mas lá ele vai te dizer, isso não tem de contentar ninguém, é pra Justiça e tu não pode mentir, a senhora tem que colaborar.

NILCIELE: Pois é, mas e tu sabe o que que é falsificação de nota? Tu sabe o que que dá falsificação de nota?

CIBELE: Pois é...

NILCIELE: E aí, corre risco quem? Ele não pensou quando ele fez isso aí de botar lá? Ele não pensou que prejudicaria a Marla, prejudicaria o Paulo...

CIBELE: Não vê eu, ele disse que se fosse o ano passado, pelas lei eu podia ser presa, repara. É, como eu digo, eu fui de vítima. Daí o Mogaro se meteu e disse, "não, mas ela, tu entende, foi de vítima porque ela pediu voto".

NILCIELE: Desliga isso aí da tomada, tu não me liga isso aí que o guri tá com coisa lá.

CIBELE: "Ela pediu os vidro e daí? A Prefeita deu um joinha e deu, ela recebeu o que ela pediu, mas daí por falcatrua, que não sei o que", eu não tenho nada que ver, né, Nilciele, porque eu não... Daí como me deram os vidro, a Valderez que fez cagada, né, de denunciar.

NILCIELE: Pois é...

CIBELE: Tudo isso ela... não sei o que que ela vai ganhar com isso. E daí eu fui e perguntei pra ele, "tá, Doutor, e eu? Eu levo nos dedo e eles não tão nem aí?" Daí ele me disse assim, "a senhora que se engana, a senhora que pensa". Daí como falei a verdade, a realidade dos fato, não menti nada, ele disse que daí daqui uns quatro, cinco mês, o juiz mesmo vai me chamar e vai perguntar e eu tenho que prestar serviço a comunidade. Só repara, eu de vítima vou ter que prestar por seis mês.

NILCIELE: Tá, Ludmila, guarda as coisa do teu irmão ali, sai, ele tá comendo.

CIBELE: Por seis mês.

NILCIELE: Como eu disse (ininteligível), "ó, isso aí ele não pensou a cagada que vai dar".

CIBELE: Isso vai mexer, vai dar fedor, o Mogaro me disse assim ó, "mas eu achei que uma coisa, e olha, bem diferente, outra semana".

NILCIELE: Facilita a gente se incomoda e não dá nada pra ela.

CIBELE: Não, eu perguntei, ele diz que não. Pra mim ele tem... o Mogaro disse assim ó, que ele tem coisa lá que no momento que ele pegar tudo assim ó, de certo vai cassar os mandato dela, não sei.

NILCIELE: Tá louco.

CIBELE: Hum.

NILCIELE: Mas tipo ele falô ontem de noite já não consegui dormir (ininteligível).

CIBELE: Mas não... não pode ficar assim, né?

NILCIELE: É, mas é que eu penso pro lado não dela, como eu disse, eu não tenho que pensar pro lado dela, eu penso é pro lado da loja.

CIBELE: Mas é só tu dizer assim ó, tu ganhou, ela te deu o poste, "mas não sei, ela me deu, tá lá o poste". Só tu nem fala em nada. "Da onde que saiu o poste?" "Mas não sei". Só sei que ela me deu, mandou por lá, agora da onde que saiu eu não sei", tem que dizer. "Até ela me disse que ia me dar pra me ajudar, eu não pedi poste, não pedi nada, até disse que nem... fazia campanha pro lado contrário", tu tem que dizer.

NILCIELE: Não, no caso o Negro quer que... o Negro quer que leve o papel e o Negro quer que fale da onde que surgiu, como é que foi.

CIBELE: Não, porque daí vai dar muita coisa, né, Nilciele?

NILCIELE: É, eu disse pra ele, eu disse, "olha, seu Negro, não tá... não vai envolver ela porque ela vai... ela pode alegar que ela não deu nada, e como de fato não foi ela que pagou, quem pagou foi o Jober". Eu digo, "ainda tão logo com quem que eu vou tá me incomodando ainda".

CIBELE: Não.

NILCIELE: "O senhor fica numa boa lá e eu como é que fico"?

