REl - 0600498-21.2020.6.21.0077 - Voto Relator(a) - Sessão: 18/11/2022 às 14:00

VOTO

Passo ao exame da preliminar de nulidade da sentença por ilicitude da gravação ambiental de vídeo contida nos autos.

Inicialmente, observo que as sentenças entenderam por comprovada a prática dos fatos narrados nos presentes feitos, os quais foram assim sintetizados pelo magistrado (processo n. 0600489-59, ID 44949967 e processo n. 0600498-21, ID 44950171):

A inicial narra que a eleitora Marieli Quadros Guimarães registrou ocorrência policial dando conta de que o representado Deroci, candidato a Prefeito do Município de Itati, Diovani, candidato a reeleição como vereador, e Eli Bopsin dos Santos Eberhardt, na condição de cabo eleitoral dos candidatos, compareceram em seu local de trabalho em busca de votos, aduzindo que poderiam ajudá-la de diversas formas. O candidato Diovani teria aberto sua carteira e folhado notas de dinheiro, referindo que estava à disposição, alcançando-lhe, ainda, seu número telefônico em panfleto de campanha. Posteriormente, o cabo eleitoral Eli teria comparecido em duas ocasiões na fábrica em que trabalha a comunicante, sempre deixando claro que estava no local por ordem dos candidatos Deroci e Rato.

Na última ocasião em que o cabo eleitoral Eli esteve no local, a comunicante Marieli gravou o diálogo, mídia audiovisual pela qual se constata que a cabo eleitoral Eli alcançou-lhe “santinhos” do candidato Diovani e a quantia de R$ 300,00, mediante a retenção do título da eleitora por Eli, a qual avisou que buscaria a eleitora Marieli e seu marido para transportá-los ao local de votação, quando devolveria os títulos.

Em razão dos fatos, o Ministério Público Eleitoral sustenta, em síntese, que os representados Deroci, Clari e Diovani, respectivamente candidatos a Prefeito, Vice-Prefeito e Vereador do Município de Itati, cometeram captação ilícita do sufrágio em suas campanhas, além de abuso do poder econômico e abuso do poder político, essas últimas duas condutas apuradas nos autos da AIJE nº 0600498-21.2020.6.21.0077.

De fato, a partir de uma acurada análise do presente caso, percebe-se que a conduta dos representados, além de configurar abuso de poder econômico e político, nos termos do art. 22, caput e inciso XIV, da Lei Complementar nº 64/90, também consubstancia a captação ilícita de sufrágio descrita no art. 41-A da Lei 9.504/97, a saber:

Art. 41-A. Ressalvado o disposto no art. 26 e seus incisos, constitui captação de sufrágio, vedada por esta Lei, o candidato doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive, sob pena de multa de mil a cinqüenta mil Ufir, e cassação do registro ou do diploma, observado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990. (Incluído pela Lei nº 9.840, de 1999)

§ 1o Para a caracterização da conduta ilícita, é desnecessário o pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

§ 2o As sanções previstas no caput aplicam-se contra quem praticar atos de violência ou grave ameaça a pessoa, com o fim de obter-lhe o voto. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

§ 3o A representação contra as condutas vedadas no caput poderá ser ajuizada até a data da diplomação. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

§ 4o O prazo de recurso contra decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009)

(...)

 

A condenação está fundamentada em caderno probatório constituído pela gravação de vídeo apontada como ilícita, ata notarial, aparelho celular e cédulas entregues espontaneamente pela eleitora Marieli à Polícia Civil; pelo título eleitoral da eleitora, pelo telefone celular apreendidos pela Polícia Civil em poder da apoiadora de campanha Eli Bopsin dos Santos Eberhardt, e pelos depoimentos extrajudiciais e judiciais colhidos durante a instrução.

Conforme a decisão recorrida, ao justificar a motivação de ter gravado o vídeo em questão (disponível nos autos do processo n. 0600489-59 em primeiro grau, ID 41864361), a eleitora Marieli esclareceu que os recorrentes compareceram ao seu local de trabalho em busca de votos, aduzindo que poderiam ajudá-la de diversas formas.

Na primeira visita, em 10.10.2020, a eleitora afirma que Diovani teria aberto sua carteira e folhado notas de dinheiro, referindo que estava à disposição, alcançando-lhe, ainda, seu número telefônico, escrito em santinho de campanha. Em outras duas oportunidades, o apoiador de campanha Eli teria procurado a eleitora na empresa, sempre deixando claro que estava no local por ordem dos candidatos Deroci (conhecido como Bigode) e Clari Witt.

Por conta disso, na última visita realizada por Eli no local de trabalho de Marieli, em 07.11.2020, 8 dias antes da eleição, a eleitora decidiu gravar a conversa, na qual se observa que Eli, cabo eleitoral dos recorrentes, entrega-lhe santinhos de propaganda do candidato Diovani e a quantia de R$ 300,00, recebendo, em troca, o título de eleitor de Marieli. Eli, no momento, confirma a Marieli que buscaria a eleitora e seu marido para transportá-los ao local de votação, no dia do pleito, quando devolveria os documentos.

A sentença transcreve o diálogo e imagens do vídeo, os quais cumpre reproduzir, e rejeita a alegação de nulidade da prova:

A gravação ambiental em questão captou o cometimento da captação ilícita de sufrágio, conforme transcrição de trechos que seguem:

(…)

ELI: tá, mas não dá nada, eu confio na tua palavra como tu confia na minha. Eu tinha te dito que eu ia te trazer R$300,00 né, ele até queria eu queria trazer mais, mas tipo assim não deu certo hoje de manhã, mas essa semana, se não conseguir essa semana.

ELI: daí como é que vai fazer no domingo, tu vai me avisar a hora que tu desce?

INTERLOCUTORA: assim, eu não, esse domingo eu ganho folga

ELI: não, no domingo de votar

(…)

ELI: daí teu marido já vai junto contigo?

INTERLOCUTORA: eu não sei se ele vai poder ir junto, porque por isso que eu disse, tu me busca e depois ele desce com o resto do pessoal ou com a Lúcia ou com os outros

ELI: tá e aqueles outros dois ali, será que tu consegue falar com eles pra votar pra nós também?

INTERLOCUTORA: tu diz os meus cunhados?

