AJDesCargEle - 0600181-89.2022.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 07/10/2022 às 14:00

VOTO

Trago a julgamento conjunto a Ação de Justificação de Desfiliação Partidária n. 0600086-59.2022.6.21.0000 e a Ação de Perda de Mandato Eletivo n. 0600181-89.2022.6.21.0000, nos termos do art. 55, § 1º, do CPC, uma vez que possuem a mesma causa de pedir, ou seja, a existência ou inexistência de justo motivo para a desfiliação partidária de Alexandre Wagner da Silva Bobadra do partido União Brasil, sendo evidente, portanto, a conexão entre as demandas.

No mérito, as ações em análise envolvem duas ordens de argumentos, que caracterizariam ou não justa causa para a desfiliação partidária no caso concreto: a) a fusão ocorrida entre o Democratas e o PSL e b) a mudança substancial do programa partidário do União Brasil em relação ao ideário defendido pelo vereador no PSL.

Passo ao exame.

A Lei n. 13.165/15, ao incluir o art. 22-A na Lei dos Partidos Políticos, positivou, em lei ordinária, as hipóteses de justa causa para a desfiliação, sem reproduzir a previsão contida na Resolução TSE n. 22.610/07 a respeito da fusão e da incorporação de partidos, podendo induzir à conclusão de que tal causa teria sido tacitamente derrogada.

Entretanto, pondo em perspectiva o conjunto da legislação que disciplina a matéria e a interpretação sedimentada no TSE sobre as consequências da extinção das agremiações nos procedimentos de fusão e incorporação partidárias, não alterada pela superveniência da Lei n. 13.165/15, considero a fusão como hipótese de justa causa para a desfiliação, com esteio no caput e no inc. I do parágrafo único do art. 22-A da Lei n. 9.096/95:

Art. 22-A. Perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito.

Parágrafo único. Consideram-se justa causa para a desfiliação partidária somente as seguintes hipóteses:

I - mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;

 

Importante ter em conta que, entre a previsão do art. 22-A da Lei n. 9.096/95 e a redação do art. 1º da Resolução TSE n. 22.610/07, há considerável alteração do caput dos dispositivos.

Veja-se o que prescreve a Resolução:

Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.

§ 1º - Considera-se justa causa:

I) incorporação ou fusão do partido;

II) criação de novo partido;

III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;

IV) grave discriminação pessoal.

 

Conforme se extrai do texto normativo original, a hipótese de perda de cargo por desfiliação partidária não demandava a saída do partido pelo qual foi eleito. A expressão “partido pelo qual foi eleito” não constava no dispositivo.

A nova dicção legal foi, inclusive, incorporada ao texto constitucional, a partir da recente EC n. 111/21, que incluiu o parágrafo 6º ao art. 17 da Lei Maior:

Art. 17. (...).

§ 6º Os Deputados Federais, os Deputados Estaduais, os Deputados Distritais e os Vereadores que se desligarem do partido pelo qual tenham sido eleitos perderão o mandato, salvo nos casos de anuência do partido ou de outras hipóteses de justa causa estabelecidas em lei, não computada, em qualquer caso, a migração de partido para fins de distribuição de recursos do fundo partidário ou de outros fundos públicos e de acesso gratuito ao rádio e à televisão.

(Grifei.)

Note-se que, na norma anterior, havia dois incisos objetivos (I e II), que não demandavam maior análise de provas, pois representavam fatos concretos, e dois incisos subjetivos (III e IV), que poderiam exigir uma análise detalhada das circunstâncias fáticas de cada caso.

Entretanto, a redação do art. 22-A da Lei dos Partidos Políticos abrangeu, em seu caput, parte daquelas hipóteses objetivas, ao incluir a expressão “ao partido pelo qual foi eleito”, visto que, na fusão e em parte na incorporação, parlamentares migram automaticamente de sigla, saindo dos partidos pelos quais foram eleitos, os quais deixam de existir, e ingressando na nova agremiação incorporadora ou resultante da fusão de legendas.

Portanto, não houve apenas a extinção dos antigos incs. I e II do art. 1º da Resolução TSE n. 22.610/07; houve também uma inovação do caput do art. 22-A da Lei n. 9.096/95, gerando a necessidade de um trabalho hermenêutico prévio, de avaliação acerca da caracterização da previsão do caput, antes da análise das hipóteses previstas nos incisos.

Ou seja, na literalidade da nova norma, apenas a subsunção do caso à previsão do caput permite avaliar os aspectos subjetivos dos incisos atuais, o que não ocorre no caso em tela, visto que ninguém foi eleito pelo União Brasil.

Como se sabe, a fusão partidária pressupõe a extinção dos partidos originários e a criação de uma nova legenda, que, embora sucessora das agremiações fundidas em certos direitos e obrigações, apresenta um novo nome, um novo CNPJ, um novo estatuto, uma nova sigla, um novo número, novas lideranças e novos programas e ações partidárias.

A fusão dos partidos “a” e “b”, portanto, os extingue e cria uma nova agremiação. A lei dos partidos é clara quanto a isso:

Art. 29. Por decisão de seus órgãos nacionais de deliberação, dois ou mais partidos poderão fundir-se num só ou incorporar-se um ao outro.

(...).

§ 4º Na hipótese de fusão, a existência legal do novo partido tem início com o registro, no Ofício Civil competente da sede do novo partido, do estatuto e do programa, cujo requerimento deve ser acompanhado das atas das decisões dos órgãos competentes.

Se um novo partido é criado, é porque os anteriores evidentemente são extintos. E toda a organização é feita a partir da vontade e decisão dos órgãos nacionais das agremiações, o que também deve ser considerado como fator relevante para eventual aplicação de justa causa.

