REl - 0600511-65.2024.6.21.0049 - Voto Relator(a) - Sessão: 05/08/2025 às 16:00

VOTO

Tempestividade.

O recurso é tempestivo, obedece ao prazo de três dias concedido pela legislação, art. 258 do Código Eleitoral, e atende aos demais pressupostos processuais, de forma que está a merecer conhecimento.

Fundamentos. Abuso de poder. 

O sistema legislativo busca a proteção da normalidade e da legitimidade do pleito, bem como o resguardo da vontade do eleitor, para que não seja alcançada pela nefasta prática do abuso de poder. No caso posto, e conforme alega a recorrente, a situação que configuraria a prática de abuso de poder político e econômico de parte das candidaturas de LUCAS GONÇALVES MENESES e SANDRA REGINA MARCOLLA WEBER, vencedoras das Eleições Majoritárias de 2024, no Município de São Gabriel, seria o exercício simultâneo da sra. Luza Maria Gomes Machado como fiscal da Coligação "São Gabriel nos Une" e secretária de mesa na seção eleitoral n. 213 pelo período de cerca de 3 (três) horas.

A Constituição Federal, art. 14, § 9º, dispõe:

Art. 14. (…)

§ 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

 

E, para a configuração do abuso de poder deve ser considerada a gravidade da conduta, sem a necessidade da demonstração de que o resultado das urnas fora – ou poderia ter sido - influenciado. É o que preconiza o art. 22, inc. XVI, da Lei Complementar n. 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito: (...). (Grifei.)

 

Nesse sentido é também a posição da doutrina, aqui representada pela lição de Rodrigo Lopez ZILIO:

O relevante, in casu, é a demonstração é a demonstração de que o fato teve gravidade suficiente para violar o bem jurídico que é tutelado, qual seja, a legitimidade e a normalidade das eleições. Vale dizer, é bastante claro que a gravidade como critério de aferição do abuso de poder apresenta uma característica de correlação com o pleito, ou seja, tem-se por necessário examinar o fato imputado como abuso de poder e perscrutar a sua relação com a eleição, ainda que essa análise não seja realizada sob um aspecto puramente matemático. (Manual de Direito Eleitoral. São Paulo: JusPodivm, 10ª ed. 2024, p. 756). (Grifei.)

 

Com tal sistemática - que pode ser denominada "gradiente da gravidade" -, a lupa do julgador passou a examinar as circunstâncias do ato tido como abusivo - quem, quando, como, onde, por que - com o fito de avaliar diversos fatores, dentre os quais a existência de repercussão na legitimidade e normalidade das eleições e o grau de reprovabilidade da conduta sob o ponto de vista social, em exame do meio fático e do meio normativo sob aspectos quantitativos e qualitativos (em lição de ALVIM, Frederico, in Abuso de Poder nas competições eleitorais. Curitiba, Juruá Editora, 2019).

Nessa ordem de ideias, a análise da gravidade se trata de uma questão de ser "menos" ou "mais", e não um dilema dual, binário de "ser" ou "não ser".  

É certo, também, que o Tribunal Superior Eleitoral exige prova contundente, soberana, para a condenação por abuso de poder:

ELEIÇÕES 2016. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO ELEITORAL. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES TEMPORÁRIOS. CHEFE DO PODER EXECUTIVO. CARACTERIZAÇÃO. CONDUTA VEDADA. ART. 73, V, DA LEI 9.504/1997. MULTA. INEXISTÊNCIA. PROVA. BENEFÍCIO. CANDIDATO. ABUSO DO PODER POLÍTICO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. 1. A caracterização da prática do abuso do poder político exige a presença de um robusto conjunto probatório nos autos apto a demonstrar que o investigado utilizou–se indevidamente do seu cargo público para angariar vantagens pra si ou para outrem. 2. Na espécie, não há provas de que as contratações de servidores temporários pelo chefe do poder executivo, conduta devidamente sancionada com multa pecuniária por esta Justiça especializada nos termos do art. 73, V, da Lei n. 9.504/1997, violou a legitimidade e lisura do pleito, o que desautoriza reconhecer a prática do abuso do poder político. 3. AIJE. Recurso especial de Charles Fernandes provido parcialmente para afastar a inelegibilidade, mantida a multa pecuniária pela prática de conduta vedada a agente público. 4. AIME. Agravos prejudicados devido ao término dos mandatos.