ELI: é

INTERLOCUTORA: ah sim, porque eles tão lá em Curumim

ELI: tu quer que a gente venha aí? tá, mas essa semana quando eles tão em casa, tu quer que a gente venha alí? Que que tu acha?

(…)

INTERLOCUTORA: mas eu posso falar com eles por mensagem e te envio as mensagem

ELI: não ou faz assim tu fala com eles e diz pra eles que vai dar o número deles ou dá o meu pra eles, melhor tu mandar o deles, daí eles conversa e dá meu número, daí eu ligo, quer dizer, dá o deles pra mim e eu ligo e converso com eles

INTERLOCUTORA: e o, outra coisa, tá mais daí no caso o Rato quer que dê uma mão pro Prefeito

ELI: é

(…)

INTERLOCUTORA: mas daí ele não precisa ir lá consultar pra pegar

ELI: não, não pode deixar

INTERLOCUTORA: eu só te do o nome dele

ELI: tu tem que mandar o nome dele completo pra mim

INTERLOCUTORA: tá

ELI: daí eu pego

INTERLOCUTORA: por aqui o da firma tem

ELI: se eu, eu vou te dizer, se eu não tiver acesso com o médico ali ou lá no Arroio do Sal, ninguém mais tem

INTERLOCUTORA: pois é, não é que

ELI: é que o atestado dele vai passar por um médico, tipo um perito, não é isso?

INTERLOCUTORA: não, é que no caso na Vila Unidos tem médico no postinho, daí se ele for lá e o médico ver que ele não tem nada, daí não vai dar atestado, por isso que eu to te perguntando se ele não teria que passar pelo médico pra tu conseguir esse atestado pra ele

ELI: tá, mas eu vou fazer uma ficha como se ele tivesse passado

(…)

INTERLOCUTORA: daí eu não sei se tu quer levar esse aqui ou não, precisa só esse

ELI: não, só esse aqui que daí eu quero pesquisar as mesa as coisa lá

INTERLOCUTORA: sim, isso daí eu não sei onde que é o lugar eu só fiz lá em Osório e eles perguntaram se eu preferia na escola ou não sei aonde, daí eu digo ah pode ser na escola

ELI: é na 40 a tua e a do teu marido sabe se é a mesma?

INTERLOCUTORA: é a mesma porque nós fizemos no mesmo dia

ELI: tá, pode deixar, porque daí a gente puxa lá o nome direitinho

INTERLOCUTORA: tá e deixa eu te perguntar, tu disse que teu marido trabalha ali

ELI: trabalha, 3 anos já ta ali

INTERLOCUTORA: porque de repente a hora que (incompreensível) for levar alguma coisa tu deixa ele avisado que o Cleber vai entregar uma encomenda pra ele pra ele te entrega

ELI: bota num envelope, bem enroladinho num envelope

INTERLOCUTORA: ai eu te mando assim uma encomenda

ELI: como ele, consegue mandar até a Lúcia entregar

INTERLOCUTORA: ah mas e vai que olha

ELI: é verdade manda teu marido. (incompreensível) é que assim, dependendo da hora, ele pega o primeiro horário da manhã, ele sai de casa 5h chega ali 6h, daí tipo assim, ontem ele foi embora umas 4h, daí é bom ele descer ou manda ele leva ali amanhã de manhã

(...) ELI: amanhã ele entra as 11h, se quiser levar de tarde seria melhor

INTERLOCUTORA: tá, então combinemo assim, eu te mensagem “te enviei a encomenda”

Alguns quadros retratam o momento final da negociação, com a retenção do título de eleitor e a entrega de R$ 300,00:

 

 

Os recorrentes alegam que a gravação ambiental de vídeo realizada pela eleitora Marieli é ilícita, clandestina e caracteriza flagrante preparado, por se tratar de uma armação premeditada, e que a filmagem foi realizada em estabelecimento residencial particular, sem autorização dos proprietários, e não em ambiente público conforme refere a sentença.

Além disso, invocam o Tema 979 do STF, que define ser ilícita a prova obtida mediante gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro: “Discussão sobre a licitude da prova obtida por meio de gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, na seara eleitoral”.

No que refere à gravação ambiental, realizada por um dos interlocutores sem o consentimento dos demais e sem autorização judicial, em ambiente público ou privado, mantenho a posição desta Corte que concluiu pela ausência de ilegalidade ou nulidade da prova.

No sentido da licitude da prova, cito os seguintes julgados: REl AIME n. 0600707-22, relator: Des. Federal Luis Alberto D’Azevedo Aurvalle, DJE 23.9.2022, REl 0600469-75, relator: Des. Federal Luis Alberto D’Azevedo Aurvalle, julgado na sessão de 28.11.2021; REl 0600412-08, de minha relatoria, julgado em 10.08.2021; REl 0600581-56, relator: Des. Eleitoral Oyama Assis Brasil de Moraes, da sessão de 20.10.2021, dentre outros.

Os demais argumentos foram devidamente afastados pela decisão recorrida, cujos fundamentos adoto como razões de decidir, merecendo relevo a conclusão a quo de que o Tema 979 “é sensivelmente distinto do presente caso. Com efeito, no caso paradigma - RE 1040515 RG/SE, o Ministro Relator Dias Toffoli reputou como ilícita a prova colhida no processo eleitoral por meio de gravação ambiental clandestina obtida no interior de um veículo, ilicitude essa aplicável a partir das eleições de 2022, por isonomia e segurança jurídica. Já no caso ora em análise, a gravação ambiental foi produzida em estabelecimento comercial aberto ao público, onde Marieli, pessoa responsável pela gravação, estava trabalhando”. Transcrevo:

 

Nesse sentido, a prova produzida, que é coincidente entre esta representação e a AIJE nº 0600489-59.2020.6.21.0077, inclui a gravação ambiental realizada por Marieli quando da compra de seu voto pelos representados, intermediada pelo cabo eleitoral Eli.

No ponto, as defesas técnicas dos representados arguiram a ocorrência de flagrante preparado, sob os fundamentos de que “uma vez que a agente provocadora Sra. Marieli, a qual foi ouvida como testemunha, declara em seu depoimento que agiu premeditadamente com a clara intenção de provocar a formação de provas, restando demonstrada a ocorrência do flagrante preparado” (ID nº 102490511, pág. 1095), e “o que se vislumbra pelo conteúdo das conversas é que a Sra. Eli foi atraída para o local no horário das 16h00, momento em que os empregadores não se encontravam no local. É certo que o ambiente foi preparado (posicionamento do celular, local da conversa, hora certa, etc.)” (ID nº 42625532, pág. 102).

