AJDesCargEle - 0600130-78.2022.6.21.0000 - Divirjo do(a) relator(a) - Sessão: 08/08/2022 às 14:00

VOTO DIVERGENTE

DES. ELEITORAL CAETANO CUERVO LO PUMO

Apesar desta Corte já ter analisado casos semelhantes, a partir do julgamento da Ação de Justificação de Desfiliação Partidária n. 0600124-71.2022.6.21.0000, na sessão de 13.06.2022, no qual, por maioria, acolheu-se o mesmo posicionamento ora lançado no voto do eminente Relator, entendo que o tema em questão não está pacificado, tendo havido, inclusive, decisões em sentido diverso no âmbito desta Corte Regional.

Assim, considerando, ainda, o disposto no art. 940, § 3º, do CPC, pelo qual “o voto vencido será necessariamente declarado e considerado parte integrante do acórdão para todos os fins legais, inclusive de pré-questionamento”, com o mais acendrado respeito ao entendimento esposado pela douta maioria, mantenho a posição divergente e retomo as razões antes proferidas, no sentido de que a fusão entre partidos políticos caracteriza, por si só, uma mudança substancial nos programas políticos e ideológicos das agremiações fundidas, com criação de uma nova sigla, sob novos princípios, novas posições ideológicas e novas lideranças, justificando, assim, a desfiliação partidária requerida, sem perda do mandato.

A Lei n. 13.165/15, ao incluir o art. 22-A na Lei dos Partidos Políticos, positivou, em Lei Ordinária, as hipóteses de justa causa para a desfiliação, sem reproduzir a previsão contida na Resolução TSE n. 22.610/07 a respeito da fusão e da incorporação de partidos, podendo induzir a conclusão de que tal causa teria sido tacitamente derrogada.

Entretanto, pondo em perspectiva o conjunto da legislação que disciplina a matéria e a interpretação sedimentada no TSE sobre as consequências da extinção das agremiações nos procedimentos de fusão e incorporação partidárias, não alterada pela superveniência da Lei n. 13.165/15, considero a fusão como hipótese de justa causa para a desfiliação, com esteio no caput e no inciso I do parágrafo único do art. 22-A da Lei n. 9.096/95:

Art. 22-A. Perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito.

Parágrafo único. Consideram-se justa causa para a desfiliação partidária somente as seguintes hipóteses:

I - mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;

Importante considerar que, entre a previsão do art. 22-A da Lei n. 9.096/95 e a redação do art. 1º da Resolução TSE n. 22.610/07, há considerável alteração do caput dos dispositivos.

Veja-se o que prescreve a Resolução:

Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa.

§ 1º - Considera-se justa causa:

I) incorporação ou fusão do partido;

II) criação de novo partido;

III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário;

IV) grave discriminação pessoal.

Conforme se extrai do texto normativo original, a hipótese de perda de cargo por desfiliação partidária não demandava à saída do partido pelo qual foi eleito. A expressão “partido pelo qual foi eleito” não constava no dispositivo.

A nova dicção legal foi, inclusive, incorporada ao texto constitucional, a partir da recente EC n. 111/2021, que incluiu o parágrafo 6º ao artigo 17 da Lei Maior:

Art. 17. (...).

§ 6º Os Deputados Federais, os Deputados Estaduais, os Deputados Distritais e os Vereadores que se desligarem do partido pelo qual tenham sido eleitos perderão o mandato, salvo nos casos de anuência do partido ou de outras hipóteses de justa causa estabelecidas em lei, não computada, em qualquer caso, a migração de partido para fins de distribuição de recursos do fundo partidário ou de outros fundos públicos e de acesso gratuito ao rádio e à televisão.

(Grifei.)

Note-se que, na norma anterior, havia dois incisos objetivos (I e II), que não demandavam maior análise de provas, pois representavam fatos concretos, e dois incisos subjetivos (III e IV), que poderiam exigir uma análise detalhada das circunstâncias fáticas de cada caso.

