REl - 0600661-31.2020.6.21.0067 - Voto Relator(a) - Sessão: 19/09/2022 às 14:00

VOTO

Da Preliminar de Nulidade do Conjunto Probatório

Em preliminar, o recorrente alega a nulidade da prova que embasou a sua condenação, uma vez que obtida a partir de sua detenção pela força policial, com suposta ofensa ao art. 236, § 1º, do Código Eleitoral, uma vez que ausente flagrante de delito. Disso, decorreria a invalidade dos meios de prova derivados do ato ilegal.

Consoante descrito na petição inicial, o acervo probatório foi alcançado a partir de abordagem no veículo do candidato, que trafegava em via pública, realizada pela Brigada Militar, no dia 14.11.2020, à 01h, na Rua Borges de Medeiros, s/nº, em Muçum, quando, após buscas pessoais, a Polícia Militar encontrou quantia em dinheiro (R$ 640,00), listas contendo nomes de eleitores, valores pagos e a pagar, nomes de cabos eleitorais e propagandas (santinhos) do candidato.

O Boletim de Ocorrência Policial n. 5359/2020/152104 (ID 39292133) assim expõe o fato:

Relata que estavam em ponto base quando foi avistado o veículo suspeito de placas IOM2454 (prisma preto). Foi feita a abordagem ao veículo, os passageiros desembarcaram e feita busca pessoal em cada um deles. Que dentro do veículo foram encontrados R$ 640,00 (SEISCENTOS E QUARENTA REAIS) em dinheiro, listas contendo nome e valores e santinhos do Vereador Carlos Eduardo Ulmi. Questionados Carlos Eduardo disse que tais objetos lhe pertenciam e que Leonardo apenas estaria de carona, pois recém haviam dado carona para uma conhecida. Acrescenta que demais colegas teriam acompanhado a abordagem: soldado Boldrini, soldado Júnior, soldado Nataliel e soldado Mizael. Que posteriormente os conduziram até esta delegacia para o presente registro. Informa que o veículo que conduziam foi entregue para condutor habilitado que seria o sogro de Carlos Eduardo, Sr. Paulo Ricardo Beloti. Pelo plantonista: em contato com autoridade policial, Delegado Márcio de Abreu Moreno, solicitou o presente registro simples de ocorrência, apreensão do dinheiro e das listas contendo nome e valores, acima mencionada, além do celular do suspeito. Nada mais.

 

Como se percebe, o registro policial não esclarece as razões que levaram à classificação do veículo como suspeito a fim de justificar a abordagem policial e a busca pessoal.

Os policiais militares que atuaram na ocorrência, igualmente, em declarações pessoais, nada aduzem para justificar a abordagem com tamanha invasividade às garantias fundamentais de privacidade, intimidade e inviolabilidade pessoal.

Ouvido durante a instrução, o policial militar Tiago Martini afirmou que as abordagens dos veículos suspeitos envolviam “os dois lados”, sem especificar as razões de suspeita (ID 39295433):

Procurador do Representante: Policial, boa tarde. Policial, quantas outras abordagens, o senhor lembra, foram feitas antes de ser feita essa aqui? Naquela antevéspera, véspera de eleição?

Tiago Martini: Nossa. Olha, Doutor, eu acho que teve até alguns veículos que a gente abordou mais de uma vez. Mas eu acredito que tenham sido feitas mais de 30, 40 abordagens.

Procurador do Representante: Sim. Esse era um trabalho padrão que vocês estavam realizando, por conta justamente da eleição que se aproximava?

Tiago Martini: Padrão. Desde o início. Quando começou a correria do… dessa questão de um ameaçando outro… que nos passaram, ah, tem o fulano de tal tá andando armado. Tudo que foi nos passado a gente verificava. E os veículos que a gente achava suspeito, a gente tinha suspeita incluída, a gente abordava da mesma forma, muitas vezes até outros veículos que a gente não reconhecia a gente (inaudível) abordava e fazia a revista geral no veículo.

Procurador do Representante: Tá certo. O senhor já respondeu, mas para os dois lados?

Tiago Martini: Pros dois lados.

Procurador do Representante: Esse caderno der anotações, esse dinheiro, estava exatamente onde no veículo?

Tiago Martini: No veículo eles estavam em frente ao câmbio de marchas, mas o caderno não. O caderno estava no banco de trás. Mas essa lista, contendo, se não me engano, duas ou três páginas, ela tava dobrada, na frente do câmbio de marchas, entre o painel e o, enfim, ali, a parte debaixo do veículo. E nele daí tinha a lista, tinha esses santinhos, e tinha também o valor em dinheiro.

 

O policial militar Everton Boldrini declarou que estavam em patrulhamento em Encantado e que, coincidentemente, passou esse veículo por onde a viatura estava parada e, tendo a informação de carro suspeito, o abordaram. Disse que “nem sabíamos que era situação política”. Ainda, confirmou que houve voz de prisão ao candidato, o qual foi conduzido à Delegacia de Lajeado, mas que não presenciaram compra de votos ou promessa de compra de votos, pois “estávamos parados na rodovia e o veículo vinha, foi feita a abordagem no veículo”. Prossegue o depoimento (ID 39294233 e 39294283):

Promotor: Especificamente lá em Muçum, dos dois lados, vocês paravam veículos de ambos os lados?

Everton Boldrini: Doutor, foi o momento que deu aquela... como é que eu vou lhe explicar...aquela acalmada, tanto em Encantado, Roca, Muçum, deu aquela acalmada e nós paramos para conversar e, coincidentemente, esse veículo entrou no trevo na nossa frente. E aí nos abordamos. (…). Não tinha nem conhecimento de que partido ele seria, no caso, ou quem estaria no carro.

 

Declarou, ainda, que antes desta abordagem foram feitas muitas outras no mesmo dia e que não conhecia o candidato a vereador antes do ocorrido. Disse recordar que a listagem de eleitores foi encontrada entre a alavanca de marchas e o console do carro, em um “porta-documentos”, em que “ficava tudo à vista”. Salientou que tinham recebido a informação de que um veículo Prisma preto, com placas de Encantado, estaria em “atitude suspeita”. Fizeram contato com seu oficial supervisor e explicaram as circunstâncias, sendo orientados a apresentarem os candidatos na Delegacia de Polícia, porque haveria a caracterização de crime eleitoral.

Da mesma forma, no depoimento do policial militar Mizael da Costa (ID 39295433) assim constou:

Procurador do Representante: Os santinhos eram de quem?

Mizael da Costa: Os santinhos eram do Carlos Eduardo Ulmi.

Procurador do Representante: Na ocasião da abordagem, é o que consta do registro de ocorrência (inaudível), Eduardo reconheceu que a lista era dele?

Mizael da Costa: A lista ele falou que não era. Ele falou que o que era dele, era... o dinheiro era dele.

Procurador do Representante: (inaudível)

Mizael da Costa: A lista ele disse… ele falou que a lista ele não… (inaudível) não era dele.

Procurador do Representante: Tá. Mas isso consta no registro.

Mizael da Costa: Como?

Procurador do Representante: (inaudível) aparece na lista seria dele. Ele é reconhecido nisso? Na abordagem?

Mizael da Costa: (inaudível) dinheiro.

 

De seu turno, o policial militar Nataliel Ricardo declarou (ID 39295533):

Nataliel Ricardo: Primeiramente, salientar que a guarnição de Muçum já havia avisado que havia um Prisma de cor preta que não conseguiram abordar. Então eles já avisaram a guarnição de Encantado, que éramos eu, soldado Boldrini e soldado Júnior. Então, ficamos atentos a esse veículo. À noite, fomos patrulhar entre a divisa de Muçum e Encantado. Encontramos a outra GU e fizemos um ponto base no local, ali no acesso ao trevo. Então o veículo referido apareceu, e a gente realizou a abordagem, tudo dentro da técnica, do padrão, da legalidade.

(…).