No flagrante preparado, a iniciativa do cometimento do ilícito parte do agente provocador. A vontade do provocado é viciada, o que contamina de nulidade toda a conduta.

Definitivamente, não é o caso dos autos.

A prova produzida dá conta de que o cabo eleitoral Eli Bopsin dos Santos Eberhardt espontaneamente compareceu ao estabelecimento comercial em que trabalhava a eleitora Marieli Quadros Guimarães, alcançou “santinhos” do candidato Diovani e a quantia de R$ 300,00 a Marieli, cujo título de eleitor foi retido por Eli, a qual avisou que buscaria a eleitora Marieli e seu marido para transportá-los ao local de votação, quando devolveria os títulos.

Anteriormente a essa conduta, o representado Deroci, candidato a Prefeito do Município de Itati, Diovani, candidato a reeleição como vereador, e o cabo eleitoral Eli Bopsin dos Santos Eberhardt, já haviam comparecido no local de trabalho de Marieli em busca de votos, aduzindo que poderiam ajudá-la de diversas formas. O candidato Diovani teria aberto sua carteira e folhado notas de dinheiro, informando que estava à disposição, alcançando-lhe, ainda, seu número telefônico em panfleto de campanha. Posteriormente, o cabo eleitoral Eli teria comparecido em duas ocasiões na fábrica em que trabalhava Marieli, sempre deixando claro que estava no local por ordem dos candidatos Deroci e Rato.

Portanto, Marieli realizou a gravação ambiental na data do fato porque, em razão das condutas anteriores dos representados, já poderia presumir o que se sucederia, isto é, a tentativa de compra de seu voto, o que de fato ocorreu. Com efeito, Eli, cabo eleitoral dos representados, espontaneamente foi até onde Marieli trabalhava e alcançou-lhe a quantia de R$ 300,00, além de “santinhos” de Diovani. Essa circunstância por si só revela quão desarrazoada é a alegação defensiva de que “Eli foi atraída para o local”. Ora, Eli é quem, premeditadamente, na condição de cabo eleitoral dos candidatos, dirigiu-se ao local munida de dinheiro em espécie para comprar o voto da eleitora Marieli, a qual, a seu turno, limitou-se a gravar a cena para naturalmente denunciar o ilícito.

Trata-se, pois, de flagrante esperado, porquanto a deflagração do processo executório do ilícito foi de responsabilidade dos representados, intermediada por seu cabo eleitoral, razão pela qual é lícito.

A iniciativa em cometer a captação ilícita do sufrágio partiu dos próprios representados. A eleitora Marieli, prevendo a conduta ilícita, decidiu realizar a gravação ambiental, que é lícita, conforme passo a analisar.

 

Também não se confirma a tese de que a filmagem foi realizada em estabelecimento residencial particular, e não em ambiente público, pois na ocorrência policial a eleitora Marieli afirma que Eli compareceu à fábrica, e nas conversas travadas entre ambas, extraídas do celular da eleitora, verifica-se ter sido realizado o acerto prévio para que Eli fosse ao trabalho de Marieli (ID 44950023 do processo 0600498-21.2020.6.21.0077).

Nesse ponto, colho também o raciocínio da Procuradoria Regional Eleitoral no sentido de que o local da gravação não fornece qualquer expectativa de privacidade, pois a gravação foi feita com o telefone celular de Marieli “na chácara de Samuel”, local de trabalho da eleitora. Reproduzo as elucidativas avaliações contidas no parecer:

Conforme ficou evidenciado pelo depoimento de Marieli, no terreno da chácara ficavam tanto a residência da família de Samuel, quanto a criação de ovelhas e a fábrica do restaurante Mirador (que produzia salgados, pães e itens semelhantes). Marieli alega que intercalava seu trabalho, na residência, na produção de salgados e, por vezes, no restaurante Mirador (esse último, distante dois quilômetros do local).

Interessante notar que no vídeo1 – gravação – Marieli aparece de touca e pede para Eli esperar um pouco porque o forno “apitou”, no sentido de que o pão havia ficado pronto. Inclusive, Eli chega a comentar no vídeo: “que cheirinho tão bom!” (nitidamente referindo-se a cheiro de comida).

Há três pontos a serem considerados nesse cenário.

Primeiro, que o local em que gravado o vídeo não era residência nem dos candidatos, nem do cabo eleitoral que estava entregando o dinheiro.

Segundo, que o local em que gravado o vídeo – reiteradamente chamado pelos depoentes de “chácara do Samuel” – era um local de finalidade mista, no sentido de que englobava tanto uma área residencial quanto uma área negocial (criação de animais e fábrica de salgados).

Terceiro, os elementos que aparecem no vídeo – Marieli de touca e avental, apito de forno e cheirinho de pão – indicam que as pessoas estavam em área negocial e não no interior de residência. Aliás, releva notar que Eli permanece na porta do local, sequer adentrando a área, muito provavelmente porque teria que colocar touca por se tratar de área de alimentação.

 

Além disso, no seu depoimento judicial, Marieli foi ouvida como informante e afirmou que o vídeo foi gravado com seu telefone celular, na chácara de Samuel, em seu local de trabalho.

Relativamente à tese de flagrante preparado, são diferentes as hipóteses de flagrante preparado, esperado e forjado ou provocado, cumprindo transcrever a lição doutrinária:

 

Quando a situação de flagrante sofrer a intervenção de terceiros, antes da prática do crime, é que se poderá falar na existência de um flagrante esperado e de um flagrante provocado, também denominado flagrante preparado.

A principal diferença entre ambos, segundo se verifica na doutrina e ainda na jurisprudência, é que a primeira situação, a do flagrante esperado, é considerada plenamente válida, enquanto a segunda, do flagrante preparado (ou provocado), não.

