RecCrimEleit - 0600091-39.2021.6.21.0090 - Voto Relator(a) - Sessão: 29/11/2022 às 14:00

VOTO

1. Preliminares.

1.1. Tempestividade.

O recurso é tempestivo e deve ser conhecido. Como asseverado pela d. Procuradoria Regional Eleitoral, o mandado de intimação do réu foi expedido em 20.01.2020 (ID 43138683, fl. 01) e o recurso interposto em 22.01.2020 (ID 43138683, fl. 4, certidão de juntada), dentro, portanto, do prazo legal.

1.2. Prescrição.

Julgo inocorrente.

Conforme a legislação de regência, com o trânsito em julgado da sentença condenatória, a prescrição há de ser regulada pela pena aplicada, 6 (seis) meses de detenção, de forma que se submete ao prazo prescricional de 3 (três) anos, nos termos do art. 110, § 1º, c/c o art. 109, inc. VI, do Código Penal.

Friso que o período referido, de 3 anos, não transcorreu, quer da data do recebimento da denúncia (24.10.2018) e publicação da sentença penal condenatória, verificada com o recebimento dos autos pela serventia cartorária (19.12.2019, certidão fl. 98 do ID 43138633), quer desta data e do presente julgamento.

1.3. Representação do réu. Defensor dativo e Defensoria Pública da União.

Importa analisar uma circunstância dos presentes autos, que diz com o licenciamento do defensor dativo, Felipe de Souza Dias (OAB/RS n. 110.521), dos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Sul, em 30.3.2020 (conforme informado por aquela r. entidade de classe, Ofício n. 012/22, ID 44930109), após a apresentação das razões de recurso, portanto.

Na linha do posicionamento externado pela d. Procuradoria Regional Eleitoral, entendo inocorrente nulidade em virtude da continuidade de defesa técnica, nestes autos assegurada pela presença da d. Defensoria Pública da União, que inclusive se manifestou de forma minudente, ratificando as razões de recurso do então defensor dativo (ID 44868492).

Daí, tenho por assegurado o exercício da ampla defesa, mormente porque após os referidos atos recursais – razões pelo defensor dativo e ratificação pela DPU – não houve evento instrutório, menos ainda decisório, nos presentes autos.

A rigor, a única providência tomada – digitalização do verso da fl. 113 dos autos físicos, incluídos no Pje por deferimento de promoção da Procuradoria Regional Eleitoral, tem como conteúdo das contrarrazões ao recurso, apresentadas pelo Ministério Público Eleitoral na origem em 30.1.2020 (fl. 14 do ID 43138683), antes, portanto,  do já referido licenciamento do defensor dativo.

Não há, dessarte, nulidades a serem declaradas.

2. Mérito.

Antecipo que, no que diz respeito ao mérito do presente processo criminal, o recurso merece provimento. Tanto as razões apresentadas pelo advogado dativo quanto a ratificação apresentada pela Defensoria Pública da União merecem acolhimento, pois, em síntese, os autos não carregam provas suficientes para a manutenção de um juízo condenatório.

Explico.

A sentença vem fundamentada no acolhimento das razões do Ministério Público Eleitoral, e concluiu pela prática de “divulgação de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos”, por parte de SAMUEL DOS SANTOS SAWIAK, crime previsto pelo art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, o qual transcrevo:

Art. 39. A realização de qualquer ato de propaganda partidária ou eleitoral, em recinto aberto ou fechado, não depende de licença da polícia. (Vide ADIN 5970)

(...)

§ 5º Constituem crimes, no dia da eleição, puníveis com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR:

(...)

III - a divulgação de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)

 

Colaciono, ademais, a íntegra da fundamentação da sentença recorrida:

(…)

A materialidade está consubstanciada na comunicação de ocorrência policial (fl. 09), no auto de apreensão (fl. 10) e no material gráfico da fl. 11.

Quanto à autoria, o réu não apresentou a sua versão para os fatos, em virtude da revelia.

Já a única testemunha ouvida em juízo, o policial Bruno Macedo, por sua vez, referiu que no momento da abordagem o réu estava na posse de 101 santinhos, dos quais 4 estavam em sua mão e o restante no bolso. Disse que o réu negou que o material fosse seu, mas referiu ter avistado o requerido entregando os santinhos na porta de acesso lateral ao cartório eleitoral, no colégio.