Entretanto, a redação do art. 22-A da Lei dos Partidos Políticos abrangeu, em seu caput, parte daquelas hipóteses objetivas, ao incluir a expressão “ao partido pelo qual foi eleito”, já que, na fusão e em parte na incorporação, parlamentares migram automaticamente de sigla, saindo dos partidos pelos quais foram eleitos, os quais deixam de existir, e ingressam na nova agremiação incorporadora ou resultante da fusão de legendas.

Portanto, não houve apenas a extinção dos antigos incisos I e II do artigo 1º da Resolução TSE n. 22.610/07; houve também uma inovação do caput do art. 22-A da Lei n. 9.096/95, gerando a necessidade de um trabalho hermenêutico prévio, de avaliação acerca da caracterização da previsão do caput, antes da análise das hipóteses previstas nos incisos.

Ou seja, na literalidade da nova norma, apenas a subsunção do caso à previsão do caput permite avaliar os aspectos subjetivos dos incisos atuais, o que não ocorre no caso em tela, já que ninguém foi eleito pelo União Brasil.

Como se sabe, a fusão partidária pressupõe a extinção dos partidos originários e a criação de uma nova legenda, que, embora sucessora das agremiações fundidas em certos direitos e obrigações, apresenta um novo nome, um novo CNPJ, um novo estatuto, uma nova sigla, um novo número, novas lideranças e novos programas e ações partidárias.

A fusão dos partidos “a” e “b”, portanto, os extingue e cria uma nova agremiação. A lei dos partidos é clara quanto a isso:

Art. 29. Por decisão de seus órgãos nacionais de deliberação, dois ou mais partidos poderão fundir-se num só ou incorporar-se um ao outro.

(...).

§ 4º Na hipótese de fusão, a existência legal do novo partido tem início com o registro, no Ofício Civil competente da sede do novo partido, do estatuto e do programa, cujo requerimento deve ser acompanhado das atas das decisões dos órgãos competentes.

Se um novo partido é criado, é porque os anteriores evidentemente são extintos. E toda a organização é feita a partir da vontade e decisão dos órgãos nacionais das agremiações, o que também deve ser considerado como fator relevante para eventual aplicação de justa causa.

Diante disso, a solução da controvérsia passa pela redação expressa do caput do art. 22-A da Lei n. 9.096/95, cuja inteligência está também incorporada ao art. 17, § 6º, da CF/88, consoante o qual: “perderá o mandato o detentor de cargo eletivo que se desfiliar, sem justa causa, do partido pelo qual foi eleito”.

Assim, o parlamentar requerente não pleiteia a desfiliação “do partido pelo qual foi eleito”, no caso o Democratas, já não mais existente, mas de partido diverso, que lhe submete a novo projeto, novas lideranças, novo número, etc.

O caput do art. 22-A da Lei n. 9.096/95 permite concluir que a fusão autoriza a desfiliação partidária sem perda do mandato eletivo, uma vez que parlamentar requerente não foi eleito pelo partido ao qual está presentemente filiado.

Assim, uma interpretação literal da norma expressa no caput do artigo 22-A da lei dos partidos, portanto, deixa clara a sua inaplicabilidade ao caso em tela.

Já em uma interpretação teleológica, não chegaríamos a outro resultado, uma vez que a norma do artigo 22-A da lei dos partidos deverá ser lida em conformidade com os princípios constitucionais que a guiam, como o princípio democrático e o princípio da soberania popular.

Portanto, fica claro que os partidos aos quais os vereadores resolveram se filiar, considerando sua ideologia, nome, estatuto, programa, etc., deixa de existir, formando-se um novo partido, criado conforme a vontade exclusiva do órgão nacional:

Art. 29. Por decisão de seus órgãos nacionais de deliberação, dois ou mais partidos poderão fundir-se num só ou incorporar-se um ao outro.

§ 1º No primeiro caso, observar-se-ão as seguintes normas:

I - os órgãos de direção dos partidos elaborarão projetos comuns de estatuto e programa;

II - os órgãos nacionais de deliberação dos partidos em processo de fusão votarão em reunião conjunta, por maioria absoluta, os projetos, e elegerão o órgão de direção nacional que promoverá o registro do novo partido.