Diante disso, a solução da controvérsia passa pela redação expressa do caput do art. 22-A da Lei n. 9.096/95, cuja inteligência está também incorporada ao art. 17, § 6º, da CF/88, consoante o qual: “perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito”.

Assim, o parlamentar requerente não pleiteia a desfiliação “do partido pelo qual foi eleito”, no caso o PSL, já não mais existente, mas de partido diverso, que lhe submete a novo projeto, novas lideranças, novo número etc.

O caput do art. 22-A da Lei n. 9.096/95 permite concluir que a fusão autoriza a desfiliação partidária sem perda do mandato eletivo, uma vez que o parlamentar requerente não foi eleito pelo partido ao qual está presentemente filiado.

Assim, uma interpretação literal da norma expressa no caput do art. 22-A da Lei dos Partidos, portanto, deixa clara a sua inaplicabilidade ao caso em tela.

Já em uma interpretação teleológica, não chegaríamos a outro resultado, uma vez que a norma do art. 22-A da Lei dos Partidos deverá ser lida em conformidade com os princípios constitucionais que a guiam, como o princípio democrático e o princípio da soberania popular.

Portanto, fica claro que os partidos aos quais os vereadores resolveram se filiar, considerando sua ideologia, nome, estatuto, programa etc., deixa de existir, formando-se um novo partido, criado conforme a vontade exclusiva do órgão nacional:

Art. 29. Por decisão de seus órgãos nacionais de deliberação, dois ou mais partidos poderão fundir-se num só ou incorporar-se um ao outro.

§ 1º No primeiro caso, observar-se-ão as seguintes normas:

I - os órgãos de direção dos partidos elaborarão projetos comuns de estatuto e programa;

II - os órgãos nacionais de deliberação dos partidos em processo de fusão votarão em reunião conjunta, por maioria absoluta, os projetos, e elegerão o órgão de direção nacional que promoverá o registro do novo partido.

 

A adoção do caráter nacional dos partidos, fruto do Código de 1945 e mantida no atual texto constitucional, não pode justificar o abandono do princípio democrático e tampouco deve permitir ao legislador e ao Poder Judiciário interpretá-lo de forma a concentrar poderes nos órgãos nacionais.

O caráter nacional dos partidos não busca a concentração de poderes na cúpula, mas apenas evitar a existência de partidos regionais, como ensina Mezzaroba:

Na verdade, com a imposição do princípio do caráter nacional buscou-se, fundamentalmente, impedir a formação de partidos com simples programas regionais ou locais, como eram, por exemplo, as organizações políticas da primeira República brasileira. Com efeito, aqueles partidos republicanos regionais identificavam-se mais com facções do que propriamente com o espírito de verdadeiros partidos políticos. (MEZZAROBA, Orides, Partidos Políticos. Curitiba, ed. Juruá, p. 25)

 

Neste contexto, não se pode desconsiderar que a fusão aqui discutida, realizada nos termos do art. 29 da Lei dos Partidos Políticos, limitou-se a uma discussão de seus órgãos nacionais. Ainda que seja esta a forma prevista em lei, é necessário reconhecer que se trata de uma decisão de cúpula que afeta diretamente todos os filiados do partido, que não podem ser obrigados a aceitá-la. Se a cúpula decide realizar a fusão, cabe ao filiado o direito de manter-se ou não no partido.

Não se pode presumir, igualmente, que o novo programa partidário tenha sido objeto de intenso debate em todas as instâncias da agremiação, sendo resultado de um consenso entre filiados de ambos os partidos. Ao contrário, tal concepção ignora o déficit democrático e de participação dos filiados nos rumos das grandes agremiações, as quais são, como notório, encabeçadas por “caciques políticos” ou pelos diretórios nacionais, com pouco ou nenhuma influência das esferas menores de organização partidária.

Os partidos, como as associações em geral, também devem obediência ao princípio democrático, em sua vida interna, como bem ensina a professora Eneida Desiré Salgado:

(...) em face das funções que exercem o tratamento constitucional com relação aos partidos é peculiar. Se lhes são asseguradas sua livre criação, fusão, incorporação e extinção, impõe-se, em contrapartida, o respeito à soberania popular, ao regime democrático, ao pluripartidarismo e aos direitos fundamentais da pessoa humana (art. 17, caput). Certo é, no entanto, que a deferência a esses valores, principalmente a democracia e os direitos fundamentais – que não são exclusivos da arena política – devem ser observados por todas as associações, principalmente por aquelas que exercem função pública, como é o caso dos partidos.

(SALGADO, Eneida Desiré. Os partidos Políticos e o Estado Democrático: A tensão entre autonomia partidária e a exigência de democracia interna, in SALGADO, Eneida Desiré e DANTAS, Ivo. Partidos Políticos e seu regime jurídico, Curitiba, ed. Juruá, p. 139).

 

Ainda nesse sentido:

Nem os partidos políticos, nem os sindicatos, nem outras organizações privadas que cumpram função pública podem se furtar à plena observância do conteúdo do princípio democrático – a elas também se estendem a realização dos valores da liberdade e da igualdade. Trata-se da eficácia horizontal do princípio democrático em sua inteireza (SALGADO, Eneida Desiré. Princípios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral. Tese de doutorado, UFPR, 2010, p 345).

 

Assim, não se pode exigir de vereadores, como no caso em tela, a fidelidade a um novo partido nascido de uma decisão de cúpula, da qual não participaram e nem foram consultados, ainda que a mesma tenha ocorrido na forma da lei.

Tal questão é especialmente relevante em Estados Federados, onde deve ser respeitada a autonomia local. Assim, se cabe aos órgãos nacionais extinguir os partidos e criar um novo, é evidente que poderão os demais membros da agremiação, não consultados para essa decisão, muitas vezes adversários ou sem qualquer identidade no nível local, tomar outro rumo e buscar uma nova agremiação.