A conduta configura, em tese, o tipo previsto na Lei n. 9.504/97:

Art. 39. [...]

§ 5º Constituem crimes, no dia da eleição, puníveis com detenção, de seis meses a um ano, com a alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa no valor de cinco mil a quinze mil UFIR:

[...]

III - a divulgação de qualquer espécie de propaganda de partidos políticos ou de seus candidatos. (Redação dada pela Lei nº 12.034, de 2009)

Inicialmente, registro que o tipo penal em voga busca, mormente, resguardar o direito do eleitor de no dia da votação, de exercer a sua liberdade de voto, em um ambiente em que não sofra nenhuma espécie de pressão ou constrangimento por outras pessoas.

No crime de “boca de urna, a propaganda ocorre de forma pessoal, direta, por exemplo: mediante ostentação de bandeiras e estandartes, distribuição de santinhos e panfletos aos eleitores que se apresentam para votar”. (GOMES, José Jairo, Crimes e Processo Penal Eleitorais. São Paulo: Atlas, 2015, pág. 226).

Entretanto, importante deixar assente que o legislador, então, resguardando a liberdade de expressão enquanto direito fundamental, inseriu o dispositivo constante no art. 39-A, caput, do mesmo diploma legal, ponderando, pois a vedação genérica contida no art. 39, §5º, da Lei n. 9.504/97, prelecionando: “É permitida, no dia das eleições, a manifestação individual e silenciosa da preferência do eleitor por partido político, coligação ou candidato, revelada exclusivamente pelo uso de bandeiras, broches, dísticos e adesivos”.

A esse propósito, faz-se mister trazer à colação o entendimento doutrinário:

“A Lei Maior assegura a liberdade de expressão, traduzida em direito subjetivo público de manifestação de pensamento. O que se veda é a realização de propaganda eleitoral, não o exercício do direito de opinião. Este não poderia jamais ser completamente suprimido, sob pena de sucumbir a essência do regime democrático. Isso porque está-se diante de cláusula pétrea, que não pode ceder a lei ordinária. De maneira que a só manifestação individual e silenciosa do eleitor não chega a realizar a figura típica em tela”. [Grifou-se] (GOMES, José Jairo. Crimes e Processo Penal Eleitorais. São Paulo: Atlas, 2015, pág. 227).

Dessa formal, feitos tais esclarecimentos, entendo que, nos termos da prova anexada, restou suficientemente comprovado o delito de propaganda no dia das eleições, não havendo nenhuma afronta ao direito de liberdade de expressão previsto constitucionalmente.

Nestes termos, a prova anexada, consubstanciada no depoimento do policial militar, assentou que o réu estava, no dia da votação, distribuindo material gráfico (santinhos) nas proximidades de local reservado à realização das votações.

E, no ponto, a tese defensiva no sentido de não ter sido individualizada a conduta do acusado também não merece acolhida. O delito em questão – propaganda antecipada – é de mera conduta, sendo desnecessário apurar-se a distribuição em questão influenciou ou não a vontade do eleitor.

Sendo assim, a condenação do denunciado é medida que se impõe.

[…]

 

Entendo, com a devida vênia, que a decisão merece reforma.

De início, friso que, muito embora tenha feito incidir o tipo constante no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97, a fundamentação, inclusive com citações doutrinárias, indica a suposta prática de crime diverso, qual seja, o de “boca de urna”, previsto na realidade no inc. II do mesmo § 5º do art. 39, situação que demandaria (1) o alinhamento da fundamentação da sentença condenatória ao tipo que pretendeu fazer incidir, ou (2) o reconhecimento efetivo de que os fatos descritos configuram a prática de boca de urna, em uma eventual mutatio libelli.

De todo modo, antecedentemente e mais importante, julgo que a sentença não fez constar os elementos de prova nos quais sustenta a condenação do recorrente, até mesmo porque, friso, dos presentes autos não é possível extrair sequer um conjunto indiciário suficiente, quer para que se conclua pela incidência do inc. II, quer para o inc. III, já citados.

O caso é, em suma, de provimento do recurso para inocentar o recorrente por ausência de provas.

E a razão principal do afirmado não é, esclareça-se, o fato de que se trata de único testemunho de policial militar, pois ao agente público deve se conferir, ao menos de forma presumida, toda a credibilidade. Mas não deixa de chamar atenção o fato de que, dos três policiais que participaram da apreensão, apenas um tenha falado em juízo.