Procurador do Representante: Esse trabalho de abordagem (inaudível) foi feito somente sob o carro do Carlos Eduardo, ou um trabalho padrão, corriqueiro na semana anterior ao pleito?

Nataliel Ricardo: Não, esse trabalho, ele é feito em padrão sempre… veículos são…

Procurador do Representante: (inaudível) partidos?

Nataliel Ricardo: Não. Não é por conta de eleição. Esse trabalho de abordagem a veículos, como já era um veículo suspeito, incluído, ele já é feito. A abordagem já são executadas. Não é por conta de eleição que a gente muda os padrões de abordagem.

Procurador do Representante: Quais objetos vocês encontraram no veículo, e aonde? Exatamente aonde?

Nataliel Ricardo: Eu não posso dizer exatamente onde foram encontrados, pois eu estava fazendo a segurança do local, enquanto os colegas estavam fazendo a busca dentro do veículo. Então, logo, eu não vi onde foi encontrado, e exatamente o que foi encontrado lá. Eu estava fazendo a segurança do local. Essa era a minha parte na abordagem até então.

Procurador dos Representados: Localizados esses objetos, que constam nos autos, (inaudível) objetos, lembra, tem conhecimento de quais foram os objetos foram localizados dentro do veículo?

Nataliel Ricardo: Tenho vago conhecimento, não me recordo bem. Foi um caderno, com anotações, dinheiro, não sei o valor ao certo, não me recordo, santinhos de, panfletos de eleição, né, panfletos de eleição. E posterior, ao que foi encontrado isso aí, foi oficial ao oficial de serviço, e o mesmo, o oficial superior de serviço no dia, Tenente Nilson, e o mesmo nos ordenou que fosse encaminhado até Encantado pra… aliás pra Lageado, pra Delegacia de Lageado.

Representados: E foi dada voz de prisão ao Ulmi?

Nataliel Ricardo: Olha, eu não me recordo. Como eu disse eu tava na segurança. Então eu não me recordo, pois não fui eu que peguei o fato em si, ali. Eu estava fazendo a segurança no local. Eu não me recordo.

Procurador dos Representados: Chegou a identificar, chegaram a identificar que se tratavam de candidatos naquele momento da abordagem?

Nataliel Ricardo: Sim. Eles mesmo disseram que eram candidatos.

 

Observa-se que o relato dos policiais não esclarecem de forma satisfatória a motivação da suspeita e da abordagem, sendo certo que a caracterização dos objetos colhidos como instrumentos de eventual crime eleitoral somente poderia ocorrer após a busca, apreensão e inspeção pelos policiais.

O bloqueio aleatório de automóveis, por si, é um procedimento policial legítimo e independente de fundada suspeita quando limitado a fiscalizar documentos e condições do veículo.

Por outro lado, a busca pessoal deve observar o disposto no art. 240, § 2º, do Código de Processo Penal, in verbis:

Art. 240. A busca será domiciliar ou pessoal.

(…).

§ 2º Proceder-se-á à busca pessoal quando houver fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados nas letras b a f e letra h do parágrafo anterior.

 

Do teor legal, conclui-se que a busca pessoal somente será válida se existirem elementos concretos que autorizem o procedimento de revista e apreensão de objetos, ou seja, se houver fundada suspeita, o que não se verifica no caso em comento, no qual a abordagem ocorreu por critérios subjetivos e discricionários dos policiais, não devidamente esclarecidos.

Nesse sentido, colaciono os seguinte julgados do STJ:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ILEGALIDADE FLAGRANTE PRELIMINAR AO MÉRITO AFERÍVEL DE OFÍCIO. PROVAS ILÍCITAS. BUSCA PESSOAL E VEICULAR. DENÚNCIA ANÔNIMA. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS CONCRETOS. FUNDADA SUSPEITA INEXISTENTE. NULIDADE. ABSOLVIÇÃO. EXTENSÃO AO CORRÉU (ART. 580 DO CPP).

1. Segundo a orientação desta Corte, exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) - baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto - de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. Assim, não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e. g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial ( RHC n. 158.580/BA, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe de 25.4.2022.).

2. Hipótese em que, da mera leitura dos fatos constantes na sentença, exsurge a ilegalidade da revista pessoal e veicular realizada, uma vez que fundada apenas em denúncia anônima, sem qualquer outro elemento concreto que demonstrasse a justa causa para a diligência policial.

3. Agravo regimental improvido.

(STJ - AgRg no HC: 734263 RS 2022/0100276-4,  Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 14.6.2022, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 20.6.2022.) Grifei.

 

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO ILÍCITO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. REQUISITOS DO ART. 244 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA. ILICITUDE DAS PROVAS OBTIDAS. ABSOLVIÇÃO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA.


1. No caso dos autos, a busca pessoal foi efetuada porque o Paciente era conhecido nos meios policiais pela prática de crimes, tentou empreender fuga ao avistar a viatura policial e teria se comportado de "modo suspeito". Como se vê, não foi demonstrada a necessária justa causa, apta a demonstrar a legalidade da medida invasiva.

2. Os arts. 240, § 2.º, e 244, ambos do Código de Processo Penal, exigem que haja fundada suspeita, e não mera impressão subjetiva, sobre a posse de objetos ilícitos para que seja possível a referida diligência. Esta fundada suspeita deve, portanto, ser objetiva e justificável a partir de dados concretos, independentemente de considerações subjetivas acerca do "sentimento", "intuição" ou o "tirocínio" do agente policial que a executa.

3. A posterior situação de flagrância não convalida a revista pessoal realizada ilegalmente, pois amparada em meras suposições ou conjecturas. A propósito, nem mesmo o histórico criminal mencionado no acórdão impugnado legitima a diligência policial, pois, na hipótese, não havia fundada suspeita de que o Acusado estava na posse do entorpecente.

4. Ordem de habeas corpus concedida para anular as provas obtidas mediante a busca pessoal realizada pelos policiais militares, bem como as provas delas decorrentes e, em consequência, absolver o Acusado da imputação feita na Ação Penal n. 0700426-55.2021.8.02.0049.

(HC n. 737.075/AL, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 02.8.2022, DJe de 12.8.2022.) Grifei.

 

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES E CORRUPÇÃO ATIVA. BUSCAS PESSOAL, VEICULAR E DOMICILIAR REALIZADAS SEM MANDADO JUDICIAL, SEM FUNDADAS RAZÕES E SEM CONSENTIMENTO VÁLIDO DE MORADOR. PACIENTE QUE ERA PASSAGEIRO DE VEÍCULO PARADO EM BLITZ E QUE APRESENTOU NERVOSISMO. BUSCAS PESSOAL E VEICULAR INFRUTÍFERAS. SUPOSTA CONFISSÃO INFORMAL DE ARMAZENAMENTO DE DROGAS EFETUADA PELO PACIENTE QUANDO ERA CONDUZIDO PELA POLÍCIA ATÉ SUA RESIDÊNCIA. NULIDADE DAS PROVAS OBTIDAS NA BUSCA E APREENSÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

(…).

2. A revista pessoal sem prévia autorização judicial somente pode ser realizada diante de fundadas suspeitas de que alguém oculte consigo arma proibida, coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; ou objetos necessários à prova de infração, na forma do disposto no § 2º do art. 240 e no art. 244, ambos do Código de Processo Penal, não constituindo "fundada suspeita" o mero nervosismo apresentado pelo acusado. Precedentes: HC 659.689/DF, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 15.6.2021, DJe 18.6.2021; HC 687.342/SC, Rel. Ministro OLINDO MENEZES (Desembargador convocado do TRF 1ª Região), SEXTA TURMA, julgado em 05.10.2021, DJe 11.10.2021.

3. Situação em que o paciente (passageiro do banco traseiro de veículo parado em blitz) apresentou nervosismo que motivou a realização de busca pessoal e veicular que se provaram infrutíferas. (…).

