REl - 0600704-67.2020.6.21.0034 - Voto Relator(a) - Sessão: 02/09/2022 às 14:00

VOTO

1. Admissibilidade Recursal

O recurso é tempestivo e encontram-se presentes os demais pressupostos de admissibilidade, de forma que merece conhecimento.

 

2. Preliminar de oitiva de depoente na condição de informante

Em irresignação, o impugnado requer que o depoente, Charles Bonow, ouvido na qualidade de informante quando da instrução do feito, passe a ostentar a qualidade de testemunha, visando ao retorno dos autos à origem para prolação de nova sentença, tendo em conta novo status do depoimento.

A tese recursal para a mudança aponta a ausência de motivos a ensejar oitiva da testemunha na condição de informante, visto que, mesmo tendo concorrido no pleito, não há vedação legal para ser ouvido na qualidade de testemunha, que a sua experiência na corrida eleitoral não conduz a um juízo de parcialidade e permitiria descrever a forma como a eleição foi conduzida na cidade, e, ainda, que ausente garantia de que o ora depoente vá participar nas próximas eleições.

Sem razão o recorrente.

O aludido candidato concorreu nas eleições municipais de 2020 ao pleito majoritário, pelo PTB, ou seja, fez oposição aos recorridos, de sorte que não há falar em imparcialidade, na medida em que o depoimento partiria de rival político direto.

A corroborar, calha citar que a chapa composta por Charles Bonow foi a segunda mais votada na municipalidade, somando 734 votos, contra os 772 atribuídos à coligação vencedora, ou seja, uma diferença de apenas 38 votos, fato que, por si só, afastaria qualquer juízo de isenção diante do interesse óbvio do depoente na cassação dos recorridos.

Assim, correto o magistrado na origem ao tomar o depoimento de Charles na condição de informante, pois nítido o interesse deste no objeto da demanda, na forma do art. 457 do CPC:

Art. 457. Antes de depor, a testemunha será qualificada, declarará ou confirmará seus dados e informará se tem relações de parentesco com a parte ou interesse no objeto do processo.

§ 1º É lícito à parte contraditar a testemunha, arguindo-lhe a incapacidade, o impedimento ou a suspeição, bem como, caso a testemunha negue os fatos que lhe são imputados, provar a contradita com documentos ou com testemunhas, até 3 (três), apresentadas no ato e inquiridas em separado.

§ 2º Sendo provados ou confessados os fatos a que se refere o § 1º, o juiz dispensará a testemunha ou lhe tomará o depoimento como informante.

 

3. Mérito

O partido PROGRESSISTAS de Arroio do Padre ingressou com AIME, ação de cunho constitucional, com assento no art. 14, § 10, da CF, que visa desconstituir mandato eletivo quando da ocorrência de abuso de poder econômico, corrupção ou fraude.

Trata-se, conforme doutrina de José Jairo Gomes, de “ação de índole constitucional-eleitoral, com potencialidade desconstitutiva do mandato. Por óbvio, não apresenta caráter criminal. Seu objetivo é tutelar a cidadania, a lisura e o equilíbrio do pleito, a legitimidade da representação política, enfim, o direito difuso de que os mandatos eletivos apenas sejam exercidos por quem os tenha alcançado de forma lícita, sem o emprego de práticas tão censuráveis quanto nocivas como são o abuso de poder, a corrupção e a fraude” (Gomes, José Jairo. Direito eleitoral – 14. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018).

O abuso de poder encontra-se normatizado no art. 22, caput e incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(...)

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

(...)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

 

No que ativa ao abuso, cito, por adequada, novamente, lição de José Jairo Gomes (Direito Eleitoral Essencial, São Paulo: Editora Método, 2018, pp. 228-229):

Haverá abuso sempre que, em um contexto amplo, o poder – não importa sua origem ou natureza – for manejado com vistas à concretização de ações irrazoáveis, anormais, inusitadas ou mesmo injustificáveis diante das circunstâncias que se apresentarem e, sobretudo, ante os princípios e valores agasalhados no ordenamento jurídico. Por conta do abuso, ultrapassa-se o padrão normal de comportamento, realizando-se condutas que não guardam relação lógica com o que normalmente ocorreria ou se esperaria que ocorresse. A análise da razoabilidade da conduta e a ponderação de seus motivos e finalidades oferecem importantes vetores para a apreciação e o julgamento do evento; razoável, com efeito, é o que está em consonância com a razão.

(...)

No Direito Eleitoral, o abuso de poder consiste no mau uso de direito, situação ou posição jurídicas com vistas a exercer indevida e ilegítima influência em dada eleição. Para caracterizá-lo, fundamental é a presença de uma conduta em desconformidade com o Direito (que não se limita à lei), podendo ou não haver desnaturamento dos institutos jurídicos envolvidos. No mais das vezes, há a realização de ações ilícitas ou anormais, denotando mau uso de uma situação ou posição jurídicas ou mau uso de bens e recursos detidos pelo agente ou beneficiário ou a eles disponibilizados, isso sempre com o objetivo de influir indevidamente em determinado pleito eleitoral.

