RCand - 0600749-08.2022.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 09/09/2022 às 14:00

VOTO

Eminentes Colegas.

O Ministério Público Eleitoral impugnou o pedido de registro de candidatura de RAFAEL REIS BARROS ao fundamento de ocorrência de inelegibilidade prevista no art. 1º, inc. I, al. “k”, da LC n. 64/90, com a redação da LC n. 135/10 (Lei da Ficha Limpa). Aduz que o pretenso candidato não possui condições de elegibilidade, eis que ainda não transcorreu o prazo de oito anos subsequentes ao término da legislatura relacionada ao mandato para o qual fora eleito, e renunciara após a instauração de processo de cassação de mandato.

Previamente à análise do mérito da causa, entendo fundamental tratar da indicada ocorrência de cerceamento de defesa.

Preliminar. Cerceamento de defesa.

O presente tópico, sublinho, já seria dotado de suficiente gravidade por tratar de direito presente no catálogo dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal. A ampla defesa é um dos vetores do Estado Democrático de Direito.

Entendo, todavia, que a dimensão se torna ainda maior em casos como o sob exame, que versa sobre a análise da possibilidade, ou impossibilidade, de exercício de direitos políticos, nomeadamente o direito de ser votado, igualmente dotado de fundamentalidade pelo legislador constituinte.

Dessa forma, se ao Poder Judiciário incumbe tomar todas as medidas de proteção à ampla defesa, cabe igualmente aos jurisdicionados a responsabilidade de reservar a alegação de malferimento ao direito de defesa naqueles casos que sejam, de fato, identificadas características de limite indevido ao exercício do direito.

Não é o caso dos autos, em que a alegação de cerceamento de defesa vem lançada de maneira descuidada, para dizer o mínimo.

Inicialmente, RAFAEL REIS BARROS requereu, em contestação, forma literal:

(...)

Por fim, com a finalidade de se fazer provar o alegado, requer que seja designada audiência de instrução, (RESOLUÇÃO Nº 23.675, DE 16 DE DEZEMBRO DE 2021 – art. 41)

Art. 41. Terminado o prazo para impugnação, a candidata, o candidato, o partido político, a federação ou a coligação devem ser citadas ou citados, na forma do art. 38 desta Resolução, para, no prazo de 7 (sete) dias, contestá-la ou se manifestar sobre a notícia de inelegibilidade, juntar documentos, indicar rol de testemunhas e requerer a produção de outras provas, inclusive documentais, que se encontrarem em poder de terceiras ou de terceiros ou de repartições públicas ou em procedimentos judiciais ou administrativos, salvo os processos que estiverem tramitando em segredo de justiça ( LC nº 64/1990, art. 4º ).

Ante o exposto, REQUER: 1. Que seja recebida a presente contestação, com a designação de audiência de instrução para oitiva das testemunhas abaixo arroladas;

(...)

 

Claro está que o pedido foi feito em termos genéricos, até mesmo óbvios, pois uma produção probatória tem sempre a “(...) finalidade de se fazer prova do alegado”.

Diante do pedido, foi proferida a seguinte decisão:

Vistos.

RAFAEL REIS BARROS, via PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO, apresentou requerimento de registro de candidatura, impugnado via ação própria – AIRC, pela Procuradoria Regional Eleitoral.

O impugnado aproveitou o prazo de defesa e apresentou contestação, ID 45055824. Na oportunidade, requereu a produção de provas, dentre elas a testemunhal.

Concedo o prazo de 48 horas, o qual converto em 2 (dois) dias, para que o impugnado apresente de forma especificada o ponto controverso que pretende dirimir com a produção de prova testemunhal.

 

Em resposta, o impugnado apresentou a seguinte justificativa, novamente literal:

RAFAEL REIS BARROS, já qualificado nos autos da Ação de Impugnação de Registro de Candidatura, informar que arrolou as testemunhas com o objetivo de fazer prova de sua incomunicabilidade, eis que todas eram ocupantes de Cargo Eletivo junto ao Legislativo daquele ano, bem como essas testemunhas poderão elucidar eventuais dúvidas que venham a persistir.

 

A decisão de indeferimento do pedido de produção de prova testemunhal foi lançada nos seguintes termos:

(...)

O impugnado, RAFAEL REIS BARROS, requereu a produção de prova testemunhal, e a Procuradoria Regional Eleitoral manifestou-se contrariamente, em promoção.