A adoção do caráter nacional dos partidos, fruto do Código de 1945 e mantida no atual texto constitucional, não pode justificar o abandono do princípio democrático e tampouco deve permitir ao legislador e ao Poder Judiciário interpretá-lo de forma a concentrar poderes nos órgãos nacionais.

O caráter nacional dos partidos não visa a concentração de poderes na cúpula, mas apenas evitar a existência de partidos regionais, como ensina Mezzaroba:

Na verdade, com a imposição do princípio do caráter nacional buscou-se, fundamentalmente, impedir a formação de partidos com simples programas regionais ou locais, como eram, por exemplo, as organizações políticas da primeira República brasileira. Com efeito, aqueles partidos republicanos regionais identificavam-se mais com facções do que propriamente com o espírito de verdadeiros partidos políticos. (MEZZAROBA, Orides, Partidos Políticos. Curitiba, ed. Juruá, p. 25)

Neste contexto, não se pode desconsiderar que a fusão aqui discutida, realizada nos termos do art. 29 da Lei dos Partidos Políticos, limitou-se a uma discussão de seus órgãos nacionais. Ainda que seja esta a forma prevista em lei, é necessário reconhecer que se trata de uma decisão de cúpula que afeta diretamente todos os filiados do partido, que não podem ser obrigados a aceitá-las. Se a cúpula decide realizar a fusão, cabe ao filiado o direito de manter-se ou não no partido.

Não se pode presumir que o novo programa partidário tenha sido objeto de intenso debate em todas as instâncias da agremiação, sendo resultado de um consenso entre filiados de ambos os partidos. Ao contrário, tal concepção ignora o déficit democrático e de participação dos filiados nos rumos das grandes agremiações, os quais são, como notório, encabeçados por “caciques políticos” ou pelos diretórios nacionais, com pouco ou nenhuma influência das esferas menores de organização partidária.

Os partidos, como as associações em geral, também devem obediência ao princípio democrático, em sua vida interna, como bem ensina a professora Eneida Desiré Salgado:

(...) em face das funções que exercem o tratamento constitucional com relação aos partidos é peculiar. Se lhes são asseguradas sua livre criação, fusão, incorporação e extinção, impõe-se, em contrapartida, o respeito à soberania popular, ao regime democrático, ao pluripartidarismo e aos direitos fundamentais da pessoa humana (art. 17, caput). Certo é, no entanto, que a deferência a esses valores, principalmente a democracia e os direitos fundamentais – que não são exclusivos da arena política – devem ser observados por todas as associações, principalmente por aquelas que exercem função pública, como é o caso dos partidos.

(SALGADO, Eneida Desiré. Os partidos Políticos e o Estado Democrático: A tensão entre autonomia partidária e a exigência de democracia interna, in SALGADO, Eneida Desiré e DANTAS, Ivo. Partidos Políticos e seu regime jurídico, Curitiba, ed. Juruá, p. 139).

Ainda nesse sentido:

Nem os partidos políticos, nem os sindicatos, nem outras organizações privadas que cumpram função pública podem se furtar à plena observância do conteúdo do princípio democrático – a elas também se estendem a realização dos valores da liberdade e da igualdade. Trata-se da eficácia horizontal do princípio democrático em sua inteireza (SALGADO, Eneida Desiré. Princípios constitucionais estruturantes do Direito Eleitoral. Tese de doutorado, UFPR, 2010, p 345).

Assim, não se pode exigir de vereadores, como no caso em tela, a fidelidade a um novo partido nascido de uma decisão de cúpula, da qual não participaram e nem foram consultados, ainda que a mesma tenha ocorrido na forma da lei.

Tal questão é especialmente relevante em Estados Federados, onde deve ser respeitada a autonomia local. Assim, se cabe aos órgãos nacionais extinguir os partidos e criar um novo, é evidente que poderão os demais membros da agremiação, não consultados para essa decisão, muitas vezes adversários ou sem qualquer identidade no nível local, tomar outro rumo e buscar uma nova agremiação.

Não por outro motivo, são inúmeras as ações que vem chegando ao Poder Judiciário, em todo o país, decorrente da evidente insatisfação com a decisão de cúpula tomada, que extinguiu os partidos pelos quais os candidatos se elegeram.