Não por outro motivo, são inúmeras as ações que vêm chegando ao Poder Judiciário, em todo o país, decorrente da evidente insatisfação com a decisão de cúpula tomada, que extinguiu os partidos pelos quais os candidatos se elegeram.

Desse modo, é necessário compatibilizar a autonomia dos partidos políticos para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre sua organização e funcionamento, assegurada no art. 17, caput e § 1º, da CF/88, com os direitos e expectativas mantidos por seus mandatários eleitos, igualmente tutelados pelo arcabouço de direitos fundamentais, pelo regime democrático e pelo pluripartidarismo, expressamente positivados como condicionantes à liberdade partidária, in verbis:

Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:

I - caráter nacional;

II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes;

III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;

IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei.

§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.

 

Quanto ao ponto, colho a doutrina de Augusto Aras, em sua clássica obra sobre fidelidade partidária, atualizada, revista e ampliada por Ezikelly Barros:

A despeito de a incorporação ou fusão e a criação de novo partido – previstas nos incisos I e II, § 1º, art. 1º, da Res.-TSE n. 22.610/2007 – não terem sido contempladas no rol previsto no § único, art. 22-A, LPP, como motivos relevantes que autorizam a desfiliação partidária sem a consequência ou sanção da perda do cargo ou mandato eletivo, essas hipóteses de justa causa estão amparadas pelo art. 17, caput e § 1º, da Constituição Federal.

Afinal, a efetividade dos princípios constitucionais da liberdade e da autonomia partidárias sustentam a desfiliação partidária ocasionada pela incorporação ou fusão e criação de novo partido sem que haja a perda do cargo ou mandato eletivo, não se admitindo qualquer óbice à sua efetividade por norma infraconstitucional, sobretudo por envolver cláusula pétrea.

[...].

A incorporação e a fusão de partidos políticos – previstas no art. 17, caput, da Constituição Federal – constituem, à luz da liberdade e da autonomia asseguradas pela Magna Carta, hipóteses de justa causa para que o eleito possa se desfiliar sem a consequência ou sanção da perda do cargo ou mandato eletivo por ato de infidelidade partidária.

Essas hipóteses de justa causa admite, ainda, uma interpretação extensiva àquela prevista expressamente no art. 22-A, inc. I, da LPP, em virtude de a incorporação ou a fusão de partido político acarretar, em maior ou menor dimensão, uma mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário da agremiação pela qual o trânsfuga foi eleito.

(ARAS, Augusto. Fidelidade partidária – efetividade e aplicabilidade. 2ª edição. Atualizada, revista e ampliada por Ezilelly Barros: Editora GZ, 2021, págs. 548-551)

Portanto, seja por meio de uma interpretação literal, seja por uma interpretação teleológica, o art. 22-A, caput e inc. I, da Lei n. 9.096/95 permite a desfiliação da requerente.

Nessa linha, trago recente julgado do TSE, que, embora dispondo sobre hipótese de incorporação, bem estabelece que a extinção da agremiação e adoção de uma nova principiologia caracteriza a mudança substancial do programa partidária, independentemente de qualquer cotejo formal entre textos estatutários:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PERDA DE MANDATO ELETIVO. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE. INCORPORAÇÃO DO PARTIDO REPUBLICANO PROGRESSISTA PELO PATRIOTA. JUSTA CAUSA. MUDANÇA SUBSTANCIAL DO PROGRAMA PARTIDÁRIO. DESPROVIMENTO.

[...].

6. Conforme destacado, consta que o Partido Republicano Progressista (PRP) foi incorporado pelo Patriota nos autos da Petição 0601953-14/DF, julgada em 28/3/2019.7. A hipótese efetivamente alegada encontra amparo no art. 22-A, parágrafo único, I, da Lei 9.096/1995, que considera justa causa para a desfiliação partidária a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário. No caso, inegável que a incorporação de um partido em outro fulmina toda ou, quando menos, substancialmente, a ideologia da agremiação incorporada que, afinal, deixa de existir. 8. Agravos Regimentais desprovidos.

(TSE, PETIÇÃO CÍVEL nº 0600027-90, Acórdão, Relator (a) Min. Alexandre de Moraes, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 24, Data 17/02/2022) (Grifei.)

 

No voto condutor, assim consignou o Relator do caso, Ministro Alexandre de Moraes:

Nesse passo, a alegada revogação tácita do art. 1º, § 1º da Res.-TSE 22.610/2007 – que previa de forma expressa no inciso I a hipótese de incorporação ou fusão de partido político como justa causa para a desfiliação partidária (ADI 4583) em razão de ter a matéria sido tratada no art. 22-A na Lei 9.096/95, acrescentado pela Lei 13.165/2015, não ampara o autor, pois forçoso reconhecer que o parlamentar pertencente ao partido incorporado, ao fim e ao cabo, encontra-se em situação jurídica semelhante a hipótese normativa relacionada a ‘mudança substancial do programa partidário’.

Na mesma linha de raciocínio o judicioso parecer ministerial, no sentido de que ‘não há como escapar da conclusão de que o requerido fora submetido a uma mudança substancial de programa partidário, já que o programa e estatuto do PRP já não existiam mais, encontrando-se submetido às normas e ao ideário de outra agremiação’.

 

Por pertinente, cabe reproduzir, igualmente, excerto do esclarecedor voto lançado pelo Ministro Carlos Horbach no mesmo julgamento (sem grifos no original):

Esta Corte, interpretando esse aspecto específico da Constituição, estabeleceu que a incorporação, pura e simples, e a fusão de partidos políticos eram justa causa para desfiliação, assim como a criação de novos partidos. Tais hipóteses eram contempladas no inciso II do § 1º do art. 1º da Resolução n. 22.610, enquanto que a hipótese de “mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário” era contemplada no inciso III do mesmo dispositivo.

