REl - 0600470-58.2020.6.21.0140 - Voto Relator(a) - Sessão: 08/08/2022 às 14:00

VOTO

Da Admissibilidade

Preenchidos os pressupostos de admissibilidade recursal, merecem ser conhecidos os recursos.

 

Do Mérito

No mérito, as ações versam sobre a suposta existência de fraude à cota de gênero e abuso de poder por condutas imputadas ao PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO - PSB de REDENTORA e a seus candidatos, sendo que as candidaturas fictícias são atribuídas à Ádima Amaro Fortunato e à Cleusa Amaro.

Registro que, a partir do julgamento do Recurso Especial Eleitoral n. 149, sob a relatoria do Ministro Henrique Neves da Silva, publicado no DJe de 21.10.2015, o Tribunal Superior Eleitoral passou a admitir que o “conceito da fraude, para fins de cabimento da ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, § 10, da Constituição Federal), é aberto e pode englobar todas as situações em que a normalidade das eleições e a legitimidade do mandato eletivo são afetadas por ações fraudulentas, inclusive nos casos de fraude à lei”.

Após o reconhecimento de que a fraude ao mecanismo de incentivo à participação feminina poderia ser sindicada em AIME, a Corte Superior reconheceu também a aptidão da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) para verificar o desvio do cumprimento da reserva de vagas, sob a perspectiva de que “fraude nada mais é do que espécie do gênero abuso de poder” (TSE, RESPE n. 19392, Relator Min. Jorge Mussi, DJE de 04/10/2019).

Logo, tanto a AIME quanto a AIJE são meios processualmente adequados para discutir a fraude à cota de gênero, mesmo que sob fundamentos distintos.

Ainda, cabe referir, brevemente, a complexidade e densidade envolvidas na hipótese, o que, certamente, em muito se deve à destacada atuação do Ministério Público Eleitoral na pessoa da Dra. Ana Maria Dal Moro Maito, detentora de profundo conhecimento das peculiaridades de que as demandas dessa natureza se revestem.

Da mesma forma, a atuação do julgador monocrático, Dr. Bruno Enderle Lavarda, além de evidenciar distinto domínio técnico-jurídico, demonstra uma relevante preocupação com a realidade local e com os desdobramentos da decisão.

Finalmente, louva-se a destacada participação nos autos dos advogados e da Procuradoria Regional Eleitoral.

Pois bem.

A cota de gênero, instrumento legal de incentivo à participação feminina na política, posta sob o fomento e a proteção da Justiça Eleitoral, está prevista no art. 10, § 3º, da Lei n. 9.504/97, com a seguinte redação: 

Art. 10. (...).

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada parti-do ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidatu-ras de cada sexo.

O preenchimento fraudulento das reservas de gênero frustra o intuito da norma e, ao invés de promover a participação feminina, apenas reforça a exclusão da mulher da política, em prejuízo ao pluralismo e à representatividade política, que é pressuposto para uma democracia plena.

Tal como decidiu o Tribunal Superior Eleitoral, seguindo o posicionamento do Ministro Og Fernandes, ao examinar o Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral n. 0000008-51.2017.6.21.0110, caso originário do Município de Imbé/RS, referente às eleições de 2018: “Não se deseja a mera participação formal, mas a efetiva, por meio de candidaturas minimamente viáveis de pessoas interessadas em disputar uma vaga.”

De modo geral, pode-se extrair da jurisprudência os elementos indiciários que apontam para uma candidatura falsa, conforme arrolados no enunciado doutrinário aprovado na I Jornada de Direito Eleitoral, promovida pela Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Superior Eleitoral, de fevereiro a maio de 2020:

Enunciado n. 60: A fraude à cota de gênero deve ser apurada mediante Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ou Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), devendo ser aferida pela análise conjunta dos seguintes indícios relevantes, entre outros: número significativo de desistências ou votação pífia de candidatas mulheres, especialmente de candidatas familiares de candidatos e de dirigentes partidários; prestações de contas padronizadas; e realização, por mulheres candidatas, de campanhas para candidaturas alheias (art. 10, §3º, da Lei das Eleições).

No caso dos autos, verifiquei que Ádima e Cleusa desistiram de suas candidaturas no decorrer da campanha eleitoral.

Ambas não receberam nenhum voto, nem mesmo seus próprios, embora tenham comparecido à votação.

As candidatas declararam arrecadação e gastos nas prestações de contas apenas de natureza estimada, contemplando doações de materiais de publicidade pelo partido político, e não divulgaram suas candidaturas em redes sociais e nem em propaganda de rádio.

A recorrida Ádima, inclusive, admite, em seu depoimento judicial, que pediu às amigas que não votassem nela.

Ocorre que, na análise de ações dessa natureza, este Tribunal Regional tem admitido que fatos supervenientes ao registro de candidatos possam justificar a desistência da disputa eleitoral, ainda que de modo informal, sem que a candidatura seja reputada fraudulenta, e penso ser esse exatamente o caso dos autos.

Na hipótese, a peculiaridade que justifica o abandono da campanha eleitoral é a circunstância de serem as candidatas indígenas e, conforme a prova dos autos, vinculadas a partido de oposição ao cacique da reserva indígena onde residem, tendo sido submetidas à séria e grave intimidação após o início da campanha eleitoral.

Peço vênia para colher a minuciosa análise da prova dos autos realizada na sentença da AIJE (ID 44119933):

No caso sob análise, o Partido Socialista Brasileiro - PSB de Redentora participou do pleito municipal de 2020 apresentando 14 (quatorze) candidaturas na eleição proporcional, sendo 9 (nove) masculinas e 5 (cinco) femininas. Com essa proporção, garantiu o cumprimento da cota de gênero e obteve o deferimento do Demonstrativo de Regularidade dos Atos Partidários (DRAP), sem o qual não seria admitido a participar da disputa e registrar candidaturas.

Ocorre que as candidatas do partido obtiveram votação ínfima ou nenhuma, como no caso de Cleusa Amaro e Ádima Amaro Fortunato, que totalizaram zero votos, o que desencadeou a atuação do Ministério Público Eleitoral por meio de expediente extrajudicial (PPE nº 0600456-74.2020.6.21.0140), juntado ao presente feito, no qual a agente ministerial concluiu que Cleusa e Ádima não concorreram de fato, ou seja, teriam sido levadas a registro pelo partido candidaturas fictícias, com o fim único de elevar, proporcionalmente, o número de candidatos do sexo masculino, aumentando as chances de o partido atingir a votação necessária para obter vagas pelo quociente partidário, motivando o ajuizamento da presente demanda.

No entender do impugnante, a fraude foi evidenciada pelo fato de que Ádima e Cleusa não realizaram atos de campanha, bem como apresentaram em suas prestações de contas apenas receitas e despesas de natureza estimada, consistente em doações de materiais de publicidade, realizadas pelo partido, com recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, no valor de R$ 123,60 (cento e vinte e três reais e sessenta centavos), conforme os processos de prestações de contas nºs 0600456-74.2020.6.21.0140 e 0600457-59.2020.6.21.0140 (informações disponíveis na página de divulgação de candidaturas e contas da Justiça Eleitoral (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga).