O vetor primordial para o deferimento ou indeferimento de um pedido de determinada prova é a utilidade. O julgador deve, ainda em hipótese, analisar se a prova requerida colaborará, mesmo que minimamente, para a construção da decisão mais adequada, justa, ao caso concreto.

Na presente situação, adianto que indefiro a produção de prova testemunhal requerida pelo impugnado, precisamente em razão de sua inutilidade.

E o fundamento é simples, de ordem lógica. RAFAEL REIS BARROS sustenta, em síntese, ter renunciado ao cargo de Prefeito de Rio Pardo sem a ciência de que precedentemente havia sido desencadeado processo de cassação na Câmara de Vereadores, e a situação objeto de prova testemunhal seria a alegada incomunicabilidade do impugnado no período dos acontecimentos, bem como "eventuais dúvidas que venham a persistir".

Inviável.

Ora, tanto a prisão quanto as circunstâncias que a rodearam (necessidade de isolamento devido à pandemia causada pela COVID-19) estão bem documentadas nos autos, tratando-se inclusive de fato incontroverso a partir do que se depreende das manifestações da Procuradoria Regional Eleitoral e não adentro à questão da validade jurídica da exceção de "reserva mental" trazida pelo impugnado, que será tema específico da decisão de mérito a ser exarada na presente demanda.

Ademais, e aqui reside a questão principal, as testemunhas arroladas não poderiam sequer em tese afiançar a incomunicabilidade absoluta do impugnado, válida para toda e qualquer pessoa, mas tão somente declarar que elas, testemunhas, não conversaram com RAFAEL naqueles dias.

Assim, pelos motivos expostos, INDEFIRO o pedido de produção de prova testemunhal, e declaro encerrada a fase instrutória.

 

Nas alegações finais, a indicação de cerceamento de defesa vem nos seguintes termos:

(...)

A (sic) Impugnado postulou o interesse na produção de prova, entre elas a oitiva de testemunha, sendo que Vossa Excelência entendeu não ser ao caso aplicável. Nesse sentido, HELY LOPES MEIRELLES destaca que “a defesa é garantia constitucional de todos os acusados, em processo judicial ou administrativo e compreende a ciência da acusação, a vista dos autos na repartição, a oportunidade para oferecimento de contestação e provas, a inquirição e reperguntas de testemunhas e a observância do devido processo legal (due process of law). É um princípio universal nos Estados de Direito, que não admite postergação nem restrições na sua aplicação”.

Dessa forma a defesa do Impugnado entende que houve cerceamento de defesa.

 

Ou seja, mostra-se nítido que a alegação de cerceamento de defesa, no caso dos autos, é usada de maneira aleatória e lacônica. Após o indeferimento fundamentado da produção de prova testemunhal, o impugnado apresenta uma argumentação que sequer estabelece dialética, pois não ataca a fundamentação da decisão.

Apenas lança a pecha do cerceamento, cita uma lição doutrinária legítima e incontestável, de um grande doutrinador, mas que não tem relação concreta com as circunstâncias, e afirma que “entende que houve cerceamento de defesa”.

Não rebateu, contudo, o cerne da questão: de que modo os “ocupantes de cargo eletivo junto ao Legislativo daquele ano”, arrolados como testemunhas, poderiam fazer prova da incomunicabilidade de RAFAEL REIS BARROS, no período compreendido entre a abertura do processo de cassação e a renúncia ao cargo de Prefeito?

E não rebateu porque o pedido de produção testemunhal desafiou a lógica. Por óbvio que as testemunhas somente poderiam relatar por si, sendo impossível relatar a alegada incomunicabilidade em relação a outras pessoas, por exemplo, funcionários da casa prisional na qual RAFAEL se encontrava, após ter prisão decretada pelo Tribunal Regional Federal da 4º Região, em desdobramento da Operação “Camilo”, a qual desestruturou um esquema fraudulento de desvio de recursos na área da saúde, composto por crimes de fraude à licitação, peculato, corrupção passiva, organização criminosa, ocultação de bens, crime de responsabilidade e de desobediência.

Ademais, como já indicado na decisão de indeferimento, as circunstâncias indicadas para a alegada incomunicabilidade encontram-se bem esclarecidas nos autos, em documentos, de modo que não há controvérsia de que o impugnado se encontrava preso em período que exigia, dos detentos, quarentena em razão da COVID-19.