A rejeição ao flagrante dito preparado ocorre geralmente por dupla fundamentação, a saber: a primeira, porque haveria, na hipótese, a intervenção decisiva de um terceiro a preparar ou a provocar a prática da ação criminosa e, assim, do próprio flagrante; a segunda, porque dessa preparação, por parte das autoridades e agentes policiais, resultaria uma situação de impossibilidade de consumação da infração de tal maneira que a hipótese se aproximaria do conhecido crime impossível (Oliveira, Eugênio Pacelli de Curso de processo penal. 19. ed. rev. e atual. -São Paulo: Atlas, 2015, p. 535)

 

Aponta-se que o flagrante “esperado” é o que representa uma ação policial que, informada sobre a futura ocorrência de um crime, toma as providências para tentar evitá-lo, e conclui com a prisão do sujeito:

O flagrante esperado ocorre quando o sujeito age, independentemente de provocação ou induzimento de quem quer que seja, sendo preso por policiais (ou terceiras pessoas) que, simplesmente, já o aguardavam. Portanto, tendo os policiais conhecimento de que uma infração penal ocorrerá em determinado lugar, colocando-se de atalaia e aguardam a ocorrência da mesma, a hipótese será de flagrante esperado (Rangel, Paulo Direito processual penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 792).

 

No flagrante “preparado”, há uma indução ou provocação de alguém para que um terceiro pratique um crime, o que de fato acontece para que possa ser preso justamente por conta do ato provocado. No flagrante “forjado”, quem comete o crime é a pessoa ou autoridade que simula uma situação ilícita atribuindo a propriedade de algo a alguém, colocando fraudulenta ou violentamente em seu poder objetos ou instrumentos de crime para que seja acusado de autoria (Brito, Alexis Couto de; Fabretti, Humberto Barrionuevo; Lima, Marco Antônio Ferreira. Processo penal brasileiro. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 245).

Assim, no flagrante provocado ou preparado o agente é instigado a praticar o crime, situação em que terceiros facilitam as condições para que a infração seja perpetrada.

O verbete da Súmula n. 145 do STF proíbe o flagrante preparado ou provocado: “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.

No entanto, a doutrina aponta ser imprescindível a conjugação dos dois elementos mencionados na Súmula, sem os quais não há incidência da ressalva nela prevista: “a Súmula exige dois requisitos indispensáveis: preparação e não consumação do crime. Ou seja, se o flagrante for preparado, porém o crime se consumar, haverá crime e o agente pode ser preso em flagrante” (Rangel, Paulo. Direito processual penal. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 791).

No caso dos autos, a prova não gera dúvidas sobre a caracterização de flagrante esperado, pois, na véspera da gravação, dia 06.11.2020, o cabo eleitoral Eli manteve conversas com a eleitora marcando o horário para a compra de votos em troca de R$ 300,00 e outros benefícios, ocasião em que disse que ficaria com o título de eleitor de Marieli e a transportaria, junto de seu marido, para votar na data da eleição (ID 44950023 do processo n. 0600498-21.2020.6.21.0077).

Por fim, registro que Marieli é eleitora do Município de Itati, conforme foi instada a demonstrar no momento da entrega da quantia de R$ 300,00 ao entregar seu título de eleitor, não sendo objeto deste processo judicial a apuração de fraude na transferência ou no cadastramento eleitoral da eleitora.

Com esses acréscimos às razões de decidir lançadas na sentença, mantenho a rejeição da matéria preliminar.

 

No mérito, restou sobejamente comprovada a prática de captação ilícita de sufrágio.

Conforme consta da sentença, tanto nos diálogos contidos nos telefones celulares de Eli e Marieli, na gravação ambiental, ocorrência policial e ata notarial, vê-se que houve contato inicial pelos candidatos Deroci e Diovani, apresentando Eli como sua porta-voz, uma apoiadora de campanha que faria a intermediação da entrega de vantagens em troca do voto, “que ficou responsável pelos contatos subsequentes e cumprimento das promessas realizadas para captação ilícita do sufrágio a fim de obter o voto de Marieli e de outros familiares, especialmente o pagamento do numerário prometido mediante a entrega do título de eleitor de Marieli, documento que, aliás, foi apreendido no interior do veículo de Eli, juntamente com material de campanha do candidato Diovani”.

De se anotar que, nas conversas localizadas nos celulares, Eli deixou claro que a captação de sufrágio se destinava a beneficiar os três recorrentes, tendo sido confirmado por Eli, ao ser indagada por Marieli, que “o Rato quer que dê uma mão pro Prefeito”.

As razões de decidir são irretocáveis acerca da convicção sobre a prática ilícita:

No contexto de cumprimento de mandado de busca e apreensão deferido por este Juízo, apreendeu-se também o celular de Eli, cujos dados foram extraídos.

As mídias extraídas dão conta de que após visitas anteriores de Diovani, Deroci e Eli, esta em mais de uma oportunidade, entre a noite anterior e a madrugada da data do fato (06 e 07/11/2021), Marieli encaminhou mensagem identificando-se e perguntando o horário em que Eli iria encontrá-la e afirmando que estava com “o que” Eli havia pedido para trazer. Eli explica que sairia do trabalho, em Arroio do Sal, às 8h, sendo que precisava “passar na casa dele para pegar o negócio” e ainda passar em sua casa, ajustando-se, ao final, o horário das 12h, em razão do menor fluxo de pessoas (99898203, pág. 314 do download dos autos da AIJE).

Após, Eli enviou mensagem a Aline, companheira do candidato Diovani, dizendo-lhe que havia combinado com este de passar na residência do casal para “pegar o esquema aquele, para ir lá na serra”, em clara alusão ao dinheiro que seria entregue a Marieli, diante do que Aline responde que “tá na mão”, mas pede que Eli tome cuidado (99898203, pág. 316 do download dos autos da AIJE).

Na sequência, Eli retomou o contato e perguntou a Marieli se estava com os títulos de eleitor, diante do que ela respondeu afirmativamente, ressalvando que seu companheiro, Cleber, ainda não havia chegado com o título dele, mas que o traria em tempo (99898203, pág. 318 do download dos autos da AIJE). Em seguida, ocorreu a efetiva entrega do dinheiro, conforme retratado em vídeo.