[...].

A peça incoativa veio acompanhada dos arquivos contendo a gravação das oitivas de Adima e Cleusa, IDs. 70477158/61, bem como de cópia integral do expediente extrajudicial, autuado pelo Ministério Público Eleitoral (PPE nº 00941.000.869/2020), IDs. 70477156 e 70477157. A defesa, a seu turno, limitou-se a postular a produção de prova oral.

A prova mostrou-se incontroversa quanto à ausência de votos computados por Ádima Amaro Fortunato e Cleusa Fortunato no pleito eleitoral 2020, em que pese tenham as candidatas e seus familiares mais próximos comparecido às urnas e votado. Há, também, elementos que indicam que as receitas e gastos por elas efetuados limitaram-se à utilização de recursos de natureza estimada, oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), que foram alcançados pelo diretório estadual do partido em forma de materiais de publicidade e propaganda, conforme as prestações de contas eleitorais entregues à Justiça Eleitoral. De igual modo, não foram observados atos de campanha, bem como há indícios de inexistência de propaganda eleitoral ou de que estas tenham sido confeccionadas em desacordo com a lei eleitoral.

Deveras, tais aspectos revelam indícios de candidaturas não verdadeiras. Contudo, ao analisá-los de forma contextualizada, sobressaem-se circunstâncias relevantes que, se não afastam, ao menos mitigam significativamente o ilícito ventilado.

Em relação às receitas e despesas declaradas nas prestações de contas das candidatas Ádima e Cleusa, pondero que este juízo analisou todas as prestações de contas dos candidatos que participaram do pleito eleitoral 2020, nos municípios de Braga, Campo Novo, Coronel Bicaco e Redentora, podendo afirmar, com segurança, que não houve discrepâncias relevantes quanto a receitas e gastos realizados pelos concorrentes, tanto nas campanhas majoritárias como nas proporcionais, antes o contrário. Tais informações podem ser verificadas no site de divulgação de contas e candidaturas do TSE (https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/). Aliás, a semelhança no conjunto das prestações de contas revelou-se mais presente se comparados candidatos integrantes do mesmo partido ou coligação, quando se observou que muitos candidatos apresentaram idêntica arrecadação e gastos eleitorais, tanto na utilização de recursos de natureza pública como na utilização de outros recursos. Especificamente, em relação aos candidatos do PSB de Redentora, observo que dos 14 (quatorze) candidatos que concorreram a Vereador, 12 (doze) declararam unicamente receitas estimadas, doadas pelo partido, não declarando nenhuma outra fonte de receita ou gasto realizado. Assinalo que apenas as campanhas de Elizeu Kei Claudino e Joel Ribeiro de Freitas tiveram o incremento de doações financeiras realizadas por pessoas físicas, nos valores de R$ 79,50 (setenta e nove reais e cinquenta centavos) e R$ 474,50 (quatrocentos e setenta e quatro reais e cinquenta centavos), respectivamente, realizando com isso, maiores despesas eleitorais. Portanto, os demais candidatos do partido, tanto homens como mulheres, contaram apenas com a doação de materiais de propaganda, realizada pelo diretório estadual, no valor estimado de R$ 123,60 (cento e vinte e três reais e sessenta centavos), ou seja, a ausência de receitas e gastos de outra natureza não representou uma exclusividade das campanhas de Ádima e Cleusa, mas refletiu-se em, praticamente, todas as candidaturas do partido.

No que diz à observação feita pelo impugnante acerca aos panfletos de Ádima e Cleusa, apresentados pelo partido na seara extrajudicial (fls. 522/523), percebo que, efetivamente, mostram-se em aparente desacordo com a norma eleitoral que regulamentou a propaganda nas eleições municipais 2020 (Resolução TSE nº 23.610/2019). Contudo, há que se ressalvar que tais impropriedades (ausência de aspectos formais e materiais como o CNPJ do candidato e do fornecedor, valor, tiragem, etc.) não foram à época objeto de representação, em demanda que poderia resultar, inclusive, em eventual apreensão e proibição de veiculação de propaganda irregular.

 O impugnante enfatizou, também, a ausência de campanha em redes sociais, jornais e rádio, formas de propaganda reguladas pela na lei eleitoral. No entanto, forçoso reconhecer, diante das narrativas das candidatas e das testemunhas ouvidas, que tais práticas não se mostram condizentes à realidade da comunidade indígena redentorense, situada em área rural distante e genuinamente agrícola. Aliás, ao que consta, as candidatas não tinham ou não acessavam, por exemplo, a rede social facebook, nem mesmo havia ou era precário o sinal de internet nos setores em que elas residiam, conforme referido em audiência. 

Acrescento ainda, em relação à propaganda na internet, que não há informação de endereços eletrônicos, páginas pessoais ou de campanha em redes sociais em nenhum dos Requerimentos de Registro de Candidatura (RRCs) apresentados pelo PSB a esta justiça especializada, como pode ser observado nos respectivos processos, indicados na página do Tribunal Superior Eleitoral, alhures mencionada. Com isso, é possível afirmar que os candidatos do partido não se utilizaram da internet como ferramenta para veiculação de propaganda eleitoral. 

De igual modo, no que diz à veiculação de propaganda na imprensa escrita, trata-se de propaganda melhor elaborada, que requer investimento de recursos, ao que consta, não empregados por nenhum dos candidatos do partido, homens ou mulheres, na divulgação de suas candidaturas no pleito 2020, a ponto de não causar estranheza a não utilização desta ferramenta pelas candidatas Ádima e Cleusa. Aliás, é possível que não haja circulação de jornais ou outros meios de comunicação escrita no interior da reserva indígena. 

A seu turno, em relação à propaganda e rádio, de acordo com o apurado pelo Ministério Público Eleitoral e não contestado pelos impugnados, “inexistente qualquer áudio para veiculação em rádio no horário eleitoral gratuito”. Com efeito, em reunião realizada pela Justiça Eleitoral foram distribuídos aos partidos tempo de inserções do horário eleitoral gratuito para veiculação da propaganda de vereador. Todavia, conforme a disposição do artigo 77 da Resolução TSE n. 23.610/2019, compete exclusivamente aos partidos e às coligações distribuir entre seus candidatos os tempos que lhes forem destinados pela Justiça Eleitoral, sem a necessidade de submetê-lo ao crivo judicial, a não ser para suscitar eventual irregularidade na propaganda. 

Nesse contexto, é possível afirmar que, praticamente, todos os candidatos do PSB realizaram semelhantes, se não idênticas, arrecadações e gastos para a campanha eleitoral, conforme declarado nas prestações de contas eleitorais de cada candidato, utilizando-se possivelmente dos mesmos materiais de campanha, com exceção da propaganda por meio de inserções em rádio, da qual sabe-se apenas que Ádima e Cleusa não participaram, sem que haja informação nos autos sobre sua utilização pelos demais candidatos.