 

No caso concreto, foi interposto recurso, pela agremiação autora, em face da sentença do Juízo Eleitoral da 034ª Zona – Pelotas, o qual julgou improcedente a AIME, promovida em desfavor de RUI CARLOS PETER e EDEGAR HENKE, eleitos Prefeito e Vice-Prefeito de Arroio do Padre na eleição de 2020, aos quais o recorrente atribuiu as práticas de abuso de poder político e econômico, fraude e corrupção durante o pleito.

Segue, abaixo, parágrafo da sentença que bem sintetiza o entendimento exarado na origem:

Impõe-se, assim, a improcedência do pedido, pois embora se dispense a efetiva participação do candidato em ato abusivo, e possa esse ser responsabilizado como mero beneficiário (Rodrigo López Zilio, Direito Eleitoral, Ed. JusPodiv, 7ª ed., pg. 690), deve ao menos se configurar “um nexo de encadeamento lógico entre o ato abusivo, a campanha do candidato e a probabilidade de afetação do pleito”, pois conforme já referido, somente deve ser reconhecida a procedência do pedido “se os fatos forem potencialmente graves a ponto de ensejar desequilíbrio no pleito, tornando seu resultado ilegítimo”, ou provada conduta com “magnitude ou gravidade suficiente par atrair a penalidade de cassação do diploma” (Recurso Eleitoral, Processo RE 624-05.2016.6.21.0096, TRE-RS).

 

Aduz o recorrente que a eleição foi acirrada e decidida por diferença ínfima de votos (772 para o primeiro colocado, 734 para o segundo e 723 para o terceiro), de forma que as ações realizadas em prol dos recorridos, ainda que mínimas, foram fundamentais para o resultado nas urnas. As alegações apontam para a ausência de análise, pelo juízo a quo, quanto à ocorrência de aglomeração, vedada por decreto municipal, no bar de RUI; empréstimo de churrasqueira, pelo impugnado, a eleitores durante o período de campanha; bem como cobrança, via áudio, pelos Secretários da Saúde e de Obras, Letícia e Leandro respectivamente, pedindo votos e empenho dos servidores públicos em favor da campanha dos recorridos , bem como prestação de serviço a seus aliados políticos.

A tese vertida em recurso não merece guarida.

A sentença, em oposição à hipótese recursal, enfrentou a questão das aglomerações e do uso de churrasqueira, in verbis:

Quanto a eventos festivos, e reuniões, em desacordo a Decreto que restringia tais atividades no Município, comprovaram os réus que outro decreto, posterior, de número 3.125/20202, passou a permitir tais aglomerações, sendo que sua redação, embora questionada pela parte autora, efetivamente não chega a restringir especificamente reuniões políticas.

 

No mesmo norte, não socorre a legenda partidária irresignação quanto às atuações dos chefes das pastas da Saúde na municipalidade, Letícia Baschi, e Obras, Leandro Buss da Costa, as quais não teriam sido objeto de análise, visto que essas receberam tratamento na decisão exarada na origem, ocasião em que foram afastadas as condutas irregulares:

No que tange a atividade irregular dos secretários de obras, agricultura, e saúde, restaram dúvidas quanto atuação à margem da lei no que diz respeito ao fornecimento gratuito, em troca de votos, de material como cascalho ou areia, ou prestação de serviços de saúde.

A começar pelo fato de que foram acostados documentos comprovando o pagamento por tais serviços, sendo que, em se tratando de município com predominância da atividade rural, notadamente agricultura, por certo que a manutenção das estradas de acesso aos estabelecimentos agropecuários representa serviço essencial, imprescindível, passível de ser efetivado mesmo durante a campanha eleitoral

Como bem referiu o DD. Promotor de Justiça, “No caso em tela, forçoso reconhecer, diante do teor da instrução, a prova constante dos autos apresenta-se demasiada frágil para conferir um juízo de certeza quanto à ocorrência de abuso de poder econômico ou político que possa caracterizar uma eleição fraudulenta, em meio a uma acirrada disputa entre adversários políticos”.

Isso porque a essencialidade dos depoimentos prestados não constituiu prova robusta, pois a ausência do compromisso legal fragilizou tal meio de prova.

E no que tange aos áudios acostados, relativos a fatos específicos, de entrega de material, diga-se de passagem pago pelo contribuinte, pois não demonstrada de forma cabal entrega gratuita, dizem respeito a procedimento levado a efeito por secretário de administração anterior, sem a comprovação de que tenham os réus anuído, ou aderido, a tal conduta.

Da mesma forma, embora censurável a fala de anterior secretária de saúde, sugerindo que determinado paciente deveria votar em favor dos candidatos apoiados pelo anterior prefeito, não se demonstrou utilização da máquina pública para angariar votos, já que não provada majoração significativa da atividade de saúde no período de campanha. 