(TSE - REspEl: 20006 GUANAMBI - BA, Relator.: Min. Luís Roberto Barroso, Data de Julgamento: 16/12/2021, Data de Publicação: 22/03/2022) (Grifei.)

 

Com tais premissas fáticas, legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, passo ao exame do caso propriamente dito e indico que os recortes conceituais acima explicitados serão fundamentais para a resolução da demanda.

Mérito do recurso.

Colho, das razões recursais, a narrativa dos fatos:

“A sentença recorrida analisou ação que apontava o exercício simultâneo da Sra. Luza Maria Gomes Machado como fiscal da Coligação "São Gabriel nos Une" e secretária de mesa na seção eleitoral nº 213. Acrescenta-se que a fiscal estava com crachá que a identificava como fiscal nas cores da coligação do candidato Lucas Gonçalves Menezes e foi escolhida diretamente por ele e sua coligação, o que demonstra sua posição como militante de confiança e devidamente instruída para influenciar o pleito eleitoral. A presença da fiscal, identificada como membro ativo da coligação recorrida, comprometeu a imparcialidade e regularidade do pleito. Adicionalmente, São Gabriel é um município pequeno, onde a diferença de votos foi extremamente reduzida, e há mais de uma dezena de AIJEs protocoladas contra a mesma coligação, reforçando o padrão de irregularidades.” (Id 45949064) (Grifei.)

 

Como referido, o juízo da origem entendeu por declarar a inépcia da petição inicial e extinguir o feito sem resolução do mérito, forte no art. 485, inc. I, do Código de Processo Civil. Em suma, entendeu incabível a veiculação da demanda de investigação judicial eleitoral para a apuração dos fatos narrados – pois considerou que “o quadro fático descrito na inicial não é suficiente para a configuração de abuso de poder político ou econômico, pois a conduta não ostenta repercussão e gravidade capaz de acarretar quebra na normalidade e legitimidade das eleições que fundamentam a aplicação das penalidades insculpidas no art. 22, caput, da LC n. 64/90”.

Antecipo – com a devida vênia do posicionamento externado pela d. Procuradoria Regional Eleitoral – que o recurso não merece provimento. A ação movida não possui qualquer chance de êxito, mesmo que desenvolvida à exaustão a apuração de fatos. O não provimento se dá, conforme se verá, por fundamento diverso daquele exposto na sentença recorrida.

Explico.

A causa de pedir remota já vem devidamente comprovada, qual seja, a convocação da sra. Luza Maria, fiscal da coligação dos recorridos, para atuar como mesária de seção eleitoral, em virtude de não comparecimento de mesário. A cumulação, de fato irregular, durou cerca de 3 (três) horas.

Tenho os fatos como incontroversos e indico que sequer em tese as circunstâncias possuiriam potência para constituir a prática de abuso de poder político ou econômico. Simplesmente não há liame jurídico que possa vincular tal situação à prática de abuso de parte dos recorridos, quer mesmo na condição de beneficiários.

Na sentença, o magistrado bem pondera a irrelevância do ocorrido para fins de constatação de abuso de poder político ou econômico. Destaca, inclusive, que a pedido da própria recorrente as tarefas incompatíveis foram exercidas por menos de 3 (três) horas, Id 45949057. Repito: a (curta) atuação ocorrera mediante convocação da presidente da mesa eleitoral, uma vez que teria sido constatado o não comparecimento do secretário da seção eleitoral às 7h56, conforme imagem da ata reproduzida no corpo da própria sentença.