Portanto, a diferença entre os candidatos do PSB que fizeram votos e os que não fizeram ou pouco somaram parece se resolver na "saída em busca de votos". Ao que se extrai da prova oral, fizeram votos e se elegeram aqueles candidatos que fizeram campanha, visitaram os eleitores e participaram de atos políticos - a despeito das alegadas ameaças, perseguições, possível perda de emprego e até mesmo prisões realizadas pela liderança indígena. Contudo, tal atitude prevaleceu entre os candidatos homens, enquanto que as candidatas mulheres, especialmente Ádima e Cleusa, ao que consta, permaneceram acuadas ou então recuaram em certa altura da campanha, como que “desistindo” das candidaturas, destoando dos demais porque não fizeram campanha e nem mesmo votaram em si próprias. 

No que diz à ausência de atos de campanha pelas candidatas, observo que foram juntadas fotos pelo partido sugerindo a presença das candidatas em suposto ato político (ID. 70477157, p 215/220). Tais registros, em que pese desprovidos de indicação acerca da data, local, evento, etc., acenam um princípio de campanha eleitoral. 

No ponto, observo que, tanto as impugnadas Ádima e Cleusa como também as testemunhas ouvidas foram enfáticas ao afirmar que houve perseguições e ameaças aos adversários políticos do cacique, concretizadas em demissão de candidatos e de seus familiares que trabalhavam no setor de saúde e nas escolas indígenas, e até mesmo na prisão de um dos candidatos a Vereador do PSB, conforme os relatos gravados nos arquivos, juntados aos autos por meio das certidões IDs. 89968174 e 90042715. 

Do depoimento pessoal colhido das impugnadas Ádima e Cleusa, em que pese a contradição observada acerca da ausência de apoio à candidatura pelo partido, percebo que ambas alegaram que tinham interesse em participar da disputa e queriam ganhar a eleição, mas tiveram familiares acometidos de covid e foram colocadas em isolamento social, com ordem para permanecer em casa, além de terem sofrido ameaças por parte do cacique e lideranças indígenas que as intimidaram a ponto de levá-las interromper a campanha e pedir aos amigos que não votassem nelas. 

Assevero que as testemunhas ratificaram a situação de ameaças enfrentadas pelos candidatos do partido 40, informando que o candidato a Vereador MARCOS KANSU CAMARGO, que também concorreu pelo PSB chegou a ser preso pelo cacique por questões políticas, já que o cacique defendia a coligação “do 15” e não admitia oposição. Expuseram, ainda, o contexto vivenciado no interior da reserva indígena no período eleitoral, enfatizando a postura impositiva adotada pelo cacique e a coação exercida pela liderança em relação aos adversários políticos, mormente em relação às mulheres, que se mostraram mais vulneráveis. 

ADRIANA KANHEIRO afirmou que a liderança sempre se envolve na política, sendo que na última eleição houve perseguições aos candidatos e Elizeu que foi demitido de seu trabalho na saúde indígena (motorista). Referiu que também, Joel (Candidato, eleito) e sua esposa, perderam o emprego por questões políticas. Afirmou que o cacique tem poder para fazer essas demissões porque ele é o cacique, sendo ele quem manda. Alegou que não viu Ádima e Cleusa fazerem campanha, pois elas moram distante e nem ouviu falar da campanha delas, mas de outros candidatos sim, aduzindo que quem fez campanha conseguiu se eleger, apesar das ameaças e perseguições. Indagada, alegou não ter conhecimento acerca de movimentos ou projetos jovens que Ádima participasse, reiterando que residem em setores distantes. 

ALVANDI RIBEIRO, instado a falar sobre a campanha eleitoral na reserva, disse que ter acompanhado, inclusive porque é filiado ao partido 40. Referiu que na questão indígena, sempre a comunidade sofre pressão por parte da liderança. Alegou que quem não é do lado do cacique é ameaçado, sendo que sua esposa foi ameaçada com a perda de emprego, alegando que saiu da aldeia um pouco antes da eleição por questões políticas, tendo retornado depois de algum tempo. Questionado, especificamente sobre as eleições 2020, disse que as lideranças do cacique iam às casas e ameaçavam os adversários, sendo que ameaçaram e prenderam o candidato Marcos, do 40. Indagado sobre machismo e prevalecimento contra as mulheres, se eram mais ameaçadas, afirmou que na comunidade sempre teve esse lado, tanto que as lideranças são homens e somente agora as mulheres estão sendo aceitas em reuniões e para serem candidatas, o  que faz parte da cultura, de modo que elas sempre sofreram distinção. Sobre ajuda do partido aos candidatos, não soube informar. Afirmou que teve comício do 40, mas que acompanhou só dois, por causa das ameaças da liderança. Questionado, afirmou não saber precisar o número de candidatos a Vereador que concorreram pelo PSB. Sobre os candidatos do PSB que se elegeram, Joel e Elizeu, disse que recebeu algumas visitas deles e de outros candidatos, sendo que Ádima e Cleusa não estiveram em sua casa, mas chegou a vê-las caminhando na vila, não sabendo precisar se estavam fazendo campanha. Alegou que teve acesso aos santinhos delas, disponíveis nos locais de reuniões que o partido fazia para organizar a campanha, sendo que lá tinha santinho de todos. Referiu que Ádima e Cleusa moram em outras aldeias. Questionado, afirmou que o partido fez comícios com palanque e discursos, dos quais não participou, mas teria passado pelo local em duas oportunidade (um campo de futebol), sendo que em uma delas recorda de ter visto o candidato a Vereador Airton discursar. Questionado, alegou que não viu Cleusa e Adima nessas oportunidades. 