Ou seja, sequer se trata de ponto controverso, e ainda assim o impugnado invoca cerceamento de defesa, o que só reforça a noção já existente de que o pedido de produção de prova testemunhal, em verdade, continha em si mero caráter protelatório, no bojo de um processo que exige celeridade.

Inviável, portanto, sob diversos aspectos, a identificação de cerceamento de defesa. Houve, na verdade, o uso banalizado de alegação de cunho grave.

Até mesmo em respeito a princípios como o dever de boa-fé processual e colaboração entre as partes, as prerrogativas do direito de defesa devem ser exercidas com técnica e, acima de tudo, lealdade.

Afasto a preliminar.

Mérito.

Como referido, o Ministério Público Eleitoral apresentou impugnação à candidatura de RAFAEL REIS BARROS, ao entender incidente a hipótese prevista no art. 1º, inc. I, al. "k", da Lei Complementar n. 64/90.

Com razão.

A norma tem a seguinte redação:

Art. 1º. São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

k) o Presidente da República, o Governador de Estado e do Distrito Federal, o Prefeito, os membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa, das Câmaras Municipais, que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal ou da Lei Orgânica do Município, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos 8 (oito) anos subsequentes ao término da legislatura; (Incluída pela LC 135/10, de 04.6.10)

 

Até mesmo pelos argumentos defensivos sobre a “intenção do legislador”, inicialmente colho da doutrina de Rodrigo López Zilio passagem que bem elucida a questão:

(...) Essa avaliação da Justiça Eleitoral, em juízo de cognição restrita, deve se restringir a aferir presença, ou não, dos requisitos formais (…) O Juízo de avaliação da Justiça Eleitoral é efetuado em cognição sumária, a partir de critério objetivo (ou seja, houve, ou não, renúncia após o oferecimento da petição capaz de autorizar a abertura do processo), sendo despicienda qualquer alegação do representado acerca do desconhecimento da existência de processo em seu desfavor. (Direito Eleitoral, JusPodivm. Salvador, 7ª Edição, 2020, páginas 308 e 309).

 

Destaco: conforme o doutrinador, é despicienda qualquer alegação do representado acerca do desconhecimento da existência de processo em seu desfavor.

Sigo na doutrina para citar também José Jairo Gomes que, ao analisar a redação legal, leciona ser inclusive dispensável a instauração em si mesma de processo pelo órgão competente, pois “basta que a petição seja apta ou hábil para a instauração, juízo de valor esse a ser formulado pelo destinatário da petição” (Direito Eleitoral. São Paulo. Atlas, 17ª Ed. página 317).

Ou seja, é indiscutível o caráter objetivo da regra em questão, o qual prescinde de outros elementos, sobretudo aqueles relacionados a elementos volitivos, de motivação do pedido de renúncia.

Nesse norte é, aliás, o posicionamento claro do Tribunal Superior Eleitoral:

ELEIÇÕES 2020. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. PREFEITO. PRIMEIRO COLOCADO. INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, k, da LC 64/90. SÚMULAS 24 E 28/TSE. DESPROVIMENTO. 1. A inelegibilidade prevista no art. 1º, I, k, da LC 64/90 possui critério objetivo para sua incidência, ou seja, basta a renúncia do cargo eletivo em momento posterior ao oferecimento de qualquer petição apta a gerar abertura de processo político–administrativo de perda de mandato. 2. A argumentação recursal traz versão dos fatos diversa da exposta no acórdão, de modo que o acolhimento do recurso passa necessariamente pela revisão do conjunto fático–probatório. Incidência da Súmula 24 desta CORTE. 3. Agravo Regimental desprovido.

(TSE - REspEl: 06001637620206160162 NOVA PRATA DO IGUAÇU - PR 060016376, Relator: Min. Alexandre de Moraes, Data de Julgamento: 11/03/2021, Data de Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 52.) (Grifei.)

 

O entendimento não configura novidade, aliás:

 

ELEIÇÕES 2016. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. VEREADOR. RENÚNCIA. ART. 1º, I, K, DA LC 64/90.

1. A conclusão da Corte de origem de que, na ocasião da renúncia do candidato, estava em curso procedimento que poderia resultar na cassação do seu mandato não pode ser revista sem novo exame das provas juntadas aos autos, providência inviável em sede de recurso especial, a teor da Súmula 24 deste Tribunal.