No dia seguinte, além do ajuste da entrega de atestados e do título de eleitor faltante, Marieli informou Eli de que estava tentando conseguir mais eleitores, diante do que Eli deixa claro que o voto deveria ser pedido também em favor do Prefeito, ou seja, o investigado Deroci. Na sequência, Marieli pergunta a Eli se ela conseguiria mais um pouco da “encomenda”, haja vista ter recebido “aviso de corte”, diante do que Eli esclarece ter levado R$ 300,00, do total de R$ 600,00 que havia sido “combinado”, sendo que os R$ 300,00 restantes somente seriam pagos no domingo, na hora do voto (99898203, pág. 319 do download dos autos da AIJE).

 

O depoimento de Marieli confirma a ilicitude cometida:

Marieli relatou, durante a audiência de instrução, como se deu a prática da captação ilícita de sufrágio, evidenciando o abuso do poder econômico e político por parte dos investigados:

Defesa: A pergunta é o seguinte, Doutor, se em alguma oportunidade, pelo WhatsApp, ela fez contato com o Diovani, pedindo dinheiro pra votar nele.

Marieli: Eu posso...

Juiz: A senhora pode responder pra mim.

Marieli: Não foi pelo WhatsApp, foi pessoalmente. Eu posso dizer como foi meu contato com o ele? Eu estava no meu local de trabalho, na chácara do seu Samuel Reis, quando de repente eu fui surpreendida, porque eu estava de costa para porta, trabalhando, eu fui surpreendida com a presença do ‘Rato’, da Eli, e do candidato à prefeito deles. Eles entraram, eu me assustei, porque eu tava trabalhando, a primeira coisa imediata que eu fiz foi pegar uma touca e alcançar pra eles, porque eles tavam todos no meu local de trabalho, alcancei uma touca e chamei o Samuel. O Samuel veio receber eles, eu não sabia nem de quem se tratava, então eu acho que não tinha o motivo, o porquê de querer me “ah qual motivo que tu fez?”, meu objetivo é um único só, eu faria pra ele, faria pra qualquer um: foi denunciar. O que que aconteceu, eles conversaram ali com o meu chefe, com o Samuel, conversaram um pouco, acho que nem me lembro o que foi que eu ofereci ali, não sei se foi um chimarrão ou se foi uma xícara de café ali mesmo que eu ofereci. Aí o Samuel saiu com eles pela porta dos fundos, mostrou a área, mostrou o território, fez a volta por trás, eu acredito da fábrica, pela parte das ovelhas, e saiu campo a fora. Só que nesse momento ele fez assim, que seria para mim fazer um café, eu entrei na sede, que seria a casa dele, fiz um café, arrumei a mesa, recebi eles. Aí foi onde o Charles, o Charles não, o Charles é meu advogado, o Rato chegou, eu vou chamar assim porque eu não consigo lembrar do nome dele, enfim, ele veio, ele o candidato dele a qual estava acompanhando ele. Eles pararam assim, só pro senhor ter entendimento, é uma entradinha quase igual essa, e aqui tem uma bancada de vidro, o candidato aqui, o prefeito aqui atrás, aí ele aqui assim, o rato aqui, eu aqui na porta barrando a entrada deles e meu chefe aqui. Aí eles conversando, isso que aquilo, ai ele assim pra mim “mas e tu, quem tu é, de onde que tu é?”, aí eu disse assim “ah eu sou daqui, trabalho aqui” “gente nossa” disse o Samuel brincando “ta sempre aqui na volta, ta sempre me auxiliando, sempre me dando uma mão”. Aí ele me perguntou “mas e tu vota aonde?”, aí eu disse assim “olha eu ainda não sei aonde eu vou votar, eu transferi o meu título pro Itati, não sei se eu vou votar, porque, como eu acabei de relatar, meu título era da fronteira aí essa função nunca votei. Enfim, uns segundos antes deles entrarem pra tomar café a Dona Eli disse assim pra mim “o que que tu precisa pra votar pra nós?”, aí eu dei risada, aí ela disse assim “só tu pedir, o que tu quiser eu te dou, o que tu quiser a gente te consegue, remédio, um atestado, uma não sei o que”, aí eu olhei pro meu chefe e dei risada, aí eu disse “ah um atestado seria bom pra tirar uns dias de folga”, aí meu chefe disse pra ele “se tu me der atestado pra ela, eu vou lá na tua casa levar o atestado pagar os dias dela, porque não é justo, ela ta bem, ta aí, pode trabalhar e vocês dão atestado pra ela ficar em casa e eu ter que pagar o atestado”. Porque lá no Mirador a gente já tem um monte de problemas com atestado, e eu fui saber disso bem depois da minha denúncia, que o problema dos atestados deles era porque a Dona Eli era mulher do Felipe, ex funcionários, que agora não trabalham mais no restaurante, que mais botava atestado que trabalhava e era sempre atestado que ele conseguia através do tal de Doutor Marlon e da Eli, tanto que teve uma vez que outros comentários de funcionários que ele oferecia atestado, então isso eu to falando pro senhor coisas que chegaram no meu ouvido, mas a questão do atestado eu ouvi deles, da boca deles, na presença do candidato dele, não se pronunciaram, não se renegaram, não falaram nada e não falaram nada pra dar uma trancada no que ela tava falando. Ai tá, entraram, tomaram café, o Seu Charles entrou, parou assim na bancada, porque ele tem aqui uma bancada, uma meia ilha e uma mesa no outro lado, aí o Seu Charles parou aqui, fez assim ó, pegou a carteira dele...

MP: (inaudível), diz de novo, primeiro sustenta o que (inaudível).

Marieli: Ai desculpa, o Senhor... o Senhor Rato

MP: Rato é o Diovani?