CIBELE: Nilciele, tu pega e diz assim ó, "ela me deu, disse que ia me dar, me dar uma ajuda", eu não pedi, daí ela... hã... eu disse que eu faço campanha pro outro e ela disse assim que.. queria... olha... tu disse assim, "olha, eu vou ser bem sincera com a senhora, né, eu não voto na senhora, porque eu faço campanha pro outro". Daí ela assim, "não, mas eu vou te dar de coração, pensa com carinho". E me deu por que quis. Daí ele vai te perguntar, "mas como que ela te deu"? "Ah, não sei, só sei que ela mandou me dar e ta lá o poste, agora como assim daí eu não sei, só sei que ela prometeu e ela me deu, tá lá o poste". Porque se tu for, né? Daí depois que mexer, né, num daí...

 

Embora nem todos os diálogos se refiram diretamente aos fatos apurados nesses autos, fica evidente, em sua análise, a pouca credibilidade que merecem as afirmações de Cibele Nunes Borda.

A testemunha chave desse processo também celebrou Acordo de Não Persecução Penal com o Ministério Público (ID 44867544), o qual se reporta ao cometimento dos “fatos subsumidos à hipótese típica prevista no artigo 312, caput, do Código Penal”, visto que a “lNVESTlGADA, em comunhão de esforços e conjugação de vontades com Márcio Crestani Bonorino. Lourício de Almeida Bittencourt e Marilise Bronzoni Gelsdorl, servidores públicos municipais de Maçambará, desviou, em proveito próprio, o valor de R$ 230.00 (duzentos e trinta reais) pertencente ao patrimônio do Município de Maçambará”.

Embora tal acordo mencione o delito de peculato, Cibele, em conversa com sua irmã, deu a entender que o acordo seria para “aprender não mentir”, conforme segue (44867550 - pág. 5):

CIBELE: E o pior é que tu não pode mentir, tu tem que falar a verdade, somente a verdade pra ele. Que ele disse assim: "A senhora diga pra sua irmã pra falar que nem a senhora somente a verdade por causa que senão dá problema". E daí tu acredita que... que daí eu tinha que escolher, ele aliviou, eu não vou ter nome fichado, nem nada. Ele disse se eu queria pagar dois salário mínimo, podia ser a prestação ou trabalhar pra comunidade.

NILCIELE: Minha irmã...

CIBELE: Daí eu disse, "não"... eu olhei pro advogado e disse, "não, trabalho". É cinco hora, uma vez na semana, né, por seis mês.

NILCIELE: Mas e por que isso?

CIBELE: Por seis mês.

NILCIELE: Tá, mas e por quê?

CIBELE: Pois é, e daí não tem nada que eu que sou a vítima, pra ti ver ó. Por causa que é pra aprender não mentir, né?

NILCIELE: Ah, porque tu mentiu a primeira vez? Só por isso?

CIBELE: Claro, isso, mas daí não da nada ele disse, meu nome tá limpo, nem nada, só pra mim trabalhar, daí ele disse assim, só que isso vai custar depois de uns três, quatro mês ele entra.... Eles vão me procurar..

NILCIELE: Mas aí...

CIBELE: Daí vai ter audiência direto com o Juiz e o Juiz vai perguntar, "dona Cibele, aonde que a senhora quer prestar serviço à comunidade"? Daí é pra mim dizer que eu quero ir no postinho por seis mês só, sabe? Uma vez na semana, por seis mês, e assinar tudo direitinho e deu e daí eu não devo mais nada, entende?

NILCIELE: Sim.

CIBELE: É. Deu terminou a história. E ele disse assim, "a senhora diga pra sua irmã também, a mesma coisa"... tu capaz de não dar nada, porque se tu ir mentir... mentir, falar a verdade, né?

 

Pois bem, a petição inicial afirma que a entrega de 2,5m² de vidros canelados, pagos com recursos do Município de Maçambará, à Cibele Nunes Borda, após pedido desta, com o claro desiderato de se obter apoio político, teria configurado a prática de corrupção eleitoral e abuso de poder.

O acervo probatório dos autos comprova que a Vidraçaria Maçambarense (ID 44867501 - pág. 5) forneceu vidros à Prefeitura de Maçambará, estando indicado na nota de empenho que o material seria destinado às janelas da casa do Pomar Municipal (ID 44867501 - pág. 7).

O Ministério Público informou na petição inicial que o material foi retirado na vidraçaria pelo servidor Márcio Crestani Bonorino, diretor cultural do Município de Maçambará.

A defesa argumenta que o vidro foi instalado no local previsto, o que é corroborado pelo depoimento de Cristiane do Carmo Antunes, servidora pública que confirma que recebeu vidros e efetuou a troca por material que estava danificado no Pomar Municipal (ID 44867712 - 12:50 min).