Somente isso.

Ou seja, não há como atribuir aos recorridos a conduta abusiva se o ato – de fato equivocado, mas rapidamente corrigido – fora praticado por pessoa componente da seção eleitoral, a presidente da mesa. O pedido de dispensa, também fato incontroverso, ocorrera às 11h.

Trata-se, dito de outro modo, de uma situação absolutamente irrelevante, mera irregularidade, que em virtude da convocação da presidente de mesa não pode ser atribuído aos recorridos ou mesmo à fiscal Lusa Maria que, diante da convocação, aceitara. Sequer hipoteticamente a situação, repito, poderia ser considerada prática de abuso de poder – sobretudo de parte dos recorridos.

É caso, em verdade, de julgar antecipadamente o pedido veiculado, com resolução de mérito, nos termos do art. 355, inc. I, do Código de Processo Civil, até mesmo em prestígio ao princípio da primazia das decisões de mérito, art. 4º do mesmo diploma legal:

Art. 355. O juiz julgará antecipadamente o pedido, proferindo sentença com resolução de mérito, quando:

I - não houver necessidade de produção de outras provas;

 

Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

 

 

E é por isso que, com tranquilidade, julgo que o retorno dos autos à origem não geraria qualquer efeito – não há necessidade de maior apuração dos fatos, eles são incontroversos e de nenhuma gravidade, não geram qualquer mácula, ou mesmo ameaça, à normalidade e à legitimidade das eleições. Ao contrário do que a recorrente afirma, São Gabriel não é um município de pequeno porte, sobretudo no contexto gaúcho. Com mais de 45.000 eleitores, dados do ano de 2024, o município se apresenta dentre os 50 (cinquenta) maiores eleitorados do Rio Grande do Sul, um estado com quase 500 municípios, e deve ser considerado de médio porte. Para que o tema seja colocado em adequada perspectiva, cerca de 350 municípios do RS possuem menos de 10.000 eleitores. Um evento como o descrito configura mera irregularidade formal, sequer teve continuidade ao longo do dia de votação. A atuação de mesários é importante, mas se restringe – sobretudo quando não presidem os trabalhos – à verificação formal da identificação do eleitor ou da eleitora, e habilitação da urna para a digitação dos votos pelo eleitorado. Obviamente – ainda que não atuem como fiscais de partido –, os cerca de 100.000 (cem mil) mesários atuantes em cada eleição gaúcha possuem as respectivas preferências partidárias, sem que isso macule esta ou aquela candidatura.   

De todo modo, o que se nota é a absoluta incapacidade de configurar abuso de poder. Mesmo que estivesse no bojo de uma demanda com diversas outras práticas tidas como abusivas, forçosamente o evento sob exame haveria de ser afastado de qualquer subsunção de sancionamento.

E, aqui, entendo pertinente abordar o equivocado argumento recursal –de que estariam em trâmite “mais de uma dezena” de AIJEs contra os recorridos – especificamente, 17 (dezessete), circunstância que, conforme a recorrente, deveria ensejar um olhar “em conjunto” de parte deste Tribunal – afinal de contas, LUCAS e SANDRA possuem várias demandas contra si.

Tal argumentação deve ser afastada por veicular raciocínio, em uma palavra, inconstitucional.

Destaco, a par da presunção de inocência que há de pairar, em respeito à Constituição da República, sob todos os cidadãos que estejam no polo passivo de ações judiciais sancionatórias – que a AIJE constitui demanda de alta gravidade. Há a previsão de sanções com a perda do cargo eletivo, de declaração de inelegibilidade por 8 (oito) anos, além de penas pecuniárias de razoável valor.