6. Se os delitos imputados ao paciente (e à corré) se colocam todos na linha de desdobramento de prévia atuação ilegal da autoridade policial que resultou na coleta das únicas provas de materialidade dos crimes descritos na ação penal, devem tais provas, assim como as delas derivadas, ser consideradas nulas.

7. Já tendo sido prolatada sentença condenatória, ancorada unicamente em provas colhidas por ocasião de busca domiciliar ilegal, deve a sentença ser anulada, absolvendo-se o paciente dos delitos a si imputados, com fulcro no art. 386, inc. II, do Código de Processo Penal.

8. Tendo em conta que, nos termos do art. 580 do Código de Processo Penal, devem ser estendidos aos demais corréus os efeitos de decisão que beneficia um dos acusados, desde que demonstrada a similitude fática e processual entre eles que determina a aplicação da mesma ratio decidendi, o que ocorre no caso concreto, também a corré deve ser absolvida dos delitos a ela imputados, com amparo no art. 386, VII, do Código de Processo Penal.

9. Agravo regimental desprovido.

(AgRg no HC n. 693.574/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 14.12.2021, DJe de 17.12.2021.) Grifei.

 

Ademais, a jurisprudência está consolidada no sentido de que a busca veicular é equiparada à busca pessoal, exigindo suspeita fundada de possível delito quando inexistente prévia autorização judicial para a diligência.

Com essa orientação, trago julgados do STJ e do TSE:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM ECONÔMICA. FORMAÇÃO DE CARTEL. DISTRIBUIÇÃO E REVENDA DE GÁS DE COZINHA. BUSCA PESSOAL. APREENSÃO DE DOCUMENTOS EM AUTOMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE.


1. Apreensões de documentos realizadas em automóvel, por constituir típica busca pessoal, prescinde de autorização judicial, quando presente fundada suspeita de que nele estão ocultados elementos de prova ou qualquer elemento de convicção à elucidação dos fatos investigados, a teor do § 2º do art. 240 do Código de Processo Penal.

2. No dia em que realizadas as diligências de busca domiciliar na residência do recorrente eram obtidas informações, via interceptação telefônica (não contestadas), de que provas relevantes à elucidação dos fatos eram ocultadas no interior de seu veículo e que poderiam, conforme ele próprio afirmou, culminar na sua prisão. Diante dessa fundada suspeita, procedeu-se a busca pessoal no veículo do recorrente, estacionado, no exato momento da apreensão dos documentos, em logradouro público. Conforme atestado pelas instâncias ordinárias, o recorrente estava presente na ocasião da vistoria do veículo.

3. Recurso ordinário a que se nega provimento.

(STJ - RHC 117767, Relator(a): Min. TEORI ZAVASCKI, Segunda Turma, julgado em 11.10.2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-169 DIVULG 01.8.2017 PUBLIC 02.8.2017.) Grifei.

 

ELEIÇÕES 2012. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. AIJE. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE VOTOS. BUSCA EM VEÍCULO. EQUIPARAÇÃO À BUSCA PESSOAL. MANDADO JUDICIAL. PRESCINDIBILIDADE. PRECEDENTE. DESPROVIMENTO.

1. A busca em veículo, desde que este não seja utilizado para moradia, equipara-se à busca pessoal e, assim, prescinde de mandado judicial, nos termos do art. 244 do CPP. Nessa linha, "havendo fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, como no caso, a busca em veículo, a qual é equiparada à busca pessoal, independerá da existência de mandado judicial para a sua realização" (STJ, HC nº 216437/DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe de 08.3.2013, grifei).

2. Agravo regimental ao qual se nega provimento.


ELEIÇÕES 2012. AIJE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OPOSIÇÃO EM FACE DE DECISÃO MONOCRÁTICA. AUSENTE PRETENSÃO INFRINGENTE. NÃO CONHECIMENTO.

1. Os embargos de declaração opostos contra decisão individual do relator, sem pretensão infringente, não podem ser conhecidos, não incidindo o princípio da fungibilidade recursal, para que sejam recebidos como agravo regimental. Precedente.

2. Embargos de declaração não conhecidos.

(TSE - Recurso Especial Eleitoral nº 958123812, Acórdão, Relator(a) Min. Luciana Lóssio, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônico, Tomo 55, Data 20.3.2015, Página 46/47) Grifei.

 

Ainda, na hipótese, o candidato não estava em situação de flagrante de crime e se apresentou como vereador e candidato ao cargo público, o que torna ainda mais grave a antijuridicidade da medida executada sem motivação idônea, plausível e racional diante da garantia eleitoral prevista no art. 236, § 1º, do Código Eleitoral:

Art. 236. Nenhuma autoridade poderá, desde 5 (cinco) dias antes e até 48 (quarenta e oito) horas depois do encerramento da eleição, prender ou deter qualquer eleitor, salvo em flagrante delito ou em virtude de sentença criminal condenatória por crime inafiançável, ou, ainda, por desrespeito a salvo-conduto.

§ 1º Os membros das mesas receptoras e os fiscais de partido, durante o exercício de suas funções, não poderão ser detidos ou presos, salvo o caso de flagrante delito; da mesma garantia gozarão os candidatos desde 15 (quinze) dias antes da eleição.

§ 2º Ocorrendo qualquer prisão o preso será imediatamente conduzido à presença do juiz competente que, se verificar a ilegalidade da detenção, a relaxará e promoverá a responsabilidade do coator.

 

Com essas considerações, reconheço a nulidade das provas obtidas por meio de ilícita busca pessoal na abordagem ao veículo em questão, bem como das delas diretamente derivadas, consistentes na apreensão de dinheiro em espécie, folhas manuscritas e santinhos de propaganda eleitoral, por incidência da teoria dos “frutos da árvore envenenada”.

 

DESTACO.

 

Superada a prefacial, tenho que, no mérito, não assiste razão aos recorrentes.

Consoante restou incontroverso nos autos, no dia 14.11.2020, à 01h, na Rua Borges de Medeiros, bairro São José, no Município de Muçum, a Brigada Militar abordou o automóvel GM Prisma, cor preta, placas IOM2454, o qual trafegava pela via pública.

Após os tripulantes Carlos Eduardo Ulmi e Leonardo Bagnara, ambos candidatos a vereador naquela localidade, desembarcarem, foram encontrados no interior do veículo R$ 640,00 em espécie, em cédulas de R$ 10,00 e R$ 20,00, bloco de notas e folhas dele sacadas, contendo anotações, escritas de próprio punho pelo candidato demandado, bem como santinhos deste.

Das folhas avulsas, destaco as seguintes (ID 39292133, fls. 9/11):


 

 

Conduzidos à Delegacia de Polícia, houve a lavratura do boletim de ocorrência, por suspeita de compra de votos, sendo apreendidos o numerário, o caderno e as folhas avulsas, bem como aparelho celular, tudo pertencente a Carlos Eduardo Ulmi.

Com efeito, a planilha carreada ao feito é inequívoca no sentido de demonstrar que se cuida de registro físico de pagamento a eleitores em troca do voto.

A tabela é dividida em colunas, cada qual encimada pelos títulos (1) “nome”, (2) “antes”, (3) “depois”, (4) “cabo eleitoral” e (5) “parceria”, sendo evidente se tratar a primeira coluna do nome dos eleitores cooptados, a segunda do montante ser pago antes do pleito, a terceira do quantum a ser pago após as eleições, e a quarta o nome do cabo eleitoral responsável pela captação ilícita. Não por outra razão havia a anotação “pago” ao lado do valor lançado na coluna “antes”, em grande parcela dos casos, e nenhum registro na coluna “depois”, vez que o prélio eleitoral ainda não havia sido realizado.

Além disso, há no verso de uma das folhas a seguinte inscrição, sobre a qual os recorrentes sequer ofereceram algum esclarecimento: “OBS – Até a Cleci Couto tenho que pagar depois 2.250,00. 64 votos até a Cleci Couto” (ID 39292133, fl. 10):

 

A tese levantada pelos recorrentes, de que a listagem foi elaborada com a finalidade de reverter a intenção de voto de eleitores que teriam sido aliciados ilegalmente pelo PSDB, não se sustenta.