Recentemente, em julgamento do dia 17.11.2022, acompanhei a d. Relatora, Desembargadora Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, em caso de fatos semelhantes. Lá, foi mantida a condenação porque, em resumo, havia suporte probatório bem mais denso, em processo no qual todos os integrantes da Brigada Militar participantes (por coincidência, também em número de três) depuseram em juízo, com depoimentos consistentes e alinhados, referindo detalhadamente a ocorrência (RecCrimEleit n. 000036-73.2019.6.21.0134, unânime).

Aqui, diferentemente, entendo dispensável o sopesamento da credibilidade do agente público, pois o conteúdo em si mesmo do depoimento é lacônico, sem detalhes, não estampa a prática da conduta típica prevista no art. 39, § 5º, inc. III, da Lei n. 9.504/97. Note-se que, sobre a conduta de SAMUEL, o policial assim se manifestou em juízo (ID 43138533, fl. 1):

Eu e meus outros dois colegas avistamos ele entregando santinhos para o pessoal que estava entrando dentro do Cartório Eleitoral no portão lateral que é onde dá acesso ao colégio onde é o Rui Coelho, abordamos ele, com ele foram encontrados cento e um panfletinhos, conhecidos como santinhos, do candidato Juliano Ferreira. (Grifei)

 

A testemunha, repito, refere que estava acompanhada de dois colegas e que não conduziram o recorrente para a delegacia de polícia, mas lavraram o termo no próprio local. Sublinho: o réu não foi conduzido, e não há notícia de que lhe tenha sido, por exemplo, franqueada a presença de advogado por ocasião da elaboração do termo. Além disso, os outros dois policiais não foram ouvidos, e não há o motivo da não identificação do “pessoal” para o qual SAMUEL fora “avistado” entregando santinhos.

Ainda, o depoimento do policial militar Cláudio Veiga Cavalheiro refere outras abordagens no mesmo dia, situação que pode ter fomentado a referida ausência de detalhes do depoimento: buscando não confundir as ocorrências, Cláudio (compreensivelmente) talvez tenha preferido apenas referir “ter avistado” SAMUEL distribuindo santinhos.

Não foram, assim, esclarecidas diversas circunstâncias, como por exemplo a distância que os policiais se encontravam de SAMUEL - e aqui a situação é curiosa, pois acaso muito distantes, a ponto de não conseguirem conversar com os supostos eleitores abordados por SAMUEL, igualmente não teriam condições de identificar “santinhos” na mão do recorrente; acaso estivessem próximos, poderiam ter identificado os demais presentes no fato, colhendo testemunhos e identificando eleitores em um local de incontroverso movimento de pessoas, para esclarecer a ilegal divulgação de propaganda.

Aliás, o próprio nome do agente policial consta equivocado na sentença - conforme termo circunstanciado, ID 43138083, fl. 2, o depoente foi Cláudio Veiga Cavalheiro, ao passo que a sentença indica o nome do policial como “Bruno Macedo”, trazendo dúvida razoável sobre em qual prova - ou depoimento - a decisão de primeiro grau afinal de contas se alicerçou.

A d. Defensoria Pública da União bem elucida o quadro dos presentes autos:

[...]

A tese defensiva centra-se na atipicidade da conduta e na insuficiência probatória dos elementos contidos no caderno processual para fins de se assentar a responsabilização criminal do ora recorrente.

De fato, para além das palavras do policial militar ouvido como testemunha, indigitando responsabilidade ao ora recorrente, não há qualquer evidência, colhida em juízo, quanto à efetiva participação do réu na suposta prática do delito em apuração.

Com efeito, a ausência de comprovação quanto ao dolo e quanto à participação mesma em relação ao delito ora em apuração é manifesta.

Conforme consabido, calha salientar que a comprovação do que dito incumbe, invariavelmente, àquele que faz a alegação. Nesse sentido, é dever inafastável, in casu, do Ministério Público Federal, autor da ação penal, demonstrar as indigitações feitas a propósito da delineação das imputações levadas a cabo na inicial. E – despiciendo repisar-se – tais provas devem se produzir na seara devida, no âmbito adequado, em que operantes os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, que é o judicial. Com efeito, é de inteira responsabilidade do Ministério Público comprovar suas alegações acusatórias, e isso deve se refletir no âmbito judicial, por meio de claras confirmações, com base em elementos incontestes e nitidamente dirigidos à responsabilização criminal, o que não se verificou à saciedade in casu. Insuficiente a prova produzida em Juízo pairando dúvidas quanto à participação no crime e intencionalidade em cometê-lo, outra solução não há senão a prolação de decreto absolutório.