Desse modo, é necessário compatibilizar a autonomia dos partidos políticos para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre sua organização e funcionamento, assegurada no art. 17, caput e § 1º, da CF/88, com os direitos e expectativas mantidos por seus mandatários eleitos, igualmente tutelados pelo arcabouço de direitos fundamentais, pelo regime democrático e pelo pluripartidarismo, expressamente positivados como condicionantes à liberdade partidária, in verbis:

Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os seguintes preceitos:

I - caráter nacional;

II - proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou governo estrangeiros ou de subordinação a estes;

III - prestação de contas à Justiça Eleitoral;

IV - funcionamento parlamentar de acordo com a lei.

§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna e estabelecer regras sobre escolha, formação e duração de seus órgãos permanentes e provisórios e sobre sua organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações nas eleições majoritárias, vedada a sua celebração nas eleições proporcionais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.

Quanto ao ponto, colho a doutrina de Augusto Aras, em sua clássica obra sobre fidelidade partidária, atualizada, revista e ampliada por Ezikelly Barros:

A despeito de a incorporação ou fusão e a criação de novo partido – previstas nos incisos I e II, § 1º, art. 1º, da Res.-TSE n. 22.610/2007 – não terem sido contempladas no rol previsto no § único, art. 22-A, LPP, como motivos relevantes que autorizam a desfiliação partidária sem a consequência ou sanção da perda do cargo ou mandato eletivo, essas hipóteses de justa causa estão amparadas pelo art. 17, caput e § 1º, da Constituição Federal.

 

Afinal, a efetividade dos princípios constitucionais da liberdade e da autonomia partidárias sustentam a desfiliação partidária ocasionada pela incorporação ou fusão e criação de novo partido sem que haja a perda do cargo ou mandato eletivo, não se admitindo qualquer óbice à sua efetividade por norma infraconstitucional, sobretudo por envolver cláusula pétrea.

 

[...].

 

A incorporação e a fusão de partidos políticos – previstas no art. 17, caput, da Constituição Federal – constituem, à luz da liberdade e da autonomia asseguradas pela Magna Carta, hipóteses de justa causa para que o eleito possa se desfiliar sem a consequência ou sanção da perda do cargo ou mandato eletivo por ato de infidelidade partidária.

 

Essas hipóteses de justa causa admite, ainda, uma interpretação extensiva àquela prevista expressamente no art. 22-A, inc. I, da LPP, em virtude de a incorporação ou a fusão de partido político acarretar, em maior ou menor dimensão, uma mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário da agremiação pela qual o trânsfuga foi eleito.

(ARAS, Augusto. Fidelidade partidária – efetividade e aplicabilidade. 2ª edição. Atualizada, revista e ampliada por Ezilelly Barros: Editora GZ, 2021, págs. 548-551)

Portanto, seja por meio de uma interpretação literal, seja por uma interpretação teleológica, o art. 22-A, caput e inc. I, da Lei 9.096/95 permite a desfiliação do requerente.

Nessa linha, como também lembrado no voto do Relator, trago recente julgado do TSE, que, embora dispondo sobre hipótese de incorporação, bem estabelece que a extinção da agremiação e adoção de uma nova principiologia caracteriza a mudança substancial do programa partidária, independentemente de qualquer cotejo formal entre textos estatutários:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PERDA DE MANDATO ELETIVO. PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE. INCORPORAÇÃO DO PARTIDO REPUBLICANO PROGRESSISTA PELO PATRIOTA. JUSTA CAUSA. MUDANÇA SUBSTANCIAL DO PROGRAMA PARTIDÁRIO. DESPROVIMENTO.

[...].

6. Conforme destacado, consta que o Partido Republicano Progressista (PRP) foi incorporado pelo Patriota nos autos da Petição 0601953-14/DF, julgada em 28/3/2019.7. A hipótese efetivamente alegada encontra amparo no art. 22-A, parágrafo único, I, da Lei 9.096/1995, que considera justa causa para a desfiliação partidária a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário. No caso, inegável que a incorporação de um partido em outro fulmina toda ou, quando menos, substancialmente, a ideologia da agremiação incorporada que, afinal, deixa de existir. 8. Agravos Regimentais desprovidos.