Eis o teor das alegações a tal respeito, nas razões recursais (ID 44963597):

Conforme narrado em contestação e posteriormente referendado pela prova testemunhal, a lista apreendida no interior do veículo do recorrente originou-se de informações obtidas pela testemunha Mateus Spegiorini e repassadas ao representado.

 

A referida testemunha, no início do período eleitoral, trabalhou na condição de cabo eleitoral para a coligação recorrida e por conta de desentendimentos pessoais procurou o recorrente a fim de relatar informações obtidas de pessoas que compunham o núcleo estratégico da chapa adversária, liderada pelo Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Tanto o trabalho por ele exercido, como as razões de seu desligamento, restaram provados pelo relato das testemunhas e pelo Registro de Ocorrência policial.

 

Tão logo passou a colaborar com a campanha do recorrente, a testemunha alegou ter conhecimento da prática de compra de votos pela coligação recorrida, bem como da sistemática adotada para a cooptação do sufrágio e valores dispendidos em favor de eleitores determinados.

 

Diante da relevância das informações disponíveis, optou-se por confeccionar uma relação escrita visando à posterior abordagem pelos cabos eleitorais do candidato, para reversão do voto. Assim, realizou-se reunião entre os apoiadores do candidato, na residência do sogro do recorrente, no final de semana anterior ao pleito, oportunidade em que a lista foi elaborada por meio da compilação das informações obtidas, com os respectivos nomes dos eleitores e valores a eles supostamente pagos, tudo conforme informação prestada por Mateus.

 

Confeccionada a lista, procedeu-se a repartição da tarefa de reversão dos votos dos eleitores nela identificados, o que explica a identificação dos cabos eleitorais constantes na relação.

 

Segundo o depoimento prestado em juízo por Mateus Spegiorini, ele teria, a partir de conversas com seu tio, que se supõe seja Volmir, e do círculo de pessoas ligadas ao PSDB, tomado conhecimento de esquema de compra de votos alegadamente executado por seus adversários.

Veja-se a transcrição de seu depoimento (IDs 39294933, 39294983 e 39295033):

Mateus: No início, eu fui (inaudível) o 45, eu tava ajudando o 45, ganhei um valor de R$ 6.000,00 pra trabalhar pra eles. E aí, houve uma discussão, aí e tal, então eu resolvi, já que meu irmão tava do outro lado, me mudar pro lado do meu irmão também. E foi assim!

Investigado: Que tipo de discussão?

Mateus: Ah, ameaça, que se eu não trabalhar pro lado deles, a Camila Sessi ia quebrar meu auto, que era bem fácil me dar um tiro.

Investigado: Para o que recebeste o valor? Qual o objetivo desse valor?

Mateus: Pra trabalhar pra eles. Mas aí eu peguei, e segurei pra mim esse dinheiro.

Investigado: (inaudível) boletim de ocorrência (inaudível) teria sido ameaçado por Volmir Invernizzi e pela Camila Sessi. Tem algum outro detalhe pra contar sobre esse fato (inaudível) ameaçado?

Mateus: Não.

Investigado: Quando deixou de apoiar a candidatura em razão dessas ameaças, passou a auxiliar a campanha do Carlos Eduardo. Que tipo de auxílio (inaudível) deu a Carlos Eduardo?

Mateus: Bom, eu cheguei sábado à tarde, uma semana antes da eleição, juntamente com meu irmão, fomos até a casa do Eduardo, e comigo levei uma lista, com os nomes e tal, e alguns eu sabia na cabeça. Sentei e (inaudível).

Investigado: Repassou esses nomes pra ele?

Mateus: Sim.

Investigado: E esses nomes, a que se referiam esses nomes? Qual era o teor dessa lista (inaudível) que tinha conhecimento?

Mateus: Que provavelmente o partido contra tava comprando, e eu sabia aonde tava mais ou menos, pra nós tentar reverter o voto.

Investigado: E o que foi feito com essa informação que tu tinhas? Sabe o que o candidato Carlos Eduardo fez com essa informação?

Mateus: Não.

Defesa: Tinha mais alguém que estava nesse encontro?

Mateus: Tinha eu, o Ivan Rodrigues, o Robson Spegiorini, Letícia Vescovi e a Keila na piscina, o Diego Machado e o Paulinho.

Investigado: E tu entregou esse documento pro Carlos Eduardo? Simplesmente entregou? O que tu fez com ele?

Mateus: Eu disse alguns nomes lá, e tal, e larguei o que eu tinha lá pra ele (inaudível).

Investigado: E ele disse o que ia fazer com isso?

Mateus: Não.

Investigado: Sabe se o Carlos Eduardo procurou alguma pessoa dessa lista pra tentar comprar voto ou algo semelhante?

Mateus: Não.

(…)

Investigado: Como o Senhor tomou conhecimento dessas informações que diz ter repassado para o candidato Carlos Eduardo? Participava de alguma forma da campanha da outra chapa, da conversa com eleitores, ou ouviu de alguém? Como se deu isso?

Mateus: Ouvi de alguém e eu resolvi, praticamente, ajudar meu irmão, que ele tava ali, né? E resolvi ajudar ele…

(...)

Investigante: Por acaso, tu chegou a presenciar o Carlos Eduardo fazendo essa lista, anotando essa lista?

Mateus: Não. Não vi ele anotando. Como eu falei antes, eu apenas li, dei a lista ali, os nomes e falei alguns nomes.

(...)

Investigante: Essa observação do Carlos Eduardo, “até a Cleci Couto tenho que pagar depois 2.250,00. 64 votos até a Cleci Couto”.

Mateus: Bom, aí eu não sei, porque, como eu falei, o cara disse (inaudível), eu só larguei a coisa e disse o que eu sabia.

(...)

Promotor Eleitoral: Que nomes o senhor forneceu nessa tarde, nesse dia, ao Sr. Carlos Eduardo?

Mateus: Bah, agora eu não sei de cabeça, faz um mês, mais.

Promotor Eleitoral: Sabe dizer nem alguns nomes, ai?

Mateus: Que que eu vou te dizer?

Promotor Eleitoral: Quantos nomes eram?

Mateus: Eu tinha poucos, duas folhas, mas eu não sei número da lista. Faz um mês e pouco já.

Promotor Eleitoral: Eu vou repetir essa pergunta, que foi feita (inaudível). Esses nomes que o senhor tinha, então, eles foram tirados de onde? Como o senhor chegou (...) ao conhecimento de que aquelas pessoas, que o senhor não lembra hoje mais o nome, tinham recebido valores?

Mateus: Eu tava do lado do 45, ajudando eles, e eu soube alguns nomes, porque, como tem no boletim, eu tenho um tio lá, (…) e nós conversava. Justo depois que eu me virei, ali, ele me ameaçou, eu tenho o boletim, tudo ali, e eu resolvi ajudar meu irmão. Eu e meu irmão já tava em discussão, e eu ajudei…

Promotor Eleitoral: E esses nomes, o Senhor levou até o Sr. Eduardo… Quem lhe passou os nomes? O Senhor deu dinheiro pra eles alguma vez, pra essas pessoas?

Mateus: Não, eu escutava da boca deles.

Promotor Eleitoral: Deles quem? Pode dizer os nomes.

Mateus: Do 45.

Promotor Eleitoral: Quem? Quem do 45?

Mateus: Volmir.

Promotor Eleitoral: Só?

Mateus: É, das rodinha deles…

Promotor Eleitoral: Quanto tempo o Senhor trabalhou? O Senhor chegou a trabalhar para o 45, assim, efetivamente? O que o Senhor fez pelo 45?

Mateus: Ah, tava atrás de voto, ali..., tudo..., né?

Promotor Eleitoral: O Senhor chegou a trabalhar desse jeito?

Mateus: Sim, mas nada de compra de votos, sabe?