É verdade que houve uma sucessão legislativa aqui. Houve a introdução de um dispositivo novo na Lei Orgânica dos Partidos Políticos, a Lei 9.096/1995, que acabou alterando um pouco essa disciplina normativa. Entretanto, parece-me que a interpretação originária dessa Corte é a que deve prevalecer, é a que deve se projetar na solução do caso concreto em julgamento. A incorporação, por si só, e a fusão de partidos já geram uma série de consequências políticas ensejadoras da desfiliação, consequências essas que transcendem, até mesmo, o que está posto nos estatutos.

O mero cotejo dos estatutos dos partidos fundidos não é referencial, a meu ver, suficientemente idôneo para afirmar se há, ou não, uma incompatibilidade de orientação política. E é possível recorrer-se a um exemplo histórico, que é bastante significativo. Trata-se da experiência do tradicional Partido Comunista Brasileiro que, na década de 60, sofre uma dissidência com a criação do PCdoB. Se os estatutos desses dois partidos – PCB e PCdoB – fossem cotejados, certamente haveria uma identidade total, ou quase absoluta, em suas normas; mas haveria uma dissonância total de orientação política, não haveria uma identidade de ideias.

Esse simples exemplo demonstra que a mera análise do estatuto não é um elemento adequado para se afirmar que uma fusão ou incorporação gera uma incompatibilidade apta a embasar a desfiliação.

Deve-se buscar, na minha compreensão um referencial objetivo E o elemento objetivo que se tem é o elemento da fusão ou da incorporação pura e simples.

 

Finalmente, também acompanhando o Relator no referido caso, sintetizou o Ministro Luís Roberto Barroso:

(...) considero, no entanto, que a incorporação de um partido por outro, ou a fusão entre partidos, constitui um fato político relevante que deve permitir ao parlamentar que esteja filiado a qualquer um deles opte por não integrar a nova agremiação que se forma, ou diluir-se em uma agremiação anteriormente existente.

 

A Corte Superior foi novamente provocada a se pronunciar sobre o tema, nos autos da Consulta n. 0600540-58.2021.6.00.0000, sob a relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, na qual, dentre outras indagações, a autoridade consulente questiona: “A fusão e a incorporação podem ser consideradas como mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, para fins de desfiliação partidária por justa causa?”.

Embora ainda esteja pendente o julgamento do feito, o parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral, de lavra do Vice-Procurador-Geral Eleitoral Paulo Gustavo Gonet Branco, sufraga o entendimento majoritário exposto na Petição Cível n. 0600027-90, explicitando que:

O quarto questionamento, indagando se a fusão e a incorporação podem ser consideradas justa causa para desfiliação, anota-se que o Tribunal Superior Eleitoral já explicitou ser “inegável que a incorporação de um partido em outro fulmina toda ou, quando menos, substancialmente, a ideologia da agremiação incorporada que, afinal, deixa de existir”, e em outro precedente, esclareceu que o entendimento somente encontra aplicação quando o trânsfuga “pertença ao partido político incorporado, e não ao incorporador”.

 

Na mesma senda, diversos Tribunais Regionais Eleitorais, em casos envolvendo a fusão entre PSL e Democratas, têm acompanhado o posicionamento sufragado pela Corte Superior, entendendo que a fusão partidária, resultando na extinção dos partidos originários e composição de novo estatuto, implica substancial modificação do programa partidário, consoante ilustram as seguintes ementas:

AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO DE DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA. MUDANÇA SUBSTANCIAL DO PROGRAMA PARTIDÁRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. artigo 22–A DA LEI Nº 9.096/1995. PROCEDENTE O PEDIDO. 1.Preliminar: juntada de documento em fase de alegações finais. Documento preexistente à propositura da ação. Não comprovação de motivo impeditivo da sua juntada oportuna. Inteligência do art. 435 do CPC. Não conhecimento. 2.Mérito: – a disciplina legal acerca da justa causa para a desfiliação partidária, sem perda de mandato eletivo, possui assento constitucional no § 6º do art. 17 da Constituição Federal, regulamentado pela Lei nº 9.096/95 em seu art. 22–A. – quando dois ou mais partidos políticos se fundem para criar um terceiro completamente novo, deixam de existir em sua formatação original pois, assim como seus estatutos partidários, são cancelados do universo jurídico. – Em que pese a fusão entre partidos não ser mais, de pronto, justa causa para desfiliação de seus membros, em razão da revogação tácita da Resolução nº 22610/2007/TSE, entendo que as consequências dela decorrentes justificam a desfiliação de seus membros, sem perda de mandato. – A fusão de partidos gera incompatibilidades de orientação política que certamente sobrepujam as normas estatutárias. Seria temerário afirmar que o exame pormenorizado das modificações regimentais é referencial suficientemente idôneo para afirmar categoricamente se há, ou não, divergências inconciliáveis, pois, para tanto, seria necessário a valoração subjetiva deste juízo. Nesse sentido, comungo do mesmo entendimento do e. Ministro Carlos Horbach de que, para identificação da justa causa prevista no parágrafo único do artigo 22–A da Lei nº 9.096/1995, imperioso um referencial objetivo aqui representado pela fusão pura e simples. – A discriminação pessoal capaz de ensejar a desfiliação partidária deve ser comprovada em atos ou fatos concretos, em situações específicas que demonstrem claramente as divergências alegadas, o efetivo alijamento do filiado e a influência direta de tais situações no exercício do mandato, o que não ocorreu in casu. – Ação julgada PROCEDENTE.

(TRE-MG - AJDesCargEle: 06001742220226130000 UBERLÂNDIA - MG 060017422, Relator: Des. Cassio Azevedo Fontenelle, Data de Julgamento: 17/08/2022, Data de Publicação: 23/08/2022) Grifei.