A professora DANIELA FRANCIELA SALES referiu que toda eleição é uma luta constante na reserva, alegando que no último pleito, a intenção da comunidade indígena era eleger as candidatas mulheres que concorreram pelo partido PSB, mas houve perseguições da liderança indígena e acabou não dando certo. Esclareceu que é filiada ao PSB. Referiu que inicialmente foram se encaminhando as eleições, iniciando as campanhas, mas logo sentiram mudanças em razão das perseguições, por parte das lideranças, em virtude de o cacique ser secretário do índio, da administração em exercício, que é contrária ao PSB, Alegou que Cleusa e Adima participaram ativamente das reuniões, no início da campanha, mas depois começaram a sentir a “pressão”. Narrou experiência própria, referindo que é professora e passou pela experiência de ser perseguida por questões políticas, sendo que atualmente trabalha em escola não indígena, embora formada para atuar em tais escolas. Referiu que está trabalhando por determinação do Juiz Federal, isso porque, por ser pessoa mais instruída, enfrentou a liderança indígena. Afirmou que Ádima e Cleusa não tiveram essa coragem. Aduziu que “quando você é ameaçado dentro da aldeia, você perde tudo, você perde terra, você perde casa, você pega, você é carregado pra ir pra outro lugar, você não leva nada”, circunstâncias que teriam levado Ádima e Cleusa a não buscarem votos, nem mesmo de seus familiares ou o próprio voto. Afirmou que 7 (sete) funcionários da saúde indígenas foram demitidos 15 (quinze) dias depois da eleição porque declararam oposição política ao cacique, entre eles o candidato Eliseu e sua esposa perderam o emprego. Alegou que convivem com uma cultura patriarcal e machista, sendo que tentam, como mulher, lutar pelos direitos, mas nem todas conseguem enfrentar, sugerindo que a sociedade indígena esteja atrasada nesse quesito e que não é fácil, especialmente para famílias que sobrevivem da terra, porque ou “você segue à risca ou você perde tudo”. Questionada sobre ações do partido para proteger as candidatas, afirmou que as procuraram tentando apoiá-las, estimulá-las e dizer que as ameaças não se concretizariam, mas a vizinha de Cleusa foi demitida por causa de política, de modo causou maior receio ainda para as candidatas. Afirmou que as candidatas acompanharam os mutirões realizados com mulheres, citando o mutirão realizado em São João do Irapuá, setor da Ádima, do qual participaram 50 (cinquenta) mulheres. Sobre a escolha de Adima e Cleusa, afirmou que tais candidaturas partiram de cada setor, não recordando com precisão quem teria indicado os nomes delas. Afirmou que a escolha se dá, normalmente, levando em consideração a família do pretenso candidato, referiu que não se surpreendeu com o resultado zerado de votação de Cleusa e Ádima, por conta das condições adversas vivenciadas. Questionada, referiu que tem pretensões de se candidatar futuramente. 

JOSÉ ROBÉRIO SALES RIBEIRO afirmou que dentro da reserva não existe democracia, uma vez que os adversários políticos do cacique são tratados como inimigos e sofrem todas as formas de perseguições e ameaças. Referiu que são poucas as pessoas que conseguem fazer oposição ao cacique. Alegou que um dos candidatos foi preso dentro da reserva pelo cacique. Questionado sobre o tratamento das questões de gênero, inclusão da mulher na política, existência machismo ou se teria existido uma pressão maior da liderança indígena em relação às candidatas mulheres, referiu que todos os opositores do cacique sofreram perseguições, sendo que as mulheres certamente se sentiram mais pressionadas. Alegou que a presente demanda judicial deveria ser fruto da ação de simpatizantes do cacique, uma vez que se cassarem os vereadores do 40, automaticamente serão eles que assumirão os mandatos. Referiu que existe essa intenção por parte da liderança. Pelo Ministério Público Eleitoral, foi esclarecido que a demanda é de autoria do parquet, que agiu de ofício. Instado, esclareceu que a votação expressiva, obtida pelo partido e alguns de seus candidatos se deu porque esses candidatos que não se acuaram e fizeram suas campanhas. Em relação à Ádima e Cleusa, alegou que elas teriam recuado na campanha. Afirmou que nas eleições 2016 o cacique era outro, não se tendo observado a pressão que foi realizada pela atual liderança. Alegou que participou de duas reuniões do partido, não se recordando se Ádima e Cleusa estavam presentes, nem soube informar como foi a campanha delas, já que apoiou outro candidato. 

LEONETE RITÓJ VICENTE referiu que houve ameaças e perseguições da liderança indígena em relação aos candidatos que se opunham politicamente ao cacique, acreditando que todos os candidatos do 40 tenham sido ameaçados, assim como as demais pessoas da comunidade. Referiu que são muitos índios que residem na reserva e que o número de candidatos indígenas também foi expressivo, mas só alguns se elegeram. Afirmou que todos fizeram campanha, inclusive Ádima e Cleusa. Questionada, disse que conhece MARCOS, que era candidato a Vereador pelo PSB e que foi preso pelo cacique em uma cadeia que existe dentro da área, sendo que ele fez poucos votos. Indagada, disse acreditar que depois da prisão ele teria ficado com medo de fazer campanha. Referiu que depois das ameaças os candidatos não fizeram campanha de um modo “direto”. 

Tais depoimentos revelam que a democracia e a liberdade de expressão são valores ainda não bem consolidados na comunidade indígena, que convive com uma cultura machista bastante arraigada, de modo que a participação feminina na política é ainda incipiente, conforme admitido pelas testemunhas JOSÉ ROBÉRIO SALES e DANIELA FRANCIELA SALES, os quais destacaram que no período eleitoral tais reveses mostram-se mais intensos. 

É cediço que as eleições municipais costumam ser mais acirradas no interior, ao ponto de se concretizarem atitudes bastante “deselegantes” entre os participantes da disputa, de modo mais pontual entre aqueles que exercem certa influência, poder ou estão investidos de alguma autoridade. Dito de outro modo, em que pese reprovável, não é incomum a notícia de atos tendentes a interferir na liberdade do voto, principalmente pelo abuso de poder, presente de modo insistente e desafiador a cada pleito eleitoral. Todavia, percebo que os fatos narrados pelas testemunhas revelam práticas ainda mais “grosseiras”, atribuídas ao cacique e sua liderança, a ponto de restringir, até mesmo, a liberdade de ir e vir dos liderados. 

No caso, 13 (treze) dos 14 (quatorze) candidatos impugnados vivem na reserva denominada Terra Indígena Guarita, do Município de Redentora, chefiada pelo cacique Carlinhos Alfaiate. Este, conforme relatado, apoiou politicamente a reeleição do Candidato a Prefeito Nilson Costa “do 15”, que concorreu pela coligação Redentora Avante (MDB, PDT), no pleito municipal 2020. Por outro lado, “o 40” - Partido Socialista Brasileiro, agremiação pela qual concorreram os impugnados, integrou a coligação adversária, Unidos por Redentora, que tinha como candidatos a Prefeito, Luiz Carlos Cordeiro Machado e a Vice-Prefeito, Leomar Douglas Ribeiro (Presidente do PSB e ligado à comunidade indígena). Com isso, o PSB teria liderado uma forte oposição política ao cacique, porquanto participou da eleição não só com a candidatura a Vice-prefeito, mas também com 14 (quatorze) candidatos a Vereador. Aliás, a força política dessa oposição ao cacique foi referendada nas urnas, com uma vitória esmagadora do candidato Luiz Carlos Cordeiro Machado e seu vice Leomar, em todas as seções eleitorais situadas no interior da reserva indígena, bem como uma expressiva votação dos candidatos a Vereador do partido, que obteve duas cadeiras no legislativo redentorense. 

Com efeito, o resultado da eleição majoritária nas seções localizadas no interior da reserva indígena (seções 27, 31, 32 e 51) conferiu a Luiz Carlos Cordeiro Machado 765 votos, do total de 1.133 votos válidos, ou seja, recebeu mais de 67% dos votos válidos. Já na eleição proporcional, nas referidas seções, do total de 1.146 votos válidos, o PSB somou 618 votos, ou seja, mais de 50% dos votos válidos. 