Promotor Eleitoral: Quanto tempo o Senhor ficou batalhando pelo, por esse lado?

Mateus: Uns dez dias.

Promotor Eleitoral: Dez dias… E é nesse tempo que o Senhor, então, ouviu que essas pessoas teriam recebido valores?

Mateus: Isso.

Promotor Eleitoral: E o Senhor chegou a, inclusive.., quando passou essa lista, enfim, para o Sr. Eduardo, o senhor chegou a passar inclusive os valores que essas pessoas teriam recebido?

Mateus: Isso.

Promotor Eleitoral: Lembra de alguém (inaudível) valor?

Mateus: Ah, dificilmente… Lembro de um nome só, um amigo meu, um tal de Bigode.

Promotor Eleitoral: Quanto que ele teria recebido?

Mateus: R$ 300,00.

Promotor Eleitoral: E o Senhor chegou a elaborar uma lista, passar essa lista, daí, para o Senhor Eduardo e pro pessoal?

Mateus: Isso. Juntamente lá na casa, no sábado à tarde, uma semana antes da eleição, com esse pessoal ali. Só que quem não tava junto, juntamente ali, tava na piscina, era a esposa do Carlos Eduardo e a Letícia.

 

De acordo com a narrativa defensiva, Mateus Spegiorini teria trabalhado por cerca de 10 dias para a campanha do PSDB e recebido o valor de R$ 6.000,00, período durante o qual tomou conhecimento da compra de votos por aquela agremiação, ainda que sem participar do esquema ilícito. Após seu desligamento, causado por discussão pessoal, teria unido-se a seu irmão, Robson Spegiorini, e passado a atuar, uma semana antes da data do pleito, em prol da candidatura de Carlos Eduardo, fornecendo-lhe informações pormenorizadas sobre valores destinados, em dois momentos distintos, “antes” e “depois”, a 43 eleitores (26 nomes em uma folha e 17 em outra).

A versão revela-se completamente implausível.

Ressalta-se que, apesar do grande número de eleitores, por ocasião da audiência judicial, ocorrida cerca de um mês e meio após o fato, Mateus apenas se recordava de uma pessoa, o “Bigode”, o qual teria recebido R$ 300,00, mas que, na lista, consta como tendo percebido R$ 400,00 “antes”.

Ainda, trata-se de município de pequeno porte, em que o candidato se sagrou vitorioso com 214 votos, a terceira maior votação nominal, não sendo razoável o cabo eleitoral considerar 43 eleitores como “alguns nomes”, “poucos, duas folhas, mas eu não sei número da lista”.

Aliás, as informações repassadas, que teriam sido obtidas verbalmente pela testemunha, por meio de conversas, não se restringiriam aos nomes, pois havia também valores ou materiais, como “1 lata tinta”, “1000 tijolos”, “2 cx foguetes”, indicados nas colunas “depois” e “antes”, nesta última ainda figurando, em diversos casos, a informação “pago” ao lado do montante, de modo que a tabela se apresenta assaz complexa, com ao menos 172 dados.

Em que pese a suposta riqueza de minúcias que teriam sido transmitidas ao candidato, a testemunha somente soube declinar na audiência o nome de uma pessoa da lista que teria sido cooptada, e com o valor divergente daquele que aparece na planilha apreendida.

Ou seja, por um lado, Mateus dá mostras de que possua uma faculdade de memória invejável, que lhe permitiu apreender um conjunto detalhado de informações (nomes, valores prometidos a serem entregues antes e depois do pleito, bem como efetivo pagamento), por meio de conversas travadas durante poucos dias; por outro, demonstra ser incapaz de sequer se recordar do nome de mais de uma pessoa de uma lista com 46 eleitores da pequena localidade de Muçum.

Ainda, a alegação de que Mateus Spegiorini tenha fornecido informações com tamanho grau de precisão contrasta com sua declaração de que “provavelmente o partido contra tava comprando, e eu sabia aonde tava mais ou menos, pra nós tentar reverter o voto”, de sorte que seu testemunho deve ser, como apontado pela Procuradoria Regional Eleitoral, tomado com grande cautela, ainda que tenha se dado sob compromisso.

Por sua vez, Ivan Rodrigues, que declarou em audiência ter trabalhado na campanha de Carlos Eduardo e constou na planilha como cabo eleitoral, foi, diversamente, apto a declinar, de um total de sete eleitores, em relação aos quais teria sido designado para convencer a votar no recorrido, os nomes de dois eleitores (IDs 39294383 e 39294433):

Procurador dos Representados: Ivan, como foi tua participação na campanha do candidato Carlos Eduardo

Ivan Rodrigues: Na verdade eu conheço o Eduardo através do partido, né. A gente faz parte do mesmo partido, o MDB e na mesma ala do partido, na Juventude. E aí eu conheci o Eduardo através da Juventude, e me ofereci pra auxiliar na campanha, pra o que ele precisasse.

(…).

Procurador dos Representados: (inaudível) em algum momento houve oferecimento de uma vantagem, tentativa de compra de votos a algum eleitor?

Ivan Rodrigues: Não, de forma alguma.

Procurador dos Representados: Quem eram as outras pessoas que também ajudaram na campanha do candidato Carlos Eduardo?

Ivan Rodrigues: Do Eduardo... tinha o Tiago Bertamoni; o Diego Machado; o Paulinho, o sogro dele; o Barrense, Robson, e na última semana também chegou, nos ajudou ali no final o Mateus Spegiorini.

(…).

Procurador dos Representados: Que tipo de auxílio ele deu, (inaudível) convidado à campanha do Carlos Eduardo?

Ivan Rodrigues: Ele chegou com uma lista com nomes. Ele tinha vários papéis, com nomes e valores, assim... Alguns nomes ele lembrava de cabeça. Aí até o Dudu foi anotando. Pegou um caderno e foi anotando esses nomes e valores em um caderno, uma lista.

(…).

Procurador dos Representados: (…). Nesta lista existe uma tabela, com nome do eleitor, valores, cabo eleitoral. Nessas linhas existe cabo eleitoral Ivan. Qual era tua função? Por que teu nome constava ao lado de um possível eleitor, com valores ao lado marcado?

Ivan Rodrigues: Na verdade, os valores teriam sido combinados pela coligação do 45. Esses valores seriam repassados, ou foram repassados, enfim, para essas pessoas. E aí os nomes, os nossos nomes, o cabo eleitoral, a gente começou a dividir por afinidade. Então, por exemplo, assim, se tinha certa pessoa que eu era mais próximo, eu seria encarregado de ir atrás dessa pessoa, e virar o voto dessa pessoa, ir lá conversar e ver o que gente podia ver pra trazer o voto pro Carlos Eduardo.

Procurador dos Representados: Lembra de algum nome da lista que (inaudível) designação, procurar e pra (inaudível)?

Ivan Rodrigues: Sim, eu lembro. Tinha a Amanda Mainardi, a minha dinda também tá (inaudível) lista. Agora de cabeça, assim, (inaudível).

(…).

Procurador do Representante: (inaudível) essa lista. Sabe me dizer quem lavrou ela?

Ivan Rodrigues: O Dudu.

Procurador do Representante: É a letra dele?

Ivan Rodrigues: Sim.

Procurador do Representante: É isso que eu queria perguntar. E esse Mateus aqui do lado, é o Mateus Trojan, candidato a Prefeito, ou é o Mateus Spegiorini?

Ivan Rodrigues: Não, é o Mateus Trojan. Na verdade, a gente tinha alguns nomes na lista, eram os nomes mais delicados de se ver, de se chegar com o Prefeito também, né? Então, por isso, sempre se colocava se… era na verdade uma ênfase que se colocava no nome da pessoa, pra ir buscar o voto também pro Prefeito nesses casos. Além de conversar pro voto pro vereador, seria conversado também o voto pra Prefeito.