In casu, não há provas bastantes para além da palavra do policial militar, sendo, pois, tais elementos insuficientes à confirmação da grave responsabilização criminal.

[…]

No presente caso, apenas há, nos autos extrajudiciais, a informação de que “avistou-se” (“se havistou”, “foi havistado” sic) o denunciado distribuindo:

[…]

Nenhum eleitor foi encontrado juntamente com a acusado, tampouco restou ouvido na condição de testemunha (mesmo que no inquérito), providência mínima a fim de caracterizar, estreme de dúvidas, a distribuição de material e a abordagem na tentativa de convencimento eleitoral. Tal fragiliza sobremaneira a tese acusatória.

Com efeito, portar santinhos não é crime, e a abordagem e distribuição de material não restaram comprovadas para além da dúvida razoável. De fato, percebemos que, no presente caso, é frágil a produção probatória em Juízo, não se havendo, nos autos judiciais, declarações contundentes quanto à intencionalidade e à efetiva participação, por parte do réu, na empreitada delitiva que lhe é imputada. Nesse sentido, claramente insuficientes os elementos para estear um decreto de condenação. Deveras, a partir dos elementos colhidos em Juízo, não há como se considerarem efetivamente demonstradas, com base no que contido nos autos e nos indicativos utilizados no decisum, a participação e a intencionalidade do denunciado na prática do tipo que lhe foi imputado e pelo qual restou injustamente condenado. A prova, nesse sentido, é insuficiente para firmar a certeza de que se necessita para se determinar a grave responsabilização criminal.

 

Ou seja, trata-se de fato pouco esclarecido, sem densidade probante para a construção de um juízo condenatório, de forma que há de militar a presunção constitucional de inocência em favor do recorrente, pois o crime, previsto no art. 39, § 5°, inc. III, da Lei n. 9.504/97, não restou devidamente comprovado.

Nessa linha, lições doutrinárias. Em alentado artigo (Sobre la posibilidad de formular estándarts de prueba objetivos) Marina Gascón Abellán esclarece:

(…) com efeito, a presunção de inocência significa (…) que só se pode condenar se a hipótese acusatória tiver resultado suficientemente confirmada por provas e as eventuais contraprovas tiverem sido refutadas; de maneira que se não for confirmada ou não tiver sido refutadas as contraprovas (se houver dúvidas sobre sua veracidade) a decisão deve ser absolutória, favorável às teses fáticas da defesa. Em poucas palavras: o princípio atribui ao estado de dúvida uma decisão absolutória” (Apud ANDRADE, Flávio da Silva. Standards de prova no processo penal. DOXA: Cuadernos de Filosofia del Derecho, 2005, p. 127-139).

E, ainda, Flávio da Silva Andrade, ao citar GARNER e BLACK, afirma que o Beyond a reasonable doubt (BARD) “é o standard usado por um júri para determinar se um acusado é culpado. (…) Ao decidir se a culpa foi provada ‘além de uma dúvida razoável’ o júri deve começar com a presunção de que o réu o inocente”. (Standards de prova no processo penal – quanto de prova é necessário para deferi medidas cautelares, receber a denúncia, pronunciar e condenar? Ed. JusPodivm, Salvador, 2019, p. 157)

Ora, o objetivo da norma é evitar que no dia da eleição a liberdade de voto do eleitor seja prejudicada. Para longe de ingenuidade, é até possível que SAMUEL DOS SANTOS SAWIAK lá se encontrasse com vistas a praticar divulgação ilegal de propaganda eleitoral, mas tal fato não se encontra cabalmente comprovado nestes autos. O Estado, que detém o monopólio da persecução e apenamento criminais, há de se desincumbir do ônus de retirar dúvida quanto à autoria e materialidade dos delitos que pretende atribuir a cidadão.

Destarte, diante da ausência de provas suficientes a demonstrar o preenchimento do tipo penal, julgo para dar provimento ao recurso interposto por SAMUEL DOS SANTOS SAWIAK.

Diante o exposto, VOTO pelo provimento do recurso, para absolver SAMUEL DOS SANTOS SAWIAK.