 

Aliás, sobre o êxito na votação obtida pela coligação e pelo partido no pleito eleitoral, manifestou-se o impugnante no seguinte sentido: 

No que concerne à alegação de ameaças proferidas pelo Cacique Carlinhos Alfaiate, não há sustentação nos autos. Veja-se que dos 14 candidatos do PSB, 13 são indígenas, sendo 2 eleitos, Joel Ribeiro de Freitas com 292 votos e Elizeu Kei Claudino com 129 votos, totalizando, conjuntamente, 421 votos. Ainda, afere-se que os suplentes do PSB, somados, alcançaram 424 votos2. Ou seja, em um partido cuja maioria esmagadora dos candidatos é indígena, caso houvesse, efetivamente, a proibição de campanha e ameaças proferidas pelo Cacique, certamente o resultado perfectibilizado seria diverso. Igualmente, é consabido que Redentora apresentou um período eleitoral hostil, com forte polarização entre os candidatos Nilson Paulo Costa (MDB) e Luiz Carlos Cordeiro Machado (PSDB). Assim, eventual ameaça no pleito majoritário, em que pese altamente reprovável, não tem o condão de estender-se à eleição proporcional, não se cogitando de mácula automática.

  Dessarte, é fato que os candidatos a Vereador do partido PSB obtiveram significativa votação nas seções localizadas no interior da reserva indígena, assim como foi expressiva a diferença de votos pró Cordeiro (o candidato apoiado pelo PSB) na eleição majoritária. Todavia, em que pese a pertinente lógica descrita pelo impugnante, o resultado das urnas não elimina a prática das coações, ameaças e perseguições pela liderança indígena, concretizadas em demissões e prisões no interior da reserva, com força, inclusive, para inibir a campanha de Ádima e Cleusa, na forma afirmada com veemência pelas testemunhas. Aliás, não seria razoável descartar a hipótese de que o resultado das urnas tenha expressado o repúdio da comunidade indígena à postura adotada pelo cacique. Afinal, de acordo com as testemunhas ouvidas em juízo, muitos dos candidatos não cederam às pressões e ameaças, prosseguindo com sua campanha de forma exitosa, como no caso dos candidatos Joel e Elizeu. 

Percebo, ainda, no caso das candidatas Ádima e Cleusa, que além das ameaças de perseguições e demissões a familiares, que podem ter influenciado no ânimo de suas campanhas, elas também enfrentaram a situação de contágio por covid no grupo familiar, o que as colocou na condição de isolamento domiciliar, com determinação para que não saíssem de casa. No caso de Ádima, o avô faleceu por conta da doença, enquanto que a candidata Cleusa relatou perante o juízo que estava com medo, porque muita gente na comunidade havia “pego” a doença, inclusive um irmão seu. Tais circunstâncias mostram-se relevantes e, se não justificam, ao menos indicam motivos razoáveis para a pouca ou nenhuma movimentação das candidatas durante a campanha eleitoral.  

Aliás, a pandemia, por si só, impôs restrições às campanhas, no que diz à saída dos candidatos em busca de votos ou à promoção de eventos políticos. É oportuno recordar que o próprio Cartório Eleitoral permaneceu fechado durante todo o pleito. Obviamente, não desconheço o fato de que uma parte dos políticos ignorou as medidas sanitárias e realizou sua campanha alheio ao vírus. Todavia, tal postura não pode ser utilizada como parâmetro para censurar aqueles que cumpriram as normas vigentes, seja por medo da doença ou de represálias por parte das autoridades, ainda mais no caso das candidatas, que tiveram familiares infectados pelo vírus e receberam determinação para permanecer em casa. 

É certo que aqueles que dispunham de outros recursos ou ferramentas virtuais para a realização da campanha utilizaram-se desses meios, mas pelo visto essa não era a condição das candidatas Ádima e Cleusa, uma vez que, conforme afirmado pelo investigante, Cleusa sequer tinha endereço cadastrado no facebook, enquanto que Ádima pouco ou nenhum uso fazia, visto que suas últimas postagens teriam sido efetuadas há mais de um ano da eleição. 

Tenho presente, também, que cabe aos partidos envidar esforços para fomentar a participação feminina na política, buscando preparar e fortalecer candidaturas para a disputa, em vez de “sair à caça de candidatas” à véspera do pleito, como referido pelo investigante. Todavia não se pode desprezar a situação atípica experimentada em 2020, quando sequer havia certeza acerca da realização do pleito. 

Ademais, inegavelmente se observa certa incipiência das candidatas, o que atribuo, todavia, a condições pessoais e culturais das candidatas, não vislumbrando má-fé ou deliberado propósito de apenas fraudar a lei “emprestando” o nome ao partido, sem que existisse qualquer pretensão de concorrer ao cargo. 

Por outro lado, observo a existência de informações acerca da destinação de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para as candidatas mulheres, efetuada pelo partido, conforme destacado pelo impugnante: 

O Partido impugnado apresentou extrato bancário, datado de 07/12/2020, da FEFC Mulheres PSB (fl. 526), constando depósito de R$ 5.000,00 em 11/11/2020, com débitos de R$ 538,00, R$ 900,00 e R$ 2.500,00 em 13/11/2020.Porém, como aduzido alhures, Cleusa e Adima sequer tinham conhecimento de que haviam recebido essa quantia para o financiamento da campanha. 

De fato, tramita perante este juízo a prestação de contas eleitorais do partido PSB de Redentora, Processo PCE Nº 0600463-66.2020.6.21.0140, em que a análise técnica constatou a seguinte situação: O total de recursos financeiros e despesas efetuadas foi de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha. Desses, R$ 3.938,00 (três mil e novecentos e trinta e oito reais) foi utilizado para contratação de serviços de divulgação das candidatas mulheres, Adima Fortunato, Cleusa Amaro, Silvanir Garej Ribeiro, Zoraide Sales, Delcia Murig Alfaiate (Documentos IDs. 800107443/45); R$ 39,00 (trinta e nove reais) foram utilizados para pagamento de tarifas bancárias; R$ 1.023,00 (um mil e vinte e três reais), teriam sido gastos com serviços contábeis. 

Ao que consta no referido processo de prestação de contas, o partido teria contratado pessoas para prestarem serviço de militância para as candidatas mulheres entre a segunda quinzena de outubro até a véspera do pleito. Tal contratação foi declarada na prestação de contas eleitorais do partido, na qual foram juntados contratos e recibos para comprovação, indicando a aplicação de recursos em favor das candidaturas femininas. De tal modo que a suposta falta de conhecimento das candidatas a respeito não elide a existência do ato, formalmente perfeito, nem lhe retira o objeto, de sorte que há evidências no sentido de que o partido, aparentemente, investiu recursos nas candidaturas femininas de sua nominata. 