 

AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO DE DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA. ELEIÇÕES 2020. VEREADOR ELEITO.FUSÃO DE PARTIDOS ORIGINANDO UM NOVO PARTIDO. NOVAS DIRETRIZES. JUSTA CAUSA. TUTELA DE URGÊNCIA DEFERIDA.DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. PEDIDO PROCEDENTE PARA DESFILIAÇÃO COM PRESERVAÇÃO DO MANDATO ELETIVO. 1 –Não há negar que a fusão partidária, com a consequente extinção dos partidos que se fundiram, implica substancial modificação da ideologia e do programa partidário antes observado pelos partidos originários. 2– Reconhecimento da justa causa para desfiliação com preservação do mandato eletivo conquistado nas urnas. 3– Pedido julgado procedente.

(TRE-GO - AJDesCargEle: 06001275920226090000 GOIÂNIA - GO 060012759, Relator: DES. JULIANO TAVEIRA BERNARDES, Data de Julgamento: 07/04/2022, Data de Publicação: 20/04/2022)

 

AÇÃO DE DECRETAÇÃO DE PERDA DE MANDATO ELETIVO – ELEIÇÕES 2020 – VEREADOR ELEITO – Preliminar de carência da ação – Afastada – Fusão de partidos políticos – Agremiações deixam de existir para dar lugar a um novo partido – Mudança substancial do programa partidário – Hipótese de justa causa para desfiliação – Artigo 22–A, inciso I, da Lei nº 9.096/1995 – Improcedência da ação.

(TRE-SP - AJDesCargEle: 06001287020226260000 RESTINGA - SP 060012870, Relator: DES. MAURICIO FIORITO, Data de Julgamento: 14/06/2022, Data de Publicação: DJE - DJE, Tomo 115)

 

Ação de Justificação de Desfiliação Partidária. Justa causa. Fusão partidária. Mudança substancial do programa partidária. Previsão expressa na Lei nº 9.096/1995. Ocorrência. Pedido procedente.

I - As regras que disciplinam a justa causa para desfiliação partidária possuem assento no § 6º do art. 17 da Constituição Federal e no art. 22-A na Lei nº 9.096/1995; II - A partir da edição da Lei nº 13.165/15, inserindo o art. 22-A na Lei nº 9.096/1995, houve a revogação tácita do § 1º do artigo 1º da Resolução TSE nº 22.610/07. Precedente STF; III - A fusão partidária encerra hipótese de mudança substancial do programa partidário, pois as ideologias originárias dos partidos que resolvem se unir deixam de existir, dando espaço a um novo estatuto, com ideários, princípios, filosofias e regras próprias; IV - Pedido de desfiliação por justa causa procedente.

(TRE-RO - PJE N. 0600059-49.2022.6.22.0000 - Relator: JUIZ EDSON BERNARDO ANDRADE REIS NETO- ACÓRDÃO N. 52/2022 - j. 11 de abril de 2022)

 

AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO DE DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA. ELEIÇÕES 2020. VEREADOR ELEITO. JUSTA CAUSA. FUSÃO DE PARTIDOS. CRIAÇÃO DE UM NOVO PARTIDO. MUDANÇA SUBSTANCIAL. FIDELIDADE PARTIDÁRIA. ARTIGO 17, § 1º DA CF. ARTIGO 22-A DA LEI Nº 9.096/1995. PARTIDO PELO QUAL FOI ELEITO NÃO EXISTE MAIS. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE PARA DECLARAR A EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A DESFILIAÇÃO SEM A PERDA DO CARGO ELEITO.

1. Na hipótese de fusão partidária, dois ou mais partidos deixam de existir para formar um terceiro completamente novo, ou seja, os estatutos dos partidos de origem são cancelados, nos termos do art. 50 da Resolução TSE nº 23.571/2018.

2. Com o surgimento de uma nova grei, mesmo fruto de fusão, vislumbra-se a existência de valores, objetivos, crenças e princípios políticos próprios de cada ideologia política formando-se um novo estatuto comum a partir dos partidos que resolveram se fundir, e com ele também verificam-se novos projetos que podem sim afetar diretamente as posições ideológicas defendidas anteriormente pelo requerente na antiga agremiação, que não mais existe.

3. Se nasceu um novo estatuto e sobretudo novos líderes para conduzir esse novo partido, ocorreu no caso "mudança substancial do programa partidário", sendo a hipótese do inciso I do parágrafo único do artigo 22-A da lei nº 9.096/1995.

4. A fusão partidária tem por consequência inequívoca à dissonância total de orientação política entre as antigas greis com a nova e, sobretudo inexistente identidade de ideias, nascendo novos precedentes filosóficos e bases ideológicas independentes, de forma que a fusão "constitui um fato político relevante que deve permitir ao parlamentar que esteja filiado a qualquer um deles opte por não integrara nova agremiação que se forma". (Ministro Luís Roberto Barroso - TSE- PEtCiv 27-90) 5. Procedência da ação para declarar a existência de justa causa para a desfiliação sem a perda do cargo eleito em razão.