2. O fato de o aludido procedimento ter sido apresentado diretamente perante o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, e não perante a Mesa Diretora da Câmara Legislativa, órgão competente para processá-lo, configura mera irregularidade procedimental, não suficiente para macular todo o procedimento, sobretudo porque não houve prejuízo ao candidato.

3. Não compete à Justiça Eleitoral adentrar questões interna corporis referentes ao trâmite do procedimento instaurado no Poder Legislativo.

4. A jurisprudência deste Tribunal é no sentido de que, para a incidência da alínea k do inciso I do art. 1º da LC 64/90, é desnecessário o conhecimento oficial do parlamentar acerca do oferecimento de representação perante a Câmara Legislativa. Precedentes.

Agravo regimental a que se nega provimento.

(REspEl n. 14953, Acórdão, Relator Min. Henrique Neves, DJE de 10.03.2017, Página 89)

 

E a linha do tempo no caso sob exame é bastante clara.

1. Ata de instauração de Comissão Processante, solicitada pelo Requerimento n. 0026/20, em 10.6.2020 (página 102 do ID 45042433);

2. Carta de Renúncia de Mandato de Rafael Reis Barros, data de assinatura 19.6.2020, autenticada em 23.6.2020.

Ou seja, considerando-se o lapso de tempo mais favorável ao impugnado (pois no dia 08.6.2020, página 107 do ID 45042433, o processo de cassação foi instalado, dois dias antes do início dos trabalhos da Comissão Processante), houve ao menos 9 (nove) dias entre um ato oficial com vistas à cassação do mandato de RAFAEL e a apresentação da carta de renúncia.

Essa é a situação objetiva suficiente para a incidência da causa de inelegibilidade, pois a renúncia de RAFAEL REIS BARROS ocorreu depois, bem depois, da instauração do processo de cassação, sendo suficiente para o juízo de procedência da ação de impugnação.

No que diz respeito às razões defensivas, exclusivamente a título de argumentação, exatamente porque os elementos de subsunção da norma aos fatos já se encontram todos presentes, a versão de “ignorância” quanto à abertura do processo de cassação pela Câmara de Vereadores de Rio Pardo, invocada por RAFAEL, não é apenas inútil (pois demonstrado que o elemento subjetivo não se encontra dentre os pressupostos de incidência da norma), mas é também inconsistente no mundo dos fatos, e absolutamente inverossímil.

Explico.

O documento de renúncia, alegadamente assinado no dia 19.6.2022, não se trata de um manuscrito. Ele nitidamente foi elaborado em um computador, e obviamente demandou impressão. Tais maquinários de informática certamente não integravam o mobiliário da cela prisional de RAFAEL no período de alegada absoluta incomunicabilidade com o “mundo exterior”, da qual lança mão o impugnado para se defender. Está claro que, mesmo nos dias em que esteve sob o regime de quarentena da COVID-19, RAFAEL teve contato com outras pessoas, e a notícia da abertura de processo de cassação na Câmara de Vereadores poderia ser dada ao impugnado em poucos segundos, em apenas uma frase.

Ademais, a “quarentena” durou até, no máximo, o dia 10.6.2020 (RAFAEL foi preso em 27.5.2020), de maneira que houve ao menos 9 dias, repito, de comunicação natural dentro do sistema prisional, entre a Ata da Instauração da Comissão Processante (ato público) e a carta de renúncia.

De todo modo, repito, a circunstância é periférica, e não pertence aos elementos necessários ao deslinde da demanda.

A título de desfecho, indico que o argumento de desobediência ao art. 58, inc. VI, da Lei Orgânica do Município de Rio Pardo (desobediência quanto ao mandamento de comunicação do processo de cassação à Justiça Eleitoral) é despido de relevância, como bem assenta a Procuradoria Regional Eleitoral, pois o processo de cassação foi arquivado por perda de objeto exatamente em decorrência da renúncia prontamente apresentada, poucos dias após a abertura do processo, de modo que é impossível aferir se, afinal de contas, a norma seria ou não obedecida pelo Presidente da Câmara de Vereadores de Rio Pardo.

 

Pelo exposto, VOTO pela procedência da Ação de Impugnação ao Registro de Candidatura movida pelo Ministério Público Eleitoral contra RAFAEL REIS BARROS e, portanto, pelo indeferimento do registro de candidatura do pretenso candidato, tendo em vista a ocorrência da hipótese de inelegibilidade prevista no art. 1º, inc. I, al. "k", da Lei Complementar n. 64/90.