 

Noutro vértice, desafia a lógica a proposição que um candidato, nos últimos dias de campanha, tendo notícia da compra de votos por adversários políticos, deixe de tomar as providências cabíveis perante a Polícia Civil ou o Ministério Público, voltando-se exatamente para os eleitores aliciados, para buscar reverter a intenção de voto supostamente corrompida.

Ora, não há qualquer explicação nos autos para que tenham sido elaboradas as colunas pertinentes aos valores prometidos, antes e depois do pleito, bem como a anotação de pagamento, pois essas informações seriam absolutamente irrelevantes para o trabalho de persuasão desses votantes.

Sem explicação pelos recorrentes, também, a anotação de próprio punho de Carlos Eduardo no verso da lista: “Até a Cleci Couto tenho que pagar depois 2.250,00. 64 votos até a Cleci Couto” (ID 39292133, fl. 10).

Essa declaração, efetivamente, se constitui em prova cabal da conduta direta e pessoal de compra de votos pelo candidato recorrente.

Outrossim, na coluna “cabo eleitoral” da tabela constam os nomes Ivan, Berta, Uilian, Felipe, Diego, Barrense, Carina Couto, Nita, Bertamoni, Rozi, os quais seriam encarregados de “reverter o voto”.

Entretanto, Carina Couto também figura na primeira coluna, relacionada aos eleitores que teriam sido corrompidos pelo PSDB, com o registro na coluna “antes” de que lhe foi “pago” o montante de “175,00”, o que rotundamente demonstra a inconsistência da tese ventilada pelos recorrentes. Além daquela eleitora, Barrense e Nita também constam concomitantemente, de modo incongruente com a versão apresentada, nas duas colunas, “nome” e “cabo eleitoral”.

Demais disso, Veridiana Rachel Stieven, que consta na listagem como tendo recebido “250,00”, afirmou, por ocasião da audiência de inquirição de testemunhas, em que, arrolada pelos recorrentes, foi ouvida como informante, não ter recebido oferta de valor ou vantagem de candidato algum (ID 39295633):

Procurador dos Representados: A senhora em algum momento da campanha eleitoral, foi procurada pelo candidato Carlos Eduardo, pra pedir voto?

Veridiana Rachel Stieven: Sim. Não só por ele, como vários outros políticos.

Procurador dos Representados: O Carlos Eduardo te ofereceu algum valor, ou alguma vantagem em troca do teu voto?

Veridiana Rachel Stieven: Não.

Procurador dos Representados: Algum outro candidato te ofereceu?

Veridiana Rachel Stieven: Não.

Procurador dos Representados: No que que a senhora trabalha lá no (inaudível)?

Veridiana Rachel Stieven: (inaudível) a loja de conveniência do posto Viaduto.

 

Tal declaração não depõe a favor dos recorrentes, e sim o inverso, pois é mais um elemento a infirmar a teoria de que a planilha conteria dados de eleitores corrompidos pelo PSDB.

Noutro trilhar, não procede a alegação dos recorrentes de que houve equívoco na interpretação dos fatos pela magistrada a quo:

Além do mais, pelo depoimento da testemunha Ivan Rodrigues, é possível perceber que o sentenciante, equivoca-se novamente ao adotar em seu decisum parte do parecer do Ministério Público que interpretou de forma equivocada a prova produzida ao referir que a lista foi produzida pela coligação contrária nos seguintes termos:

“por diversas vezes a parceria É MATEUS, o qual indica que seja o candidato da coligação do representado. Assim, embora não se possa afirmar que houve a participação do candidato a majoritária, insta asseverar que se houve a elaboração da listagem pela outra coligação como pretende fazer crer a defesa do Procurador do Representante. Pergunta-se, por qual motivo consta o nome Mateus na lista como parceria, se a lista tinha sido elaborado pela coligação contrária?”

Vejam, Excelências, que em nenhum momento se alegou que a lista foi escrita pela coligação contrária; mas sim que as informações nela constantes são originárias de dados obtidos por meio da testemunha Mateus, como acima narrado e comprovado.

Situação que muda todo o panorama relatado e que simplesmente foi ignorado ou subsumido por uma inferência quando da sentença: “...ultrapassa a razoabilidade”.

Ademais, a própria sentença reconhece, ao mencionar o depoimento de Ivan Rodrigues que Mateus Spegiorini: “(...) chegou com uma lista com nomes e valores e alguns ele se lembrava de cabeça e o Dudu foi anotando e pegou um caderno e foi anotando esses nomes e valores em uma lista, em um caderno.”

Ora, se um dos principais argumentos da sentença está baseada em interpretação equivocada das provas produzidas em relação ao principal fato – elaboração da lista, é evidente que o resultado do julgado deve ser alterado, já que os fatos narrados como ocorridos não encontram qualquer lastro de prova nesses autos.

 

A juíza sentenciante assim se pronunciou a tal respeito:

Nesse ponto, destaco o que foi referido pelo Procurador do Representante em suas alegações finais sobre o que foi dito na audiência de instrução pelos apoiadores do representado, no sentido de que a lista teria sido elaborada com a intenção de reverter possíveis votos cujo apoio à chapa contrária acreditavam existir.

 

A pessoa denominada CARINA COUTO, contudo, consta na lista como eleitora e cabo eleitoral, com valores recebidos e pendentes de recebimento ao lado de seu nome, sendo certo que seu voto não era necessário “reverter”, afinal além de cabo eleitoral, a imagem da página da rede social Facebook realizada pelo candidato a prefeito “Mateus”, mesmo do representado, demonstra que Carina sempre apoiou a candidatura.

 

Ou seja, a afirmação da defesa ao tentar negar a autoria da listagem dos valores, atribuindo esta para Mateus Spegiorini que, conforme referido acima, disse não recordar quando ouvido em juízo, ultrapassa a razoabilidade.

 

Conforme bem referido pelo Ministério Público Eleitoral em suas alegações finais, “a leitura da listagem apreendida demonstra que as informações trazidas eram de um preciosismo, porquanto consta o nome e sobrenome de diversas pessoas, valores já pagos ou depois, quem seria o cabo eleitoral, bem como a parceira. Nesse ponto, insta indicar que por diversas vezes a parceria É MATEUS, o qual indica que seja o candidato da coligação do representado. Assim, embora não se possa afirmar que houve a participação do candidato a majoritária, insta asseverar que se houve a elaboração da listagem pela outra coligação como pretende fazer crer a defesa do Procurador do Representante. Pergunta-se, por qual motivo consta o nome Mateus na lista como parceria, se a lista tinha sido elaborado pela coligação contrária?”.

 

Reiterando, também, o que foi dito por MATEUS SPEGIORINI, este no seu depoimento também não esclareceu como foi elaborada a listagem de nomes, dizendo que o representado não fez anotações no dia. Carlos Eduardo, por sua vez, confirma ser suas as anotações.

 

Como se percebe, a magistrada bem compreendeu a alegação defensiva – de que as informações constantes da tabela são originárias de dados obtidos por meio da testemunha Mateus – e a rechaçou, tomando-a como inverossímil, conforme o excerto acima transcrito da sentença.

A ponderação do Ministério Público Eleitoral junto à instância a quo, acolhida no decisum, leva a crer que foi tomada a tabela em sua inteireza, incluindo os campos “parceria” e “cabo eleitoral”, como tendo sido elaborados a partir das informações de Mateus.

Conquanto os representados não tenham apontado quais os dados da planilha teriam sido escritos por Carlos Eduardo com base nas informações de Mateus e quais teriam sido criados pelo candidato, supõe-se que, nas entrelinhas da versão defensiva, as colunas “eleitor”, “antes”, “depois” e “pago” teriam sido escritas com informações oriundas de Mateus, e as colunas “cabo eleitoral” e “parceria” diriam respeito à contraofensiva do representado.

De qualquer sorte, essa circunstância, empregada como reforço argumentativo, não é essencial ao deslinde da causa, pois o que a magistrada acertadamente compreendeu ultrapassar a razoabilidade foi a versão de que Mateus Spegiorini teria fornecido os dados sem que, na audiência, meramente pudesse apontar nomes de pessoas elencadas na relação.