Ou seja, tem o condão de, inclusive, revogar a vontade popular, que escolheu (no mais das vezes, forma legítima) o representante, e é por isso que há de ser utilizada cum grano salis, de forma prudente, leal e responsável pelos competidores eleitorais, para que a Justiça Eleitoral não venha a se tornar um “terceiro turno” das eleições.

Expresso tais fundamentos porque registro atenção a duas especiais circunstâncias, quais sejam: (1) a banalidade do fato veiculado na presente demanda, que nem de longe daria azo à condenação por abuso de poder; (2) ao inédito volume de AIJES movidas pela recorrente - 17 (dezessete), contra a chapa adversária, para as quais este relator encontra-se prevento, por força do art. 260 do Código Eleitoral.

Ora, a recorrente pretende que o mérito ajuizamento de ações gere uma presunção de culpabilidade, de todo inviável sobretudo quando ela, MARIA LUÍZA, é a autora da totalidade das 17 demandas.

A situação, adianto, merecerá atenção. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou recentemente ato normativo (Recomendação CNJ n. 159/24) que determinou parâmetros ao Poder Judiciário para a identificação, tratamento e prevenção da litigância abusiva, cuja ementa transcrevo:

 

PROCEDIMENTO DE ATO NORMATIVO. LITIGÂNCIA ABUSIVA. PARÂMETROS INDICADOS AO PODER JUDICIÁRIO PARA IDENTIFICAÇÃO, TRATAMENTO E PREVENÇÃO. RECOMENDAÇÃO APROVADA.

I. CASO EM EXAME

1. Proposta de Recomendação apresentada conjuntamente pelo Presidente e pelo Corregedor Nacional de Justiça, contendo parâmetros para identificação, tratamento e prevenção do fenômeno da litigância abusiva pelo Poder Judiciário.

II.QUESTÃO EM DISCUSSÃO

2. Discutem-se quais medidas podem ser adotadas por juízes(as) e tribunais diante de manifestações de exercício abusivo do direito de acesso ao Poder Judiciário.

III. RAZÕES DE DECIDIR

3. A litigância abusiva aumenta custos processuais, impacta o desenvolvimento econômico, compromete o atingimento da Meta Nacional 1 (julgar mais ações do que as distribuídas) e reduz a qualidade da jurisdição, prejudicando o acesso à Justiça.

4. Embora o direito de acesso ao Judiciário seja garantido (CF/1988, art. 5º, XXXV), ele não pode ser exercido com desvio de finalidade. Daí a edição do presente ato, com parâmetros construídos a partir da observação e da experiência acumulada pelo Poder Judiciário.

IV. DISPOSITIVO

5. Recomendação aprovada. ______ Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 5º, XXXV; Recomendações CNJ nº 127/2022 e 129/2022; Diretrizes Estratégicas da Corregedoria Nacional de Justiça nº 7/2023 e 6/2024. Jurisprudência relevante citada: STF, ADI nº 3.995, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Pleno, j. 13.12.2018. ADIs nº 6.792 e 7.005, Rel. Min. Rosa Weber, Red. p/ acórdão Min. Luís Roberto Barroso, Pleno, j. 22.05.2024.

 

Ou seja, os juízes e tribunais – aqui, eleitorais - devem identificar comportamentos caracterizadores de uma espécie da lawfare, como por exemplo a propositura de ações sem lastro jurídico, ações procrastinatórias ou a fragmentação de demandas.

Lembro que, com maior razão, tais vetores devem pautar a atuação das partes e magistrados na Justiça Eleitoral – ramo cuja prestação jurisdicional é ausente de custas aos jurisdicionados – ou seja, a despesa da movimentação do aparato é suportada por toda a sociedade.

Tenho, portanto, que o pedido veiculado nos presentes autos é manifestamente improcedente, e merece decisão nos termos do art. 355, inc. I, do CPC.

 

Diante do exposto, VOTO por negar provimento ao recurso por fundamentação diversa da sentença, e julgo o pedido improcedente nos termos do art. 355, inc. I, do Código de Processo Civil.