Marieli: Diovani, isso que eu gostaria de dizer, o Senhor Diovani, aí o que que aconteceu, ele parou em pé, assim nessa meia ilha, pegou a carteira dele do bolso e fez assim pra mim, abriu a carteira em cima do balcão e abriu ela, nela tinha uma quantia de dinheiro significante que eu não sei qual era, e foi e puxou um cartão, mas me mostrando notoriamente o dinheiro, dizendo que qualquer coisa que eu precisasse, que eu entrasse em contato com ele, e me passou o WhatsApp dele nesse papel, do cartão, com a letra de punho dele. O que que aconteceu, passou, aí eu comentei com meu marido isso, aí meu marido ainda disse assim “ué por que que ele ia ta te mostrando dinheiro? Tava te achando com cara de rapariga, alguma coisa?”, aí eu deixei passar, até comentei com o Samuel, aí o Samuel brincou comigo “ah por que que tu não disse me da cinquentão me da ‘cemzão’ aí, paga uma luz”, brincou, levou na brincadeira, na esportiva, não foi nada sério, levou na esportiva. Aí em outro momento, a Dona Eli teve lá, não na presença dele e nem do candidato deles, ela teve sozinha lá pra conversar comigo, que disse que o que eu precisasse ela iria me dar só que teria que conseguir mais votos, foi aonde eu disse assim ó “eu vou denunciar”. Eu cheguei e falei pro Samuel, porque lá na residência, você tem um controle de entrada e de saída, aí o que que aconteceu, ela entrou e eu comuniquei ele, que até então não sabia, que tudo o que fiquei sabendo depois, que eles tinham um enredo lá, a Dona Eli com a mulher do seu Samuel, com uns problemas de coisas bem lá do passado. Aí ela teve lá, pegou meu WhatsApp e começou a entrar em contato comigo, aí claro, se ela queria comprar o voto, eu tinha que dar o motivo, aí eu dei uma conta de luz, mostrei uma conta de luz, aí ela pegou e me disse assim “eu vou aí te levar o dinheiro, só que eu quero o teu título, o do teu marido e quero que tu me consiga mais votos” disse que conseguiria exame pra mim, que conseguiria atestado pro meu marido, que conseguiria outras coisas, que o que a gente quisesse ela ia conseguir, que ela só não tinha levado atestado aquele dia porque tava cheio, eu acho que era Arroio do Sal que ela tava trabalhando, que ela não conseguiu pegar com o Doutor Marlon o atestado, mas que ela iria conseguir e me entregaria o atestado no dia da votação pro meu marido, porque eu ainda não trabalhava na Unidos, eu comecei a trabalhar depois das eleições na Unidos. Aí por que que eu fui pra Unidos também, foi por causa dessa confusão toda, Doutor, que se gerou um ato meu, tipo assim eu uso como um grito de liberdade, porque as pessoas tem que se impor, tem que dar um basta, porque se ninguém frear essa gente eles não vão parar, eles se acham o dono do poder, porque eu aqui não tenho pro Senhor tudo aquilo, esse telefone aqui é da minha filha...

Juiz: Tente se ater aos fatos, por favor.

Marieli: Sim, no caso o meu telefone está apreendido, mas muita coisa chegou, tanto inclusive que eu trabalhei com o Samuel, um certo período da noite eu tinha que sair escoltada, porque chegava no ouvido do Samuel, do pessoal do restaurante, que a Cassia ligava pra saber se eu tava lá ou não, porque se me visse ia fazer acontecer, tanto até me acusar que eu estava na casa deles dando tiro e dirigindo, coisa que eu nem sei...

Juiz: Até o ponto do WhatsApp, a senhora estava narrando como os fatos ocorreram.

Marieli: Isso, meu único contato com eles foi esse, já no intuito de denunciar, porque teve, houve a tentativa da corrupção do meu voto já desde inicio com a proposta do atestado, e quando houve, eu não comuniquei o Samuel, tanto que hoje lá na chácara tem câmera na entrada e na saída, tem câmeras dentro da fábrica, tem câmeras na casa, tem câmeras na frente tudo por causa depois disso, pra registrar quem entra, quem sai, o que é feito dentro da fábrica. Aí quando ocorreu isso, deu todo esse transtorno, a Cassia chegou pro Samuel e disse assim “olha a gente vai ter que afastar a Mari porque ta dando muita confusão, a gente daqui a pouco ta com essa guria aqui, vai acontecer alguma coisa e a gente vai se incomodar, porque daqui a pouco ela nem ta fazendo nada, ela nem ta fazendo” e tem gente se aproveitando da situação pra fazer um bolo pra usar ele, pra usar eu pra fazer uma coisa pior. Então assim, o meu intuito foi fazer uma coisa direta com eles, pelo WhatsApp, foi porque houve compra, eles tentaram desde o início, tanto que na frente do Samuel. Aí o que que aconteceu, trabalhei mais uns dias com o Samuel, porque eu fazia só diárias com ele porque não tenho carteira assinada com ele, não tinha vínculo, porque por ser parentesco, né...

[...]

Marieli: Eu posso responder, Doutor. O meu objetivo do contato, foi porque se eu tinha que denunciar, eu tinha que ter prova que eles tavam tentando comprar meu voto, não que eu estava vendendo meu voto, porque se eu quisesse vender eu não teria feito a denúncia, se eu quisesse vender eu não teria entregue o dinheiro Tá respondido?

[...]

MP: Clari Witt, a senhora tem conhecimento se era candidato na época?

Marieli: Não conheço também.

MP: E Deroci?

Marieli: Só pela apresentação do seu Rato e da Dona Eli.

MP: E o Diovani se apresentou pra senhora como ‘Rato’?

Marieli: Exatamente, ele se apresentou assim. E depois o Samuel mesmo me disse “aquele ali é o Seu Rato da madeireira”. Mas enfim, eu vim ter conhecimento deles no dia.

MP: No dia em que eles estiveram na casa do Seu Samuel, que eles perguntaram se a senhora tinha candidato, ele não estava?

Marieli: Estavam, foi ela que me ofereceu atestado.

MP: Certo, e o segundo momento quando ela voltou, ela voltou...

Marieli: A mando dele. Por causa da troca da mensagem da qual eu insinuei que teria as contas de luz, que o meu marido teria mandado mensagem, a respeito daquilo que ele tinha me oferecido pessoalmente de ajuda, de custo, de qualquer coisa que era pra mim entrar em contato, eu fiz exatamente o que ele me pediu, porque eu queria denunciar.

MP: Em que momento lhe ofereceram, efetivamente, dinheiro? No primeiro momento ele mostrou a carteira, aí quando a Eli voltou, nesse segundo momento...

Marieli: A mando dele, dizendo que ela estaria ali, exatamente a mando deles, que eles não iriam entrar em contato pessoalmente comigo, porque eles tavam receosos. Aí ela pegou e me disse assim “vou trazer seiscentos reais, que eu fiz uma continha básica nas tuas contas, dá seiscentos reais. Eu vou te trazer trezentos no sábado...” não me pergunta a data que eu não me recordo, eu sei que era sábado, “e no dia da votação eu te entrego o teu título pra ti votar e te entrego os outros trezentos reais”.