No pertinente à irresignação afeta à pena de multa, aplicada no montante de R$ 15.000,00 a Carlos Eduardo Ulmi, entendo, contrariamente ao sustentado no apelo, mostrar-se adequada em relação às balizas estipuladas no art. 109 da Resolução TSE n. 23.610/19, de R$ 1.064,10 a R$ 53.205,00, pois a prática envolveu extenso rol de eleitores, conspurcando a higidez de parcela do pleito proporcional, de modo que a sanção não se revela desproporcional.

De outra banda, o apelo interposto pelo MDB de Muçum volta-se contra o decisum que reconheceu a nulidade da votação recebida por Carlos Eduardo Ulmi, tanto para o candidato quanto para o partido, vazada nos seguintes termos (ID 44963593):

1. Da incidência da Resolução n. 23.611/19 do TSE.

Analisados os autos, verifica-se que a decisão embargada reconheceu a nulidade parcial dos votos, deixando de se manifestar acerca do fundamento jurídico suscitado pelo embargante em seu pedido inicial.

De fato, tratando-se de eleições proporcionais no município Muçum/RS, nas eleições 2020, deve ser aplicada a Resolução TSE n. 23.611/19, que alterou o regramento até então dispensado às hipóteses em que vereadores eleitos são cassados, após as eleições, por ações autônomas, nos termos dos arts. 195 e 198 do referido diploma.

Verifica-se, nessa toada, que a adoção de práticas comprometedoras da liberdade de sufrágio e da igualdade na disputa introduz verdadeiro elemento de incerteza no que tange à legitimidade e autenticidade da vontade manifestada pelos eleitores.

As interferências ilícitas afetam a normalidade do certame, de modo que, a fim de fazer prevalecer a legitimidade e a lisura do pleito, deverá haver a desconsideração dos votos viciados, nos termos da Resolução TSE n. 23.611/19, não se afigurando razoável que votos ilicitamente obtidos e assim reconhecidos por decisão judicial sejam aproveitados.

Assim, em eleições regidas pelo sistema proporcional, a cassação de mandato ou diploma em ação autônoma decorrente de ilícitos deve ensejar a anulação da votação recebida, tanto para o candidato como para o respectivo partido, afastando-se a aplicação da regra prevista no art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral.

Evidenciada a omissão, acolho os embargos no ponto, devendo incidir, na hipótese, o regramento contido no art. 198 da Resolução TSE n. 23.611/19, observando-se as ressalvas contidas em seus §§ 2º e 5º.

 

O MDB alega que o dispositivo aplicável à espécie é o art. 175 do Código Eleitoral, e não o art. 198 da Resolução TSE n. 23.611/19, tendo em vista que este diploma normativo foi editado em 19.12.2019, menos de um ano e dia da data do pleito, de modo a afrontar o art. 16 da Constituição Federal, que consagra o princípio da anterioridade, ademais de ter sido privilegiada regra infralegal em detrimento da Lei n. 4.737/65.

Não assiste razão à agremiação recorrente.

A Resolução TSE n. 23.611/19, ao estabelecer, em seu art. 198, a anulação para todos os efeitos dos votos dados a candidato cujo registro venha a ser cassado após a eleição, em ação autônoma, prestigiou as regras plasmadas nos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral, em detrimento do art. 175, §§ 3º e 4º, do mesmo Estatuto, cujos textos seguem:

Art. 222. É também anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação, uso de meios de que trata o art. 237, ou emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágios vedado por lei.

[...].

Art. 237. A interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade do voto, serão coibidos e punidos.

§ 1º O eleitor é parte legítima para denunciar os culpados e promover-lhes a responsabilidade, e a nenhum servidor público, inclusive de autarquia, de entidade paraestatal e de sociedade de economia mista, será lícito negar ou retardar ato de ofício tendente a esse fim.

§ 2º Qualquer eleitor ou partido político poderá se dirigir ao corregedor-geral ou regional, relatando fatos e indicando provas, e pedir abertura de investigação para apurar uso indevido do poder econômico, desvio ou abuso do poder de autoridade, em benefício de candidato ou de partido político.

§ 3º O corregedor, verificada a seriedade da denúncia procederá ou mandará proceder a investigações, regendo-se estas, no que lhes for aplicável, pela Lei nº 1.579 de 18 de março de 1952.

 

Logo, o art. 198 do diploma normativo em testilha tem por fundamento dispositivos do próprio Código Eleitoral interpretados de forma sistemática pela Corte Superior, não se tratando de norma independente e autônoma.

Demais disso, o TSE, já em 2020, vinha aplicando às eleições de 2018 tal entendimento, conforme os seguintes julgados:

ELEIÇÕES 2018. RECURSOS ORDINÁRIOS. AGRAVOS INTERNOS. DEPUTADO FEDERAL E DEPUTADO ESTADUAL. AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. JULGAMENTO CONJUNTO.

(...)

ELEIÇÕES PROPORCIONAIS. CASSAÇÃO DE MANDATO EM AÇÃO AUTÔNOMA PELA PRÁTICA DE ILÍCITO. ANULAÇÃO TOTAL DA VOTAÇÃO. POSSIBILIDADE DE APROVEITAMENTO PARCIAL, PELO PARTIDO. PRESERVAÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA. APLICAÇÃO DO MARCO JURÍDICO REGENTE DO PLEITO EM QUESTÃO.

DOS AGRAVOS INTERNOS

(...)

DO DESTINO DOS VOTOS DIRECIONADOS A CANDIDATOS CASSADOS EM ELEIÇÕES PROPORCIONAIS EM MOMENTO POSTERIOR À VOTAÇÃO

1. A despeito da identificação de uma tendência pela aplicação do disposto no art. 175, § 4º, do Código Eleitoral, existem nesta Corte precedentes solucionados sob o pálio do art. 222 do mesmo diploma.

2. Em adição, a aprovação do art. 198, inc. II, al "b", § 5º, da Resolução TSE n. 23.611/19 pode ser interpretada como sinal indicativo de uma possível mudança de percepção quanto ao destino dos votos amealhados por vereadores ou deputados cassados por parte da composição atual deste Tribunal.

3. Dentro desse panorama, interessa que o tema dos efeitos da anulação de votos em pleitos proporcionais seja problematizado, com o fim de traçar uma linha de entendimento clara e segura, na esteira do que preconiza o art. 926 do Código de Processo Civil.

4. A matéria diz com o tratamento jurídico dos votos obtidos por candidatos cassados postumamente em pleitos proporcionais, os quais podem, a depender da perspectiva adotada, ser completamente anulados (culminando com o refazimento dos cálculos dos quocientes eleitoral e partidário) ou, alternativamente, ser aproveitados pelo partido ou coligação pelo qual concorreram, hipótese em que os cargos vacantes seriam ocupados pelos primeiros suplentes das respectivas listas.

5. As regras plasmadas nos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral são especiais em relação ao cânone do art. 175, § 4º, tendo em vista que disciplinam, especificamente, situações de extinção anômala ocasionadas pela incidência de faltas eleitorais de primeira grandeza. Os dois primeiros artigos, nessa toada, cobram aplicação peculiar e, portanto, prevalente no âmbito do direito eleitoral sancionador, ao tempo em que a norma residual (art. 175) prepondera em seu campo específico, relacionado com a análise da habilitação jurídica dos indivíduos que almejam cargos de representação eletiva.

6. Também assim, o apartamento dos espectros de incidência é denunciado a partir de um exame topológico, o qual revela que, na quadra do Código, o art. 175 situa-se em apartado geral, direcionado à "Apuração das urnas" (Capítulo II), enquanto os arts. 222 e 237 encontram morada em um segmento particularmente voltado à regulação dos efeitos das "Nulidades da Votação" (Capítulo IV).