(TSE, PETIÇÃO CÍVEL nº 0600027-90, Acórdão, Relator (a) Min. Alexandre de Moraes, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 24, Data 17/02/2022) (Grifei.)

No voto condutor, assim consignou o Relator do caso, Ministro Alexandre de Moraes:

Nesse passo, a alegada revogação tácita do art. 1º, § 1º da Res.-TSE 22.610/2007 – que previa de forma expressa no inciso I a hipótese de incorporação ou fusão de partido político como justa causa para a desfiliação partidária (ADI 4583) em razão de ter a matéria sido tratada no art. 22-A na Lei 9.096/95, acrescentado pela Lei 13.165/2015, não ampara o autor, pois forçoso reconhecer que o parlamentar pertencente ao partido incorporado, ao fim e ao cabo, encontra-se em situação jurídica semelhante a hipótese normativa relacionada a ‘mudança substancial do programa partidário’.

 

Na mesma linha de raciocínio o judicioso parecer ministerial, no sentido de que ‘não há como escapar da conclusão de que o requerido fora submetido a uma mudança substancial de programa partidário, já que o programa e estatuto do PRP já não existiam mais, encontrando-se submetido às normas e ao ideário de outra agremiação’.

 

Por pertinente, cabe reproduzir, igualmente, excerto do esclarecedor voto lançado pelo Ministro Carlos Horbach no mesmo julgamento (sem grifos no original):

Esta Corte, interpretando esse aspecto específico da Constituição, estabeleceu que a incorporação, pura e simples, e a fusão de partidos políticos eram justa causa para desfiliação, assim como a criação de novos partidos. Tais hipóteses eram contempladas no inciso II do § 1º do art. 1º da Resolução n. 22.610, enquanto que a hipótese de “mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário” era contemplada no inciso III do mesmo dispositivo.

 

É verdade que houve uma sucessão legislativa aqui. Houve a introdução de um dispositivo novo na Lei Orgânica dos Partidos Políticos, a Lei 9.096/1995, que acabou alterando um pouco essa disciplina normativa. Entretanto, parece-me que a interpretação originária dessa Corte é a que deve prevalecer, é a que deve se projetar na solução do caso concreto em julgamento. A incorporação, por si só, e a fusão de partidos já geram uma série de consequências políticas ensejadoras da desfiliação, consequências essas que transcendem, até mesmo, o que está posto nos estatutos.

 

O mero cotejo dos estatutos dos partidos fundidos não é referencial, a meu ver, suficientemente idôneo para afirmar se há, ou não, uma incompatibilidade de orientação política. E é possível recorrer-se a um exemplo histórico, que é bastante significativo. Trata-se da experiência do tradicional Partido Comunista Brasileiro que, na década de 60, sofre uma dissidência com a criação do PCdoB. Se os estatutos desses dois partidos – PCB e PCdoB – fossem cotejados, certamente haveria uma identidade total, ou quase absoluta, em suas normas; mas haveria uma dissonância total de orientação política, não haveria uma identidade de ideias.

 

Esse simples exemplo demonstra que a mera análise do estatuto não é um elemento adequado para se afirmar que uma fusão ou incorporação gera uma incompatibilidade apta a embasar a desfiliação.

 

Deve-se buscar, na minha compreensão um referencial objetivo E o elemento objetivo que se tem é o elemento da fusão ou da incorporação pura e simples.

Finalmente, também acompanhando o Relator no referido caso, sintetizou o Ministro Luís Roberto Barroso:

(...) considero, no entanto, que a incorporação de um partido por outro, ou a fusão entre partidos, constitui um fato político relevante que deve permitir ao parlamentar que esteja filiado a qualquer um deles opte por não integrar a nova agremiação que se forma, ou diluir-se em uma agremiação anteriormente existente.

A Corte Superior foi novamente provocada a se pronunciar sobre o tema, nos autos da Consulta n. 0600540-58.2021.6.00.0000, sob a relatoria do Ministro Benedito Gonçalves, na qual, dentre outras indagações, a autoridade consulente questiona: “A fusão e a incorporação podem ser consideradas como mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, para fins de desfiliação partidária por justa causa?”.