Márcio Crestani Bonorino também teve suas chamadas telefônicas interceptadas (ID 44867550 - pág. 2), sendo que consta nos relatórios que “a investigada MARILISE recebe chamada do também investigado MÁRCIO CRESTANI BONORINO. Percebe-se que MÁRCIO liga para saber dados referentes à investigada CIBELE NUNES BORDA com o objetivo de identificar o domicílio eleitoral dela. MARILISE afirma que CIBELE vota em Itaqui/RS”.

Afora essa evidência de relação entre Márcio e Cibele, nenhum outro elemento dos autos, para além do depoimento de Cibele, confirma que os vidros instalados na casa desta última são aqueles adquiridos pela Prefeitura de Maçambará.

Da mesma forma, a inicial refere que Cibele “entrou em contato com a candidata a prefeita por meio do aplicativo de mensagens Messenger e solicitou-lhe os vidros para sua residência. Adriane Schramm respondeu com um sinal positivo”.

Não há prova da existência dessa conversa nos autos.

A conclusão de que o material pago pela Prefeitura de Maçambará foi instalado em residência particular em troca de apoio político se sustenta apenas nas afirmações de Cibele.

A sentença recorrida assim analisou a prova:

Inicialmente, de rigor refutar a narrativa do réus, no sentido de que a suposta conversa no Messenger seria a única prova da participação de Adriane no ato ilícito. Ora, não se pode considerar o que está sendo posto. Analisando os autos, verifica-se a existência de diversos tipos probatórios que apontam à Sra. Adriane as acusações alegadas.

Afora o citado diálogo no Messenger, há depoimentos, a exemplo do prestado pela Sra. Valdereza Mafaldo e pelo Sr. Cristian Lopes; há documento atinente ao orçamento acerca do objeto prometido à Sra. Cibele; houve o compartilhamento de provas, uma oriunda do relatório de investigação e análise de interceptações telefônicas produzido nos autos nº5001362- 27.2020.8.21.0054, e outra advinda do resultado da Medida Cautelar Criminal de Busca e Apreensão nº 5001371-86.2020.8.21.0054, ambos processos com tramitação na 1ª Vara Judicial da Comarca de Itaqui; nota de empenho emitida pela prefeitura, dentre outras.

As mensagens e áudios anexados comprovam que os servidores Lourício e Márcio estiveram na vidraçaria para adquirir os vidros, tendo o próprio Márcio retirado e feito à entrega para Cibele, ambos com expresso conhecimento de que os materiais seriam pagos com recursos públicos e ordenado pela prefeita em exercício e candidata à reeleição, o que foi organizado internamente por meio da servidora da Assistência Social, Marilize Bronzoni Gelsdorf, a mando expresso da prefeita Adriane.

 

Pois bem, aparentemente o julgador presumiu a existência da conversa no Messenger. Quanto aos depoimentos de Valdereza Mafaldo e Cristian Lopes, casal proprietário da vidraçaria, é de se considerar que Cristian, em seu depoimento (ID 44867590, 44867594, 44867615, 44867645 e 44867654), declarou que todas as suas conclusões e a denúncia foram baseadas nas declarações de Cibele. Também revelou que sua companheira mantinha relação comercial com Negro do Brasil (fornecia doces para a padaria do adversário político da recorrida). Valdereza (ID 44867672 e 44867692) confirmou a relação comercial em seu depoimento, além de se omitir em responder algumas das perguntas formuladas.

O orçamento e a nota de empenho não relacionam diretamente a candidata à Cibele, e as degravações das interceptações telefônicas apenas são aptas a lançar dúvidas sobre a idoneidade e as intenções de Cibele e seus familiares, bem como para comprovar sua relação próxima com o único adversário dos recorridos naquele pleito.

Tais considerações acerca do conjunto probatório destinam-se a demonstrar que a conduta apurada nesses autos, reconhecida pelo juízo a quo, não tem aptidão para atingir, mesmo que minimamente, a normalidade, o equilíbrio ou a legitimidade do pleito.

Passo a traçar breves considerações sobre a ação em exame e sua finalidade.

A Ação de Impugnação de Mandato Eletivo - AIME encontra previsão no § 10 do art. 14 da Constituição Federal, sendo instrumento apto a coibir o abuso de poder econômico, corrupção ou fraude.

Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral, 2016, p. 580) ensina que existem duas espécies de corrupção na seara eleitoral: em sentido amplo e em sentido estrito. A corrupção eleitoral em sentido amplo é objeto da AIME, enquanto a corrupção em sentido estrito é prevista no art. 299 do Código Eleitoral (crime de corrupção eleitoral) e no art. 41-A da Lei n. 9.504/97 (captação ilícita de sufrágio).

Na lição do doutrinador,

Corrupção é o negócio ilícito caracterizado pela relação personalizada entre o corruptor e o corrompido. Corrupção tem sentido largo, mas pode ser conceituada como o oferecimento ou promessa de qualquer vantagem para a prática de ato vedado por lei. Ao contrário do crime previsto no art. 299 do CE, que possui roupagem estrita, para fins de AIME a corrupção não precisa necessariamente ter como finalidade a obtenção ou promessa de voto ou de abstenção. Neste norte, configura-se a corrupção se determinado candidato entrega dinheiro para que alguém, ainda que não eleitor (v.g., porque está com seus direitos políticos suspensos), […]

 

É exatamente o caso dos autos: aqui, como a beneficiária da dádiva não era eleitora em Maçambará e não se imputou na inicial a finalidade de “obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública”, justifica-se que a conduta não tenha sido apurada nos termos do art. 41-A da Lei n. 9.504/97.

A corrupção em sentido amplo é objeto da AIME e esta constitui gênero do abuso de poder político, devendo ser entendida em seu significado coloquial, albergando condutas que atentem contra a normalidade e o equilíbrio do pleito (TSE - Recurso Especial Eleitoral n. 73646, Acórdão, Relator(a) Min. Herman Benjamin, Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Data: 13/06/2016).

Já o abuso de poder configura-se quando o candidato ou a candidata usa de meios ilícitos, atentando contra a legislação eleitoral, com o fim de obter o mandato eletivo. É necessário que as circunstâncias caracterizadoras do ato abusivo sejam graves, com repercussão na normalidade e legitimidade do processo eleitoral, embora não seja imprescindível demonstrar que a conduta tenha potencialidade para alterar o resultado do pleito (ZANGALI, Alexandre Henrique. Ações eleitorais – teoria e prática. Curitiba: Juruá, 2022, p. 239).

Na hipótese, a inexpressiva quantia de R$ 230,00 não possui aptidão para interferir na normalidade e legitimidade do pleito. Registro, apenas para fins de que se tenha um parâmetro dos valores envolvidos na campanha naquele município, que os recorridos declararam arrecadação de R$ 90.841,65 em sua prestação de contas daquele ano (PCE n. 0600330-81.2020.6.21.0024), enquanto seu adversário indicou o valor de R$ 69.300,00 (PCE n. 0600332-51.2020.6.21.0024).

O suposto ato que deu ensejo à propositura da AIME não caracterizou emprego desproporcional de recursos que pudesse configurar abuso e não se revestiu, por suas circunstâncias, de gravidade para comprometer ou desequilibrar o pleito.

Da mesma forma, as interceptações telefônicas demonstram que a pessoa corrompida em nenhum momento cogitou apoiar politicamente a candidatura dos recorridos, assim como o meio empregado para consecução de corrupção e abuso de poder não se mostrou digno de qualquer crédito na hipótese, considerando as circunstâncias dos autos. Também não se comprovou que o ato tivesse tido qualquer repercussão na campanha ou influência sobre o eleitorado do município, afetando sua normalidade.

Ademais, “a cassação do mandato em sede de ação de impugnação de mandato exige a presença de prova robusta, consistente e inequívoca" (TSE, REspe n. 4287650-26, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 10.3.2014).

Como mencionado pelo ilustre Dr. José Osmar Pumes em seu parecer (ID 44969605), “não se mostra razoável ou proporcional acolher o pedido de impugnação do mandato eletivo obtido por intermédio do voto popular, diante da apuração de prática ilícita de uma única cidadã, que não é eleitora do município”.

Assim, não verifico nos autos qualquer elemento que conduza à conclusão de que a normalidade, o equilíbrio ou a legitimidade do pleito tenham sido violados, razão pela qual é de ser mantida a decisão que julgou improcedente a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo.

 

DIANTE DO EXPOSTO, voto por não conhecer das preliminares e questões prejudiciais apresentadas em contrarrazões e, no mérito, por negar provimento ao recurso, mantendo a sentença de improcedência do pedido.