Isso porque, de outra banda, há relato de que houve represamento de demanda por fatores diversos, acarretando na designação de muitas consultas posteriores, as quais não estavam sob a responsabilidade direta do Município, que dependia do agendamento por parte do Estado/RS.

 

A corroborar, em depoimento, a informante Letícia Baschi Zehetmeyer, ex-secretária da saúde, defendeu os atos da administração que representava, dizendo que costumava enviar áudios durante o exercício das suas funções. Aduziu que os demandados não tinham conhecimento do áudio anexado aos autos, e que este não foi enviado em  período de trabalho, referindo áudio que foi enviado a uma amiga de nome Tatiane.

Na mesma linha, o secretário de obras, Leandro Buss da Costa, ouvido também na qualidade de informante, afirmou que nada foi feito em troca de votos, acrescentando que fez campanha para si, e não para os demandados. Referiu, ainda, que a expressão 'na surdina' quer dizer 'depois do horário' e que não presenciou as ilegalidades praticadas pelos demandados.

Nesse contexto, colho, quanto à fragilidade do suporte probatório, por percuciente, trecho do parecer da Procuradoria Regional Eleitoral:

Por isso, ao contrário do alegado nas razões recursais, diante do teor de toda a instrução, a prova constante dos autos apresenta-se demasiada frágil para conferir um juízo de certeza quanto à ocorrência de abuso de poder econômico ou político que possa caracterizar uma eleição fraudulenta, em meio a uma acirrada disputa entre adversários políticos.

 

Dessa feita, não restou evidenciado o necessário liame, apto a demonstrar a probabilidade de afetação do pleito, entre os fatos apresentados e a suposta prática dos crimes pretendidos, de forma a caracterizar o abuso de poder econômico.

No ponto, friso que, quanto ao abuso de poder econômico, é necessário que a conduta abusiva tenha em vista processo eleitoral futuro ou em curso, concretizando ações ilícitas ou anormais, das quais se denote o uso de recursos patrimoniais detidos, controlados ou disponibilizados ao agente, que extrapolem ou exorbitem, no contexto em que se verificam, a razoabilidade e a normalidade no exercício de direitos, e o emprego de recursos com o propósito de beneficiar determinada candidatura, provocando a quebra da igualdade de forças que deve preponderar no âmbito da disputa eleitoral.

As práticas abusivas, nas suas diferentes modalidades, não demandam prova da sua interferência no resultado da votação, mas, tão somente, da gravidade das condutas para afetar o equilíbrio entre os candidatos e, com isso, causar mácula à normalidade e à legitimidade da disputa eleitoral (TSE, AIJE n. 060177905, Acórdão, Relator Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, DJE de 11.3.2021), valores tutelados pelo art. 14, § 9º, da Constituição Federal:

Art. 14. (...)

(...)

§9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

 

O acervo carreado, que lastreou a instrução do feito, dessa forma, não tem força suficiente a fazer prova inconteste do alegado, de modo que o recorrente não se desincumbiu do ônus de comprovar os ilícitos aos recorridos atribuídos.

Assim, não há falar em abuso de poder, seja político ou econômico, do qual poderia resultar a cassação de mandato, diante da ausência de suporte fático-probatório a sustentar a presente ação de impugnação, entendimento sufragado pela Corte Superior:

ELEIÇÕES 2018. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE MANDATO ELETIVO. DEPUTADO FEDERAL. SUPOSTO ABUSO DE PODER ECONÔMICO. PROVA ROBUSTA E GRAVIDADE DOS FATOS. INEXISTÊNCIA. DESPROVIMENTO. 1. Inexiste ofensa ao art. 36, § 7º do RITSE, amparada a decisão na legislação aplicável à espécie e na jurisprudência deste Tribunal. 2. Imprescindível para a configuração do abuso de poder prova inconteste e contundente da ocorrência do ilícito eleitoral, inviabilizada qualquer pretensão articulada com respaldo em conjecturas e presunções. Precedentes. 3. Além disso, a quantia de R$ 10.300,00 (dez mil e trezentos reais), ainda que utilizada com o escopo de obter apoio político, é incapaz de afetar os bens jurídicos da normalidade e legitimidade, bem como da isonomia entre os candidatos, considerando o contexto de eleições gerais para o cargo de Deputado Federal, com abrangência em todo o estado da federação.4. Agravo Regimental desprovido.

(RO n. 060000603, Acórdão, Relator(a) Ministro ALEXANDRE DE MORAES, DJE de 02.02.2021.) (Grifei.)

 

Por esses motivos, na esteira do posicionamento da Procuradoria Regional Eleitoral, uma vez constatada a escassez e a precariedade dos elementos probatórios coligidos aos autos, deve ser mantido o juízo de improcedência da demanda com relação à prática de abuso de poder econômico e político pelos demandados.

 

Diante do exposto, VOTO, preliminarmente, por rejeitar o pedido de oitiva, na qualidade de testemunha, de Charles Bonow, e, no mérito, pelo desprovimento do recurso para manter a sentença de improcedência da Ação de Impugnação de Mandato Eletivo – AIME.

É como voto, Senhor Presidente.