Embora ainda esteja pendente o julgamento do feito, o parecer da Procuradoria-Geral Eleitoral, de lavra do Vice-Procurador-Geral Eleitoral Paulo Gustavo Gonet Branco, sufraga o entendimento majoritário exposto na Petição Cível n. 0600027-90, explicitando que:

O quarto questionamento, indagando se a fusão e a incorporação podem ser consideradas justa causa para desfiliação, anota-se que o Tribunal Superior Eleitoral já explicitou ser “inegável que a incorporação de um partido em outro fulmina toda ou, quando menos, substancialmente, a ideologia da agremiação incorporada que, afinal, deixa de existir”, e em outro precedente, esclareceu que o entendimento somente encontra aplicação quando o trânsfuga “pertença ao partido político incorporado, e não ao incorporador”.

Na mesma senda, diversos Tribunais Regionais Eleitorais, em casos envolvendo a fusão entre PSL e Democratas, têm acompanhado o posicionamento sufragado pela Corte Superior, entendendo que a fusão partidária, resultando na extinção dos partidos originários e composição de novo estatuto, implica substancial modificação do programa partidário, consoante ilustram as seguintes ementas:

AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO DE DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA. ELEIÇÕES 2020. VEREADOR ELEITO. FUSÃO DE PARTIDOS ORIGINANDO UM NOVO PARTIDO. NOVAS DIRETRIZES. JUSTA CAUSA. TUTELA DE URGÊNCIA DEFERIDA.DESNECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. PEDIDO PROCEDENTE PARA DESFILIAÇÃO COM PRESERVAÇÃO DO MANDATO ELETIVO. 1 –Não há negar que a fusão partidária, com a consequente extinção dos partidos que se fundiram, implica substancial modificação da ideologia e do programa partidário antes observado pelos partidos originários. 2– Reconhecimento da justa causa para desfiliação com preservação do mandato eletivo conquistado nas urnas. 3– Pedido julgado procedente.

(TRE-GO - AJDesCargEle: 06001275920226090000 GOIÂNIA - GO 060012759, Relator: DES. JULIANO TAVEIRA BERNARDES, Data de Julgamento: 07/04/2022, Data de Publicação: 20/04/2022)

 

AÇÃO DE DECRETAÇÃO DE PERDA DE MANDATO ELETIVO – ELEIÇÕES 2020 – VEREADOR ELEITO – Preliminar de carência da ação – Afastada – Fusão de partidos políticos – Agremiações deixam de existir para dar lugar a um novo partido – Mudança substancial do programa partidário – Hipótese de justa causa para desfiliação – Artigo 22–A, inciso I, da Lei nº 9.096/1995 – Improcedência da ação.

(TRE-SP - AJDesCargEle: 06001287020226260000 RESTINGA - SP 060012870, Relator: DES. MAURICIO FIORITO, Data de Julgamento: 14/06/2022, Data de Publicação: DJE - DJE, Tomo 115)

 

Ação declaratória de justa causa para desfiliação partidária. Anuência do partido com a saída do autor. Elementos de prova suficientes para comprovação das alegações tecidas na Inicial. Existência do interesse de agir, atinente ao reconhecimento de justa causa para desfiliação partidária, sem perda do mandato eletivo. Procedência do pedido com fulcro no art. 17, §6º da CF/88 c/c artigo 1º, §1º, da Resolução TSE n. 22.610/2007.

1. Dentre os elementos de prova acostados ao feito, repousa uma comunicação de desfiliação partidária realizada pelo autor, solicitando a concordância da agremiação com o seu desligamento (ID nº 49195125), tendo, em resposta, o Partido União Brasil se manifestado no sentido de não utilizar as prerrogativas da Resolução TSE n. 22.610/07 c/c com o art. 26, da Lei 9096/95, que trata da infidelidade partidária, e que não postularia eventualmente o seu mandato, por expressa vontade do povo de Luís Eduardo Magalhães, por motivo de desfiliação partidária, em respeito aos princípios constitucionais (ID 49195122).