Deveras, o fato de as candidatas não terem recebido o próprio voto ou de seus parentes mais próximos não se mostra determinante para a configuração da fraude ou abuso de poder pelo partido. Dito de outro modo, caso houvessem elementos bastante para evidenciar a existência de fraude na constituição da lista de candidatos apresentados pelo partido, tocante à cota de gênero, não seria o fato de as candidatas terem votados em si mesmas suficiente para descaracterizar a manobra ilícita ou afastar as sanções dela decorrentes. 

Ademais, há elementos que demonstram o apoio material fornecido pelo partido à campanha eleitoral das mulheres, seja pelo diretório estadual, que forneceu recursos de forma indistinta a todos os candidatos que concorreram a Vereador pela agremiação, seja por meio do diretório municipal, mediante a contratação de militantes para divulgação das candidaturas femininas. 

Percebo, também, a manifestação positiva das candidatas Ádima e Cleusa quanto ao interesse em participar do pleito para representar sua comunidade, sendo que houve um recuo devido a fatos supervenientes, alheios e com gravidade suficiente para intimidá-las. Em tais circunstâncias, resta afastada a configuração de fraude à cota de gênero, conforme o entendimento assentado na jurisprudência do TRE gaúcho, em estreita sintonia com a Corte Superior Eleitoral: 

[...].

 Nesse contexto, forçoso reconhecer que não há elementos suficientes para afastar a autenticidade das candidaturas de Ádima Amaro Fortunato e Cleusa Amaro, cujo interesse em concorrer foi afirmado perante este juízo e cujas adversidades enfrentadas contemplam razoável motivo para inibir e até mesmo anular suas campanhas. Assevero que, independentemente de a iniciativa das candidaturas terem partido do Presidente e Vice do partido, o primeiro em relação a Cleusa e o segundo em relação a Ádima (pai da candidata), houve espontânea aceitação pelas candidatas, que expressaram legítima motivação para concorrer ao cargo, o que fragiliza sobremaneira a tese de que as candidaturas foram frutos de conluio ou ardil, formatadas meramente para completar a lista com o número ideal de candidatas femininas e assim atender ao critério proporcional de cota por gênero, como suscitado pelo impugnante.

 Como bem expôs o Magistrado sentenciante, as prestações de contas das candidatas não discreparam de outras apresentadas na mesma Zona Eleitoral, contando exclusivamente com recursos estimáveis transferidos pela agremiação partidária. Além disso, a propaganda por redes sociais, jornais e rádio não era de comum utilização pela comunidade tradicional indígena da qual advindas as candidatas, “situada em área rural distante e genuinamente agrícola”.

Cabem aqui algumas considerações acerca das peculiaridades locais.

As candidatas residem na Reserva do Guarita e o cacique mencionado nos autos é Carlinhos Alfaiate. A fim de compreender o contexto envolvido na disputa eleitoral na localidade, recorri à pesquisa intitulada “O exercício dos direitos políticos pelos povos indígenas no Brasil: a atuação do Estado na efetivação do direito de votar e ser votado em eleições oficiais e comunitárias”, resultado da dissertação de mestrado de Flávia Miranda Falcão, apresentada em 2019 e disponível em https://fmp.edu.br/wp-content/uploads/2021/03/FLAVIA-MIRANDA-FALCAO.pdf.

Colho desse trabalho, que:

A Reserva do Guarita conta com uma população de aproximadamente 7.000 índios distribuídos na proporção de 70% no município de Redentora e 30% em Tenente Portela. Esses municípios contam com 10.689 eleitores, em Tenente Portela, e 5.583, em Redentora. Constata-se que quase 88% do eleitorado de Redentora localiza-se dentro da Reserva do Guarita, assim como 19,6% do eleitorado de Tenente Portela.

É inegável a relevância do eleitorado residente na Reserva, principalmente nas eleições oficiais municipais, razão pela qual dificilmente um candidato a Prefeito ou Vereador poderia eleger-se nesses municípios sem uma política indigenista clara e harmonizada com os interesses da comunidade. (pg. 111)

A autora também esclarece que a etnia Kaingang é a mais ativa politicamente da Reserva do Guarita e que essa comunidade possui característica guerreira. Além disso, aponta que

os Kaingang sofreram revezes que geraram distorções no modo como as lideranças se comportavam na comunidade em razão das políticas integracionistas adotadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio – SPI210, como bem descrito por Luciana Ramos em Tese de Doutorado em Antropologia Social na Universidade de Brasília:

Embora altamente repressivas e exógenas, algumas das estratégias de controle impostas pelo SPI faziam sentido para os Kaingang, que estavam habituados a verem seus chefes políticos se aliarem a agentes de maior poder, sobretudo, os vinculados ao Estado - como veremos à frente, ao acompanhar a trajetória de alguns chefes políticos no século XIX -, o que não significa que essas alianças fossem vistas como legítimas pelas comunidades neste momento. Também, aos Kaingang nunca foi estranha a gestão de caciques vistos como déspotas; a diferença é que antes podiam libertar-se do jugo de um cacique pelos movimentos faccionais, pelo seccionamento de grupos ou mesmo pela fuga, sendo que, a partir da década de 1940, não havia mais para onde correr, pois as matas haviam se transformado em fazendas e todos os demais Kaingangs encontravam-se na mesma situação de controle irrestrito (RAMOS, 2008, p. 48). (pg. 101)

A existência de disputa pelo poder nessa terra indígena é corroborada por recente notícia publicada no Portal Sul 21, que descreve situação de conflito com a chamada “Vídeos expõem escalada da violência na TI Guarita; defensora alerta para gravidade da situação” (disponível em https://sul21.com.br/noticias/geral/2022/03/videos-expoem-escalada-da-violencia-na-ti-guarita-defensora-alerta-para-gravidade-da-situacao/, acesso em 18.5.2022).

A pesquisa de FALCÃO ainda esclarece acerca do papel do cacique na Reserva do Guarita, registrando que

nas atribuições do líder estão concentradas as funções de Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo ele a autoridade competente para fazer as leis e aplicá-las ao caso concreto. As normas e leis internas sobre comportamento não são escritas, mas ditadas pelo costume, e, na ausência de norma específica, caberá ao cacique decidir e solucionar o conflito que se apresentar, em geral, os menos graves. (pg. 103)

Tendo isso em consideração, retomo a análise do caso dos autos e destaco que tanto Ádima quanto Cleusa, ouvidas em juízo, afirmaram de forma categórica que pretendiam ser candidatas e realizar campanha, inclusive sugerindo ambições de projetos políticos, mas que foram intimidadas e colocadas em isolamento social por ordem do cacique.

Em reforço à bem-lançada argumentação exposta na sentença, acrescento que o depoimento de Ádima (ID 44119083), a candidata mais jovem, demonstra que esta temia as ameaças realizadas pela liderança indígena local, relatando a situação da prisão de candidato de seu partido por ordem do cacique e a intimidação quanto ao afastamento de seu pai do emprego.