7. Em conjugação com os critérios mencionados, vem a lanço a relevância da interpretação sistemática no processo de decodificação do sentido das normas eleitorais. Por esse critério, cabe ao intérprete recordar que o ordenamento eleitoral é mais do que um mero agregado de normas, consubstanciando, pelo contrário, uma estrutura coerente, dentro da qual as regras componentes devem, sempre que possível, ser compreendidas como elementos que convivem em harmônica conexão.

8. Assim sendo, na solução de celeumas envolventes de regras eleitorais, cumpre privilegiar leituras que permitam interpretar duas ou mais normas supostamente em conflito de maneira tal que a incompatibilidade desapareça.

9. Ao lado desses argumentos, cabe observar que o § 4º do art. 175 do Código Eleitoral autoriza o aproveitamento do apoio eleitoral pelo partido do candidato excluído com esteio na ideia de que o simples descumprimento de requisito essencial para o exercício do direito à candidatura não enseja dúvidas nem suspeitas sobre a retidão da vontade externada pelo eleitorado.

10. Em contrapartida, a intervenção de práticas comprometedoras da liberdade de sufrágio ou da igualdade na disputa introduz, nessa equação, um sério elemento de incerteza que, na prática, impede que as autoridades judiciais possam presumir a existência de uma reta congruência entre a expressão matemática das urnas e a autêntica vontade do corpo político.

11. A fraude, a coação, o abuso de poder e os demais comportamentos proscritos pelos arts. 222 e 237 do Código Eleitoral constituem, em essência, circunstâncias que comprometem, em um nível micro, o elemento volitivo da escolha política e, em um nível macro, a validade jurídica do conjunto de manifestações apuradas em um certo sentido. Como decorrência, soa incongruente conceber a existência de votos que, inequivocamente viciados por uma determinada mirada, ressaiam imaculados e juridicamente válidos quando vistos por outro ângulo.

12. Embora a saída autorizada pelo art. 175, § 4º, favoreça a lógica do aproveitamento do voto, na medida em que a manifestação cívica resulta prestigiada, minimamente, pela validação da componente partidária da escolha, interferências ilícitas nos trilhos do certame afetam a sua normalidade e, consequentemente, impossibilitam a descoberta da autêntica opinião dos votantes.

13. As decisões judiciais que reconhecem práticas comprometedoras da legitimidade eleitoral têm como efeito a quebra do paradigma da intangibilidade da vontade popular. A Constituição Federal assegura a prevalência da decisão majoritária apenas na quadra de mandatos obtidos sem abuso. Depreende-se da Carta constitucional que a legitimidade é um valor que se sobrepõe ao princípio da maioria. Precedentes.

14. Nesse panorama, em casos como o que se apresenta, a anulação do apoio obtido se revela aconselhável, como reflexo do princípio da proibição do falseamento da vontade popular.

15. Em vista do que antecede, em eleições regidas pelo sistema proporcional, a cassação de mandato ou diploma em ação autônoma decorrente de ilícitos deve ensejar a anulação da votação recebida, tanto para o candidato como para o respectivo partido, ficando afastada a aplicação da solução de utilidade parcial plasmada no art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral.

16. O não conhecimento do recurso interposto pelos assistentes simples determina, no particular, a manutenção da destinação dos votos, tal como determinada pelo acórdão regional, como consequência da inexistência de devolução da matéria específica.

(...)

(RO-El n. 0601423-80.2018.6.01.0000/AC, Acórdão, Relator Min. Edson Fachin, Publicação: DJE – Diário da justiça eletrônico, Tomo 253, Data 04.12.2020.).

 

REFERENDO. CONCESSÃO. TUTELA DE URGÊNCIA. MANDADO DE SEGURANÇA. ELEIÇÕES 2018. DEPUTADO ESTADUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. SUPLENTE. RETOTALIZAÇÃO. MANUTENÇÃO DO DECISUM.

1. Decisão monocrática em mandado de segurança, no curso do recesso forense, que se submete ao referendo do Plenário, por meio da qual o e. Presidente em exercício determinou a retotalização dos votos do cargo de deputado estadual de Rondônia nas Eleições 2018, haja vista a cassação do diploma do titular por prática de ilícito eleitoral.

2. Conforme decidido por esta Corte no RO 0601423–80/AC, Rel. Min. Edson Fachin, DJE de 04.12.2020, "[...] em eleições regidas pelo sistema proporcional, a cassação de mandato ou diploma em ação autônoma decorrente de ilícitos deve ensejar a anulação da votação recebida, tanto para o candidato como para o respectivo partido, ficando afastada a aplicação da solução de utilidade parcial plasmada no art. 175, §§ 3º e 4º, do Código Eleitoral".

3. Decisão que se submete a referendo nos termos e limites da fundamentação.

(MSCiv n. 0600316-23.2021.6.00.0000/RO, Acórdão, Relator Min. Luis Felipe Salomão, Publicação: DJE – Diário da justiça eletrônico, Tomo 200, Data 28.10.2021.).

 

Portanto, devem ser declarados nulos, para todos os fins, os votos atribuídos a Carlos Eduardo Ulmi, e deve ser realizado o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, por ser inaplicável à espécie o disposto no art. 175, § 4º, do Código Eleitoral por força do disposto no art. 198, inc. II, al. "b", da Resolução TSE n. 23.611/19.

Por derradeiro, no que respeita ao pedido veiculado pelo PSDB de Muçum em suas contrarrazões (IDs 44963600 e 44963604), de condenação dos recorrentes por litigância de má-fé, por “alteração da verdade dos fatos”, não há de ser acolhido.

A despeito da implausibilidade da tese defensiva, houve típico exercício do direto de defesa e do contraditório, pois não vislumbro no comportamento dos recorrentes elementos indicativos do dolo processual de alteração da verdade dos fatos a justificarem a imposição de sancionamento.

Quanto a esse tópico, trago à colação a manifestação da Procuradoria Regional Eleitoral (ID 45023685), o qual acolho como razões de decidir:

Nada obstante, a diversidade de teses defensivas não desborda do direito de defesa da parte, uma vez que estas foram deduzidas nos momentos processuais próprios e limitaram-se a argumentações.

“Como é sabido, a jurisprudência do STJ é no sentido de que o exercício legítimo do contraditório e da ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (art. 5º, inc. LV, da CF/88), não configura litigância de má-fé, salvo se demonstrada a intenção da parte de obstruir o trâmite regular do processo (dolo e/ou culpa grave), a configurar conduta desleal por abuso de direito. (STJ, EDcl no AgInt no AREsp n. 1.730.542/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 15.02.2022, DJe de 01.8.2022.)”

Em tema de abuso do direito de defesa, são fatos indicativos da má-fé processual, por exemplo, a interposição de recursos protelatórios e o requerimento de produção de provas sem utilidade. Nada disso se verifica no presente caso, onde o investigado não nega os fatos, apenas procura apresentar uma explicação plausível para a sua ocorrência.

Em tema de abuso do direito de defesa, são fatos indicativos da má-fé processual, por exemplo, a interposição de recursos protelatórios e o requerimento de produção de provas sem utilidade. Nada disso se verifica no presente caso, onde o investigado não nega os fatos, apenas procura apresentar uma explicação plausível para a sua ocorrência.

 

Dessa forma, na esteira do parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, deve ser negado provimento aos recursos, mantendo-se íntegra a sentença que julgou procedente a ação.

 

ANTE O EXPOSTO, superada a matéria prefacial, no mérito, VOTO pelo desprovimento dos recursos, ao efeito de manter a condenação de Carlos Eduardo Ulmi, cumulativamente, ao pagamento de multa no valor de R$ 15.000,00 e à cassação do seu diploma para o cargo de vereador, declarando nulos os votos a ele atribuídos para todos os efeitos, por infração ao disposto no art. 41-A, caput, da Lei n. 9.504/97.

Após o esgotamento da instância ordinária, comunique-se à respectiva Zona Eleitoral para cumprimento, registro das sanções nos sistemas pertinentes e recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, nos termos da fundamentação.