MP: Tá, mas então nesse primeiro dia ela já levou o seu título?

Marieli: Não, no segundo dia que ela veio a mando dele dizendo que (corte no vídeo)...

MP: Tá, mas então nesse dia que estava a dona Eli e que o Rato não estava...

Marieli: Não, desculpa, o meu título ela pegou no dia da gravação.

MP: Tá, então só pra ficar bem claro. No primeiro dia a senhora nem conhecia eles e foram apresentados já como candidatos.

Marieli: Isso, eles se apresentaram como candidatos.

MP: No segundo dia, que a senhora teve contato, foi com a Dona Eli, disse que foi a mando do Rato.

Marieli: Isso, a mando dos candidatos pra entrar em contato comigo, porque eu havia mandado as mensagens, como ele tinha me pedido pra mim entrar em contato com ele.

MP: Tá, daí ela disse que dariam seiscentos reais.

Marieli: Exatamente.

MP: E daí de que forma seria o pagamento e em que momento ela levou o seu título? Só pra ficar bem claro.

Marieli: No momento do sábado, na hora que ela marcou comigo de retornar. Ela teve na quinta e retornou no sábado, na quinta-feira a segunda vez que eu tive contato com ela, ela me disse assim ó “o Rato e o fulano não vão vim falar contigo, nem aqui nem lá, porque eles tão com medo, tem muita coisa acontecendo. Eles me mandaram pra ser porta-voz deles, me mostrou, me falou que tinha umas mensagens de umas conta de luz, eu fiz um cálculo e a gente vai te dar seiscentos reais, só que a gente quer teu título e outros votos que tu disse que teria”. Aí eu disse “não, talvez eu consiga do cunhado, desse e aquele”...

[...]

MP: Aí ela pediu pra que senhora votasse em quem?

Marieli: No candidato a prefeito e vereador dela que ela tava fazendo campanha.

MP: E o candidato a vereador era o Diovane e o Rato?

Marieli: O Diovane, o Rato e o Doraci, foi o que ela me entregou, se eu não me engano, cinco ou seis santinhos deles com o dinheiro em cima, os trezentos reais. E eu peguei fiquei segurando na mão e entreguei o meu título assim, foi essa troca que eu fiz com ela.

MP: Isso foi poucos dias antes da eleição?

Marieli: Acredito que sim, pouquíssimos dias antes.

[...]

MP: E a senhora nunca esteve na casa da Eli?

Marieli: Só que eu nunca tive na casa de Eli, eu não conheço ele pessoalmente, o Felipe eu não sabia que era marido da Eli, fiquei sabendo depois que estourou a bomba.

MP: Mas a senhora conhece pessoalmente a Eli desse momento?

Marieli: Desse momento, do primeiro encontro, acredito que posso dizer como cargo eleitoral, promovendo o Seu Rato e o Seu Deroci. Ela chegou lá junto com eles, apresentando eles, dizendo que ela trabalhava na saúde e que ela tava com eles apresentando os candidatos dela. Eu acredito que seja essa a palavra que eu posso usar.

MP: Dessa forma a senhora conheceu a Dona Eli?

Marieli: Dessa forma. Foi os únicos três encontros que eu tive com ela.

 

Durante a instrução, Eli foi ouvida e confessou ter praticado a infração:

MP: tudo bem, a senhora tá confessando um crime, a senhora está confessando que a senhora praticou corrupção eleitoral, levou dinheiro em troca de voto, é isso? Sim ou não?

Eli: sim

 

O fato é objeto de ação penal deflagrada a partir de inquérito policial instaurado para apurar a prática de corrupção eleitoral (art. 299 do Código Eleitoral), e o Delegado Adriano Keller Pinto, ao prestar depoimento, apresentou o resultado da investigação:

Adriano: O que acontece ali né, ela relata que ela, que a Marieli trabalha na fabrica do restaurante do Mirador, que é na Rota do Sol né, nas margens da Rota do Sol, e ai ela relata que foi procurada pelo...pela Eli, pelo candidato Deroci, o Rato né, o outro candidato a vereador né

[...]

Foram até o local de trabalho dela fazer campanha e negociar votos né, compra de votos, esse que é o resumo da situação toda

MP: Tá mas daí a negociação dos votos, depois houve a parte ali da negociação, houve o efetivo pagamento?

Adriano: Isso, daí teve o pagamento que foi feito nessa...foi dividido o pagamento na realidade ali, ela faz uma filmagem da primeira parcela, e a segunda parcela seria com a comprovação do voto né

MP: Perfeito

Adriano: Teria que filmar ou tirar uma fotografia do dia da votação

MP: E houve retenção de algum documento?

Adriano: Mediante retenção do titulo de eleitor, que aparece na própria gravação.

MP: Ah ta, então eles pagam e retém o titulo de eleitor...?

Adriano: Isso

[...]

MP: Só uma complementação aqui pro Dr, nesse momento que vocês fizeram busca e apreensão, o telefone da senhora Eli também foi apreendido?

Adriano: Sim, foi apreendido

MP: Havia autorização pra acesso?

Adriano: Sim, sim, sim

MP: E vocês chegaram a ver as conversas, se ela conversou com a esposa do Diovani?

Adriano: Daí o policial Freitas fez o relatório, tinha conversas ali (CORTE NO VÍDEO)...o Diovani ali né, a esposa dele, esse é contato da agenda

MP: E elas já sabiam do vazamento?

Adriano: Sim, davam a entender que elas já sabiam do vazamento e até uma expressão ali, eu vou abrir aspas, não querendo faltar com respeito com ninguém “merda são os telefones”

MP: Merda são os telefones, e elas falaram, a policia vai vir atrás?

Adriano: A polícia vai vir atrás.

 

A situação apresenta clara negociação de vantagem com a finalidade de obter o voto, e a conduta se amolda à prática de captação ilícita de sufrágio, infração que, para sua caracterização, prescinde do pedido explícito de votos, bastando a evidência do dolo, consistente no especial fim de agir, na forma do art. 41-A da Lei n. 9.504/97.

A ciência e anuência dos candidatos com os atos praticados por Eli é manifesta, sendo inverossímil a tese de desconhecimento.