(TRE-MT; Processo n. 0600053-48.2022.6.11.0000; Relator: DES. ELEITORAL LUIZ OCTÁVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO; Relator Designado: DES. ELEITORAL ABEL SGUAREZI, Cuiabá, julgado em 20.05.2022)

 

No âmbito deste Tribunal Regional Eleitoral, o entendimento restou recentemente acolhido, por maioria, em composição deste Pleno com a participação da ilustre Desa. Eleitoral Kalin Cogo Rodrigues, tendo proferido o voto de desempate o eminente Presidente Francisco José Moesch, na linha da seguinte ementa de minha relatoria:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE JUSTA CAUSA PARA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA SEM PERDA DO MANDATO ELETIVO. VEREADOR. FUSÃO. RECONHECIDA MUDANÇA SUBSTANCIAL NO PROGRAMA PARTIDÁRIO. ALTERAÇÃO DE IDEOLOGIA. EXTINÇÃO DO PARTIDO PELO QUAL O PARLAMENTAR FOI ELEITO. ART. 22-A, CAPUT, DA LEI 9.096/95. DÉFICIT DEMOCRÁTICO E DE PARTICIPAÇÃO DOS FILIADOS. CONFIRMADA TUTELA PROVISÓRIA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

1. Ação declaratória de justa causa para desfiliação partidária sem perda do mandato eletivo, ajuizada por vereador eleito em face de partido político, com fundamento na mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, tendo em vista a fusão entre agremiações. Deferida tutela provisória de urgência.

2. A fusão entre partidos políticos caracteriza, por si só, uma mudança substancial nos programas políticos e ideológicos das agremiações fundidas, com criação de nova sigla, sob novos princípios, novas posições ideológicas e novas lideranças, justificando, assim, a desfiliação partidária, sem a perda do mandato. Nessa linha, recentes julgados do TSE e de Tribunais Regionais Eleitorais. Na hipótese, mudança substancial do programa partidário por meio da alteração de ideologia. Em contraposição ao ideário do antigo partido do demandante, a nova agremiação adotou posição denominada "social liberalista", elemento suficiente para a justa causa, conforme precedente do TSE.

3. O art. 22-A, caput, da Lei 9.096/95 permite a desfiliação com justa causa, pois, numa interpretação literal, o requerente não pleiteia a desfiliação “do partido pelo qual foi eleito”, uma vez que este foi extinto, mas do novo partido, resultado da fusão. Ao fazer surgir uma nova agremiação, a fusão posicionou o parlamentar requerente em vínculo de filiação com legenda pela qual não foi eleito, justificando a desfiliação sem perda do mandato. Incorporada ao art. 17, § 6º, da CF/88 a inteligência da referida norma. Em uma interpretação teleológica, a norma do art. 22-A deve ser lida em conformidade com os princípios constitucionais que a guiam, como o democrático e o da soberania popular. Existência de déficit democrático e de participação dos filiados nos rumos das grandes agremiações. Assim, a fusão realizada nos termos do art. 29 da Lei dos Partidos Políticos limitou-se a uma discussão de seus órgãos nacionais e, ainda que seja esta a forma prevista em lei, trata-se de uma decisão de cúpula que afeta diretamente todos os filiados do partido, que não podem ser obrigados a aceitá-las, cabendo-lhes o direito de manter-se ou não na agremiação.

4. Procedência da ação. Confirmada tutela provisória.

(TRE-RS; AJDesCargEle 0600136-85.2022.6.21.0000, Relator: DES. ELEITORAL CAETANO CUERVO LO PUMO, acórdão de 05.07.2022)

 

Ainda que, diante de todo os exposto, entenda desnecessária a análise textual dos estatutos partidários para o deslinde do caso, cabe mencionar que, em recente julgado, o Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina efetuou o cotejo dos diferentes ideários partidários, concluindo, ao cabo, que houve mudança substancial do programa partidário do extinto PSL em relação ao atual União Brasil, consoante a seguinte ementa:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE JUSTA CAUSA PARA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA – VEREADOR ELEITO NAS ELEIÇÕES DE 2020 - FUSÃO DE PARTIDO POLÍTICO - MUDANÇA SUBSTANCIAL DO PROGRAMA PARTIDÁRIO – IDEAIS CONFLITANTES – ART. 22-A, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO I, DA LEI Nº 9.096/95 – PROCEDÊNCIA.

A fusão de partidos políticos não constitui, por si só, justa causa para a desfiliação partidária, uma vez que o art. 22-A da Lei 9.096/1995 revogou o § 1° do art. 1° da Resolução TSE n. 22.610/2007. A mudança substancial do programa partidária, no entanto, é justa causa para a desfiliação, a qual restou demonstrada no caso concreto.

REQUERIMENTO DE INGRESSO NOS AUTOS FORMULADO PELO DIRETÓRIO ESTADUAL – DESNECESSIDADE – PARTIDO REPRESENTADO NESTE FEITO PELO DIRETÓRIO NACIONAL – CARÁTER NACIONAL DAS AGREMIAÇÕES POLÍTICAS – ART. 17 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E ART. 5º DA LEI DOS PARTIDOS POLÍTICOS – INDEFERIMENTO.

PEDIDO DE CONDENAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ – EXERCÍCIO DO DIREITO DE AÇÃO POR PARTE DO AUTOR – INEXISTÊNCIA DE INTENÇÃO DE ALTERAR A VERDADE DOS FATOS – AFASTAMENTO.

CONCLUSÃO:

PROCEDÊNCIA DA AÇÃO, COM RECONHECIMENTO DA JUSTA CAUSA PARA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA SEM A PERDA DO MANDATO ELETIVO - REJEIÇÃO DO PEDIDO DE CONDENAÇÃO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. (TRE-SC; PROCESSO n. 0600056-40.2022.6.24.0000, ACÓRDÃO de 11/04/2022, Relator: JUIZ ZANY ESTAEL LEITE JUNIOR, unânime)

 

Por oportuno e enriquecedor ao presente debate, transcrevo trecho da judiciosa análise procedida no voto condutor do aludido julgado, no âmbito do Tribunal Regional Catarinense (grifos no original):

Ressalto que, embora os Estatutos do PSL e do União sejam muito semelhantes, os estatutos não são a única fonte para aferir-se a mudança substancial do programa partidário. Aliás, os estatutos, por sua natureza, estabelecem basicamente normas internas, sendo que seus ideais, ou seja, sua ideologia, vai além deles.

Dentre os principais pontos que revelam a mudança substancial do programa partidário entre o PSL e o União Brasil, destaco.