Ainda que atemorizada pela intimidação sofrida em sua comunidade, pela ocorrência de um caso de adoecimento (e morte) na família decorrente da Covid-19 e pela determinação de isolamento, a jovem Ádima afirmou com convicção - “eu queria tanto ser vereadora”, manifestando interesse em trabalhar pelos jovens, o que indica que a desistência foi uma ocorrência superveniente e fortuita, e não uma fraude planejada.

De seu turno, cumpre considerar que Cleusa (ID 44119383) tem maiores dificuldades de comunicação em língua portuguesa, o que, por vezes, justifica não oferecer informações mais completas sobre a situação vivenciada na campanha eleitoral. Ainda assim, a candidata esclareceu que o adversário não a deixou fazer campanha e que teve medo de ser presa se saísse para pedir votos, tudo aliado ao temor da contaminação pela Covid-19. Assim, mesmo que de maneira rudimentar, exprimiu seu desejo de trabalhar pelas mulheres.

Há também uma clara assimetria entre o depoimento das candidatas e aqueles prestados por Daniela Franciela Sales (ID 44119233) e José Robério Sales Pinheiro (ID 44119283).

Esses últimos são professores e expressam-se com maior fluência, descrevendo mais detalhadamente as dificuldades no relacionamento com o cacique e as barreiras ao exercício da profissão deles na aldeia, as quais afirmam ser impostas pelas lideranças indígenas. Ambos expõem o temor existente na comunidade de se “perder tudo que se tem” por perseguição política perpetrada pelo cacique.

Tais depoimentos, embora colhidos de duas pessoas filiadas ao partido acusado de fraude, também explicitam a influência do cacique sobre alguns membros da aldeia, descrevendo que pessoas mais simples – o que considero ser o caso de Ádima e Cleusa – são mais suscetíveis à suposta coação.

Todas as testemunhas ouvidas também confirmaram que o cacique realizava perseguições aos que não comungavam de seu alinhamento político nas eleições e que o candidato Marcos foi preso na cadeia localizada dentro da aldeia por ordem do líder indígena por participar de grupo da oposição, ao qual as candidatas também pertenciam.

Assim, tenho que a prova dos autos demonstra que a autoridade indígena exerceu influência em graus diversos sobre os membros da aldeia e, em especial, sobre as candidatas, o que foi determinante para que as campanhas fossem abandonadas após os registros de candidaturas.

Dedicando ao tema um capítulo específico, a Constituição Federal estabelece em seu art. 231 que são “reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

O reconhecimento da organização social e dos costumes indígenas pelo texto constitucional impõe o acolhimento da estrutura social da aldeia ou tribo de maneira especial, inclusive na consideração das relações de poder ali existentes, o que implica perceber o papel exercido pelo cacique e, na hipótese, o temor e a submissão das recorridas pertencentes àquela comunidade.

Nesse sentido, retomo interessante debate travado no Tribunal Superior Eleitoral por ocasião do exame da tese de possibilidade de cometimento de abuso de poder por cacique indígena, que constou no REspe n. 287-84.2012.6.16.01 96/PR, Relator: Ministro Henrique Neves da Silva, julgado em 15.12.2015.

Em seu voto proferido naqueles autos, o Ministro Luiz Fux ressaltou a necessidade de delimitar do campo de incidência dos institutos jurídicos, forjados dentro de um ambiente cultural ocidental, a grupos minoritários, com vistas a não descaracterizar a identidade daquelas comunidades, enquanto sujeito de direitos, expressamente reconhecidas pela Constituição Federal de 1988, em especial considerando o respeito do princípio da igualdade, no viés de direito à diferença e ao reconhecimento.

Além disso, ponderou que:

Com efeito, dentro das tradições e costumes das aldeias indígenas, os caciques ostentam uma inobjetável liderança política, de modo que, dados os vínculos mais estreitos entre os membros da comunidade e os valores compartilhados entre eles, é natural que eles [os caciques] conduzam as diretrizes políticas e tomem as decisões mais relevantes. 

[…] reputo ser natural que a autoridade política da tribo indígena conduza politicamente os rumos de seu grupo. Aqui, tratar de forma distinta, não o submetendo à responsabilização eleitoral, não amesquinha, mas antes fortalece o princípio da igualdade. 

Mais: se essa constatação soa absurda aos nossos ouvidos, é porque partimos de uma leitura etnocêntrica dos direitos humanos, capaz de impedir que enxerguemos com o devido respeito e consideração às singularidades e às particularidades da cultura de grupos tradicionais não hegemônicos. 

A partir de tais premissas, no caso dos autos, cabe reconhecer a ocorrência de razões externas e posteriores ao registro de candidaturas, que implicaram a desistência ou o abandono da campanha eleitoral por parte das candidatas recorridas, dentro do ambiente sociocultural em que inseridas.

Da mesma forma, o temor e a reverência às determinações do cacique, ainda que não atinjam todos os membros daquele grupo de forma idêntica, justificam a conduta adotada pelas recorridas Ádima e Cleusa, em suas condições pessoais de experiência e de instrução.

Embora o caderno probatório exponha um quadro de desestímulos e de obstáculos à participação política de mulheres indígenas, não se vislumbram circunstâncias fáticas comprobatórias do lançamento das candidaturas com o único propósito de cumprir a reserva de gênero legalmente imposta.

Nessa senda, em hipóteses semelhantes, a Corte Superior assentou que, para a configuração da fraude à cota de gênero, “é imprescindível a demonstração da vontade deliberada e inequívoca de frustrar a finalidade preconizada pela norma jurídica” (RESPE n. 0602016-38, Relator: Min. Tarcísio Vieira de Carvalho Neto, DJe de 01/09/2020), bem como que “apenas a falta de votos ou de atos significativos de campanha não é suficiente à caracterização da fraude alegada, especialmente porque é admissível a desistência tácita de participar do pleito por motivos íntimos e pessoais, não controláveis pelo Poder Judiciário, sendo descabido e exagerado deduzir o ardil sem que se comprove má-fé ou prévio ajuste de vontades no propósito de burlar a ação afirmativa” (AgR-REspe n. 799-14/SP, Relator: Min. Jorge Mussi, DJe de 27.6.2019).

A questão social e cultural, a meu ver, e considerando as peculiares circunstâncias do caso concreto, justifica que as candidatas tenham abdicado da realização de suas campanhas eleitorais após o lançamento de suas candidaturas, sem que se verifique a existência de fraude ou de abuso de poder.

Ademais, em vista da relevância das questões discutidas, as repercussões do possível resultado do processo merecem ser destacadas, ainda que tão somente a título de comentário.

Os documentos acostados aos autos revelam que o Ministério Público Eleitoral, com toda propriedade e diligência, promoveu ampla investigação acerca da possível fraude à cota de gênero em Redentora.