Anoto que, conforme a jurisprudência da Corte Superior Eleitoral, inexiste impedimento para que o julgador embase o seu convencimento em provas colhidas na fase inquisitorial, desde que somadas àquelas produzidas durante a instrução processual (TSE - Agravo de Instrumento n. 3270, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 06/05/2021).

Relativamente ao juízo de mérito sobre as demandas, uma vez demonstrada a captação ilícita de sufrágio somente quanto a uma eleitora, ainda que tenham sido mencionados seus familiares e marido, deve ser considerada a ausência de potencialidade lesiva dos fatos para interferir na legitimidade do pleito, bem jurídico tutelado pela ação de investigação judicial eleitoral, conforme escólio de Zilio:

A AIJE visa proteger a normalidade e legitimidade do pleito, na forma prevista

pelo art. 14, § 9°, da CF. Por conseguinte, para a procedência da AIJE é necessária a incidência de uma das hipóteses de cabimento (abuso do poder econômico, abuso do poder de autoridade ou político, utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social e transgressão de valores pecuniários), além da prova de que o ato abusivo rompeu o bem jurídico tutelado, isto é, teve potencialidade de influência na lisura do pleito (ou, na dicção legal do art. 22, XVI, da LC nº 64/1990, a prova da “gravidade das circunstâncias” do ato abusivo).

(…)

O relevante, in casu, é a demonstração de que o fato teve gravidade suficiente para violar o bem jurídico que é tutelado, qual seja, a legitimidade e normalidade das eleições. Vale dizer, é bastante claro que a gravidade como critério de aferição do abuso de poder apresenta uma característica de correlação com o pleito, ou seja, tem-se por necessário examinar o fato imputado como abuso de poder e perscrutar a sua relação com a eleição, ainda que essa análise não seja realizada sob um aspecto puramente matemático. Quando esse novo dispositivo surgiu o TSE já havia superada a equivocada tese que vinculava a potencialidade lesiva com o critério aritmético do resultado do pleito. Em verdade, a potencialidade lesiva já era analisada sob o viés do ato abusivo praticado e sua probabilidade de interferência na legitimidade da eleição. Daí que o inciso XVI do art. 22 da LC nº 64/1990 apenas reforçou esse entendimento pretoriano, assentando que o abuso não é constituído por eventual alteração no resultado do pleito, mas é delineado pela “gravidade das circunstâncias” do ato cometido. Nesse passo, o TSE já anotou que, “ao modificar o art. 22, XVI, da Lei Complementar nº 64/1990, a Lei da Ficha Limpa apenas cristalizou, normativamente, o entendimento anteriormente desenvolvido pela jurisprudência deste Tribunal” (RO nº 418156/MS – j. 13.08.2018 – DJe 20.02.2019).

(Zilio, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 8. ed. rev. ampl. e atual. – São Paulo: Editora Juspodivm, 2020, p. 693-694).

 

A infração, de igual modo, não caracteriza abuso de poder econômico ou de poder político. Ainda que Itati seja município pequeno, de somente 3.267 eleitores, e que o candidato a vereador tenha sido eleito com 169 votos, não há como considerar que a compra de voto verificada nos autos atenda ao requisito previsto no § 9° do art. 14 da Constituição Federal no tocante à AIJE, que se preocupa em assegurar a “normalidade e legitimidade do pleito”.

Portanto, a ação de investigação judicial eleitoral ajuizada merece ser julgada improcedente, com o consequente provimento do recurso interposto nos autos n. 0600498-21.2020.6.21.0077.

A representação por captação ilícita de sufrágio, por sua vez, merece ser julgada procedente, na forma já delineada nas presentes razões de decidir, mantendo-se a sentença, com o consequente desprovimento dos recursos interpostos.

A cassação do diploma expedido ao candidato Diovani Chaves da Silva é decorrência expressa da violação ao art. 41-A da Lei das Eleições.

O dispositivo legal é regulamentado pelo art. 109 da Resolução TSE n. 23.610/19, que estabelece pena de multa de R$ 1.064,10 (mil e sessenta e quatro reais e dez centavos) a R$ 53.205,00 (cinquenta e três mil e duzentos e cinco reais) ao infrator, tendo sido bem assinalado pela Procuradoria Regional Eleitoral que não foi comprovada a participação do recorrido Leonir Hartk nos fatos, exigência para a fixação de multa, dado o seu caráter personalíssimo.

No caso dos autos, a multa foi fixada de modo individual em 20.000 UFIR, equivalente a R$ 21.282,00, e se afigura razoável e proporcional ao ilícito cometido, não tendo sido requerida, nas razões de reforma, a sua redução, ou demonstrada a incapacidade financeira para adimplemento.

O quantum é adequado, mormente porque a negociação em troca do voto envolveu atestados médicos fraudulentos, quantias em dinheiro e transporte no dia do pleito, o voto dos familiares e benefícios ao marido da eleitora.

 

Ante o exposto, afasto a matéria preliminar e VOTO pelo provimento do recurso interposto por DIOVANI CHAVES DA SILVA, DEROCI OSORIO FERNANDES MARTINS e CLARI WITT nos autos n. 0600498-21.2020.6.21.0077, a fim de reformar a sentença e julgar improcedente a ação de investigação judicial eleitoral, e pelo desprovimento dos recursos interpostos no processo 0600489-59.2020.6.21.0077, para manter a sentença que julgou procedente a representação por captação ilícita de sufrágio, determinou a cassação do diploma de vereador de DIOVANI CHAVES DA SILVA, declarando nulos os votos obtidos, e a cassação dos registros de candidatura de prefeito e vice-prefeito de DEROCI OSORIO FERNANDES MARTINS e CLARI WITT, e fixou multa individual no valor de R$ 21.282,00 para cada candidato.

Considero prequestionada toda a matéria invocada nos autos, a fim de facilitar o acesso à instância recursal, e determino que seja realizado o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, por ser inaplicável à espécie o teor do art. 175, § 4º, do Código Eleitoral, por força do disposto no art. 198, inc. II, al. "b", da Resolução TSE n. 23.611/19, dispositivo que foi objeto inclusive de confirmação pelo TSE no RO n. 603900-65.2018.6.05.0000, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJE de 26.11.2020.

Após a publicação do acórdão, comunique-se esta decisão à respectiva Zona Eleitoral, para cumprimento e registro das sanções nos sistemas pertinentes.