  •  

    PSL

    União Brasil

    Ideais do PSL (https://psl.org.br/opsl/#nossos-ideais):

     

    j) combate à censura, ao constrangimento e aos desequilíbrios morais e sociais decorrentes do discurso “politicamente correto”;

    [...]

    l) combate à apologia da ideologia de gênero;

    m) combate aos privilégios decorrentes de “quotas” que resultem na divisão do povo, seja em função de gênero, opção sexual, cor, raça, credo;

     

    Item 10 do Manifesto do União Brasil (https://dem.org.br/wp-content/uploads/2021/10/BOOK-148x210mm-Manifesto_Uniao_BRASIL.pdf):

     

    Firme posicionamento contra qualquer espécie de discriminação e preconceito quanto à religião, sexo, raça, orientação sexual ou qualquer outra particularidade da condição humana. A fecunda manifestação de nossas diversidades deve ser valorizada e estimulada, com a promoção permanente dos valores fundamentais da tolerância, do respeito mútuo e da solidariedade.

    Manifesto do PSL (https://psl.org.br/psl_cappen/manifesto)

    “O Estado na nossa concepção deve se afastar ao máximo da condição de “Grande Pai” deixando de cuidar de todo mundo, porque nesses casos todos se sentem exonerados de suas responsabilidades sociais.”

     

    Ideais do PSL (https://psl.org.br/opsl/#nossos-ideais):

     

    g) redução do tamanho do Estado, em todos os seus níveis e esferas, a fim de torná-lo mais ágil e eficiente, bem como menos corrupto;

    h) garantia de prestação de serviços públicos de qualidade e de eficiência nas áreas de saúde e educação;

     

    Item 12 do Manifesto do União Brasil:

     

    Apoio a programas de transferência de renda, compreendidos como ferramentas necessárias de segurança social e alimentar, por garantirem a subsistência das famílias mais pobres. Mantendo, porém, a clareza de que se trata de soluções insuficientes para respondermos a uma dívida histórica do país – a ser enfrentada com políticas estruturantes e transformadoras.

     

    Item 13 do Manifesto do União Brasil:

     


    Compromisso radical com a superação da pobreza, compreendendo que a pobreza não é apenas ausência de renda, mas um conjunto de desproteções sociais que vem se acumulando ao longo de décadas, condenando as camadas mais vulneráveis da população brasileira à perpetuação de condições precárias de vida por sucessivas gerações. Um dos maiores propósitos da ação político-administrativa do União
    Brasil será o de ampliar as vias de ascensão social para as novas gerações de brasileiros, priorizando aqueles que vivem em situação de maior vulnerabilidade social, com políticas públicas integradas, que
    englobem: segurança alimentar, moradia, saneamento, educação, saúde, assistência social, qualificação e emprego, bem como segurança pública responsável e eficaz.

     

    Item 31 do Manifesto do União Brasil:

    O Estado gasta muito e gasta mal. Somos a favor de privatizações, da eficiência do gasto e da diminuição da carga de impostos. O Estado não é capaz de gerir tudo e a iniciativa privada é muito mais eficiente na
    gestão das empresas e dos recursos. A privatização garante a desburocratização, a independência política nas ações e diminui o risco de corrupção. No entanto, não caímos na armadilha do Estado Mínimo. Acreditamos na construção de um Estado eficiente e fiel às suas obrigações indelegáveis: saúde, segurança, educação,
    assistência social, regulação, indução, garantia de oportunidades e promoção da equidade.

    Ideais do PSL (https://psl.org.br/opsl/#nossos-ideais):

     

    e) proteção à propriedade privada e garantia de que cada cidadão de bem tenha o direito de proteger seu principal patrimônio: sua vida. Para tanto, é necessária a revogação do Estatuto do Desarmamento e a criação de condições para que os cidadãos possam ter a posse de armas de fogo, se assim o desejarem;

    Item 43 do Manifesto do União Brasil:

    Sempre preservando integral fidelidade ao interesse nacional, propomos uma política externa fundada no princípio da igualdade soberana dos Estados e no respeito à autodeterminação dos povos, orientada em favor da paz mundial, do desarmamento e de uma divisão mais justa do poder político e econômico mundial. Preconizamos a cooperação e o intercâmbio cultural com todos os países, com base no princípio da reciprocidade. Almejamos a redução progressiva de nossa dependência do Exterior, especialmente no campo tecnológico, mantendo, todavia, nossas janelas abertas para o mundo, na busca de uma justa e construtiva interdependência.

 

Em suma, pode-se perceber que o PSL era um partido declaradamente armamentista, enquanto que o União é desarmamentista; o PSL voltava-se a ideias de um Estado mínimo, reduzido ao essencial, enquanto que o União defende um Estado assistencialista; o PSL tinha ideais mais conservadores, como a contrariedade à ideologia de gênero e às cotas, enquanto que o União quer promover a diversidade.

Portanto, resta evidente a ocorrência de mudança substancial do programa partidário, a ponto de as novas diretrizes do partido União serem incompatíveis com os ideais do extinto PSL. Tal mudança justifica, no caso concreto, a desfiliação do requerente dos quadros do novo partido constituído, decorrente da fusão entre o PSL e o DEM.

 

Por sua vez, este Tribunal Regional, no julgamento da Ação de Justificação de Desfiliação Partidária n. 0600124-71.2022.6.21.0000, ocorrida na sessão de 13.06.2022, por maioria, acolheu o posicionamento lançado no voto do eminente Relator, Desembargador Eleitoral Gerson Fischmann, entendendo que “é necessário que os parlamentares demonstrem, de forma concreta e casuística, quais ações políticas eram desenvolvidas com base no programa até então seguido pelo partido pelo qual se elegeram, e que se refletiam em atos afetos à sua atuação parlamentar que, com a fusão, serão obstadas ou prejudicadas em virtude de uma nova orientação partidária”.