Nesse contexto, várias candidatas foram ouvidas, sendo que, em relação a duas dessas, constou manifestação no Procedimento Preparatório Eleitoral n. 00941.000.869/2020 (ID 44116483 – Fls. 221-229) esclarecendo que “ERONITA, concorrendo pelo PSDB, totalizou 0 voto no pleito eleitoral para vereador em Redentora/RS” e concluindo que, “embora existam elementos indicando possível candidatura fraudulenta, não houve qualquer benefício auferido pelo PSDB ou por outros candidatos homens da sigla, porquanto não houve vitória, nem suplência de candidato no pleito eleitoral”; também constou que “SHEILA, candidata à vereadora pelo PDT, obteve no pleito eleitoral 02 (dois) votos” e que o “fato de SHEILA ter concorrido pela mesma sigla partidária, no mesmo ano e para o mesmo cargo público (vereador) que seu companheiro/convivente (candidato VANDINHO - 12.000) não demonstra, por si só, a existência de fraude na candidatura”.

Ora, tanto ERONITA quanto SHEILA, em tese, poderiam ter suas candidaturas sindicadas pela Justiça Eleitoral em razão da suspeita de fraude, seja pela irrisória quantidade de votos que obtiveram, seja por outras circunstâncias que indicariam que não haveria real interesse em efetivamente buscar o sucesso no pleito.

Tendo isso em conta, o julgador monocrático bem observou que o reconhecimento da fraude, na hipótese e em razão das peculiaridades processuais, poderia atrair um resultado indesejado.

Confira-se, a esse respeito, excerto da sentença da AIME (ID 44115733):

No entanto, é preciso recordar que em ADI 5947 – 04.03.2020 o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a regra que garante a participação de todos os partidos nas “sobras”, sem a necessidade de atingir o quociente eleitoral, como forma de assegurar representatividade a legendas menores (§ 2º do art. 109 do CE - Lei 13.488/17). 

Com isso, observo que as vagas redistribuídas com a eventual retirada do Partido Socialista Brasileiro – PSB teriam a seguinte destinação: uma delas seria distribuída, por média, ao Partido Democrático Trabalhista – PDT e a outra teria como destinatário o Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB o partido que levou a registro a candidatura de Eronita Raimundo, em idêntica situação a de Ádima e Cleusa, mas não foi alvo de ação judicial porque, naquele momento, não teria auferido benefício algum, agora seria contemplado com uma das vagas, conquanto já não há mais possibilidade de processá-lo, tampouco poderia ter seus votos invalidados na presente demanda. De sorte que . Dito de outro modo, o PSDB, que teria cometido, em tese, o mesmo ilícito imputado ao PSB, seria favorecido com o resultado da presente ação, em detrimento à vontade popular sufragada nas urnas e à isonomia que deve nortear a atuação judicial, até porque a suspeita de fraude rodeou igualmente os dois partidos. 

outra vaga iria para o PDT, partido que também teve suspeita de candidatura feminina fictícia, qual seja, a candidata Sheila de Melo, que concorreu ao mesmo cargo e pelo mesmo partido que o esposo João Vanderlei de Almeida “Vandinho”, sendo que a referida candidata totalizou 02 (dois) votos no pleito. Aliás, não é demais referir, para evitar qualquer inconformismo por parte de outras siglas partidárias, que a  

Para melhor elucidar a situação da redistribuição das vagas, apresento o esboço do recálculo das vagas, conforme as regras eleitorais vigentes, ou seja, recalculando-se o quociente eleitoral e partidário, para posterior distribuição entre os partidos que alcançaram vagas por quociente partidário, e, em seguida, distribuindo as sobras com base na média. 

[...].

Portanto, no caso de invalidação dos votos atribuídos ao PSB, a Câmara de Vereadores de redentora ficaria com a seguinte composição: 5 (cinco) Vereadores do MDB (quatro eleitos por quociente partidário e um eleito por média), 1 (um) Vereador do PT (eleito por quociente partidário), 1 (um) Vereador do PL, eleito por média, 1 (um) Vereador do PDT, eleito por média e, 1 (um) Vereador do PSDB, eleito por média. Figurariam entre os eleitos: DENILSON MACHADO DA SILVA, MALBERK ANTOINE KUNST DULLIUS, OSMAR VIANA DOS SANTOS, LEANDRO GONCALVES FERREIRA DE LIMA, GILMAR GONÇALVES DE LIMA – MDB; VANDERLEI DA ROSA – PT; AMAURI MACALIN DOS SANTOS – PL; LAIRTON MELO – PDT e JONES LEIRIA DE LIMA - PSDB. 

possível contrassenso que acarretaria eventual juízo de procedência desta ação impugnatória, uma vez que implicaria na destituição dos mandatos obtidos pelo PSB, por suposta fraude na composição da lista de candidatas, entregando esses mandatos ao PSDB, com idêntica situação de candidata do sexo feminino, bem como ao PDT, sobre cujas candidaturas foram levantadas semelhantes irregularidades, mas não submetidas ao crivo deste juízo. Esclareço que esta abordagem não tem outra pretensão senão demonstrar o  

“caso tais atos não sejam efetivamente punidos pela Justiça Eleitoral, ano a ano se verá tal reiteração, não se quebrando o ciclo da exclusão da mulher na vida política”. Reconheço a relevante preocupação externalizada pelo Ministério Público Eleitoral, quando se reporta às fraudes a cota de gênero, verificadas a cada pleito, no sentido de que,  Todavia, em senso contrário, assevero que eventual juízo de procedência, sustentado em prova controversa e duvidosa pode ser mais gravoso ainda, atribuindo a condição de fictícia para uma possível candidatura hígida, que poderia apresentar-se mais consistente em pleitos futuros, ainda levando em conta tímida e incipiente participação da mulher índia no cenário político.

Ainda que a questão de atribuição das cadeiras eventualmente subtraídas do partido recorrido a outras agremiações, que, eventualmente, também estariam envolvidas em infrações da mesma natureza, agora precluso o prazo para averiguações, não seja o escopo do debate, cumpre ressaltar o lúcido e pertinente apontamento realizado na sentença a esse respeito.

Em conclusão, considerando que a ocorrência de intimidação por parte da liderança local indígena, com alinhamento político de oposição às recorridas, justifica a desistência das candidaturas de Ádima e Cleusa, não verifico a comprovação de fraude, conluio ou de abuso de poder a ensejar a grave sanção da cassação de todos os registros de candidatura das partes recorridas e a desconstituição dos diplomas e/ou mandatos dos eleitos.

 

DIANTE DO EXPOSTO, voto por conhecer dos recursos e por negar-lhes provimento, ao efeito de manter a sentença de improcedência de ambas as ações.

 

Oportunamente, atualize-se a autuação processual para que conste no assunto “12597 – Percentual de Gênero – Candidatura Fictícia” nas duas ações, a fim de facilitar a localização de processo dessa natureza.

É como voto, senhor Presidente.