Entendo que é exatamente a hipótese que se observa, pois, em suas manifestações nos autos, o vereador elenca diversas notícias de atos de sua atuação parlamentar envolvendo a defesa e promoção do direito ao acesso e ao porte de armas de fogo, bem como à prática do tiro desportivo, a exemplo do Projeto de Lei do Dia Municipal do Atirador Desportivo e da proposição para formação da Frente Parlamentar do Direito à Legítima Defesa e Porte de Armas (IDs 44935038 e 44935034, do processo n. 060086-59), às quais se somam às suas notórias e amplamente conhecidas linhas políticas e propostas de campanha perante o eleitorado com as mesmas temáticas.

Aqui, vale lembrar da relevância do tema, ainda hoje no centro do debate político norte-americano, acerca da segunda emenda de sua Constituição, do ano de 1791, que expressamente considera ser necessária para a segurança de um Estado livre, o direito do povo de manter e portar armas.  Sem concordar ou discordar da posição apresentada, o  assunto tem elevada relevância política e imiscui-se com o próprio conceito que se dá ao valor “liberdade”.

Aliás, trata-se de um dos principais aspectos que diferenciam membros, simpatizantes e governantes do partido republicano, em geral mais permissivos ao uso de armas, e do partido democrata, defensores de maiores restrições. Cito reportagem do Globo, de junho do corrente ano, embora considere o tema de conhecimento público (https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/06/23/estados-dos-eua-afirmam-que-manterao-restricoes-a-armas-apesar-da-decisao-da-suprema-corte.ghtml).

Conforme anteriormente demonstrado, uma das principais característica do PSL sempre foi a defesa veemente das armas, como se observa das reportagens referidas nos autos (https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,bancada-do-psl-e-pro-reforma-e-armas,70002553802), aspecto excluído e substituído por um ideário desarmamentista na nova agremiação:

Ideais do PSL (ID 44934674, do processo n. 060086-59):

e) proteção à propriedade privada e garantia de que cada cidadão de bem tenha o direito de proteger seu principal patrimônio: sua vida. Para tanto, é necessária a revogação do Estatuto do Desarmamento e a criação de condições para que os cidadãos possam ter a posse de armas de fogo, se assim o desejarem;

 

Item 43 do Manifesto do União Brasil (ID 44934677, do processo n. 060086-59):

Sempre preservando integral fidelidade ao interesse nacional, propomos uma política externa fundada no princípio da igualdade soberana dos Estados e no respeito à autodeterminação dos povos, orientada em favor da paz mundial, do desarmamento e de uma divisão mais justa do poder político e econômico mundial. Preconizamos a cooperação e o intercâmbio cultural com todos os países, com base no princípio da reciprocidade. Almejamos a redução progressiva de nossa dependência do Exterior, especialmente no campo tecnológico, mantendo, todavia, nossas janelas abertas para o mundo, na busca de uma justa e construtiva interdependência.

 

Trata-se, inclusive, da razão principal aduzida pela douta Desembargadora Eleitoral Kalin Cogo Rodrigues por ocasião da concessão da liminar requerida nos autos do processo n. 0600086-59.2022.6.21.0000, conforme colho:

No caso dos autos, o requerente apresentou de forma pormenorizada as diferenças estatutárias entre o Partido Social Liberal – PSL (partido o qual era filiado) e o União Brasil – União.

Uma em especial, que me chamou atenção, diz respeito a defesa pelo direito ao armamento civil, sustentada pelo PSL, e a defesa do desarmamento civil, sustentada pelo União (IDs 44935043, 44934674, 44934676 e 44934678).

Assim, levando-se em consideração os elementos indicados na fundamentação, bem como as provas juntadas com a inicial, entendo que se verifica plausível a ocorrência de mudança substancial no estatuto do partido fundido, fato que autorizaria a justa causa para a desfiliação, consoante previsto no art. 22-A, inc. I, da Lei n. 9.096/95.

 

Logo, há uma evidente desajuste entre a linha ideológica estabelecida pelo novo corpo partidário e as concepções políticas de legítima defesa e de segurança pública sustentadas pelo vereador, que, outrora fomentadas pela antiga agremiação, pavimentaram o seu sucesso eleitoral ante o eleitorado.

Importante ressaltar que é desnecessário verificar se o novo partido criado ofereceu entraves ou tolerou a ação ideológica de seu parlamentar, pois o argumento não envolve caso de grave discriminação pessoal, que abarca situação diversa da prevista no art. 22-A, inc. I, primeira parte, da Lei n. 9.096/95.

É suficiente a aferição da mudança substancial de programa partidário, que difere frontalmente da linha política defendida pelo vereador e pela qual é reconhecido perante o seu eleitorado. Assim, na expressão de José Jairo Gomes:

É de todo compreensível que alguém queira abandonar as fileiras de uma organização que alterou o ideário antes cultivado, pois com ela pode não mais se identificar, não mais se encontrar irmanado. Em tal caso, a causa da desfiliação é inteiramente atribuível à própria entidade, que reviu seus rumos, não sendo justo que mandatário seja forçado a nela permanecer. (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2018, págs. 150-151)

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO por: a) confirmar a tutela provisória deferida e julgar PROCEDENTE a AJDesCargEle 0600086-59.2022.6.21.0000, a fim de declarar a existência de justa causa para a desfiliação de ALEXANDRE WAGNER DA SILVA BOBADRA do UNIÃO BRASIL, sem a perda do cargo eletivo, com fundamento no art. 22-A, caput e inc. I do parágrafo único, da Lei n. 9.096/95; e b) julgar IMPROCEDENTE a AJDesCargEle 0600181-89.2022.6.21.0000.