2. Oportuno asseverar a inclusão do §6º ao artigo 17 da Constituição Federal, através da Emenda Constitucional n. 117 de 2022, que deixa clara a autorização para o filiado se desligar da agremiação nos casos de anuência desta, sem a perda do cargo eletivo, consubstanciando caso de justa causa.

3. Forçoso admitir o interesse de agir do Acionante, no que pertine ao reconhecimento de justa causa para sua desfiliação partidária, em ordem a lograr a manutenção de seu mandato.

4. Procedência do pedido, em ordem a declarar a existência de justa causa autorizativa da desfiliação do autor dos quadros do Partido União Brasil.

(TRE-BA, PETICAO n 0600147-61.2022.6.05.0000, ACÓRDÃO de 02/05/2022, Relator: DES. ELEITORAL PEDRO ROGERIO CASTRO GODINHO, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 05/05/2022)

 

Ação de Justificação de Desfiliação Partidária. Justa causa. Fusão partidária. Mudança substancial do programa partidária. Previsão expressa na Lei nº 9.096/1995. Ocorrência. Pedido procedente.

I - As regras que disciplinam a justa causa para desfiliação partidária possuem assento no § 6º do art. 17 da Constituição Federal e no art. 22-A na Lei nº 9.096/1995; II - A partir da edição da Lei nº 13.165/15, inserindo o art. 22-A na Lei nº 9.096/1995, houve a revogação tácita do § 1º do artigo 1º da Resolução TSE nº 22.610/07. Precedente STF; III - A fusão partidária encerra hipótese de mudança substancial do programa partidário, pois as ideologias originárias dos partidos que resolvem se unir deixam de existir, dando espaço a um novo estatuto, com ideários, princípios, filosofias e regras próprias; IV - Pedido de desfiliação por justa causa procedente.

(TRE-RO - PJE N. 0600059-49.2022.6.22.0000 - Relator: JUIZ EDSON BERNARDO ANDRADE REIS NETO- ACÓRDÃO N. 52/2022 - j. 11 de abril de 2022)

 

AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO DE DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA. ELEIÇÕES 2020. VEREADOR ELEITO. JUSTA CAUSA. FUSÃO DE PARTIDOS. CRIAÇÃO DE UM NOVO PARTIDO. MUDANÇA SUBSTANCIAL. FIDELIDADE PARTIDÁRIA. ARTIGO 17, § 1º DA CF. ARTIGO 22-A DA LEI Nº 9.096/1995. PARTIDO PELO QUAL FOI ELEITO NÃO EXISTE MAIS. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE PARA DECLARAR A EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA A DESFILIAÇÃO SEM A PERDA DO CARGO ELEITO.

1. Na hipótese de fusão partidária, dois ou mais partidos deixam de existir para formar um terceiro completamente novo, ou seja, os estatutos dos partidos de origem são cancelados, nos termos do art. 50 da Resolução TSE nº 23.571/2018.

2. Com o surgimento de uma nova grei, mesmo fruto de fusão, vislumbra-se a existência de valores, objetivos, crenças e princípios políticos próprios de cada ideologia política formando-se um novo estatuto comum a partir dos partidos que resolveram se fundir, e com ele também verificam-se novos projetos que podem sim afetar diretamente as posições ideológicas defendidas anteriormente pelo requerente na antiga agremiação, que não mais existe.

3. Se nasceu um novo estatuto e sobretudo novos líderes para conduzir esse novo partido, ocorreu no caso "mudança substancial do programa partidário", sendo a hipótese do inciso I do parágrafo único do artigo 22-A da lei nº 9.096/1995.

4. A fusão partidária tem por consequência inequívoca à dissonância total de orientação política entre as antigas greis com a nova e, sobretudo inexistente identidade de ideias, nascendo novos precedentes filosóficos e bases ideológicas independentes, de forma que a fusão "constitui um fato político relevante que deve permitir ao parlamentar que esteja filiado a qualquer um deles opte por não integrara nova agremiação que se forma". (Ministro Luís Roberto Barroso - TSE- PEtCiv 27-90) 5. Procedência da ação para declarar a existência de justa causa para a desfiliação sem a perda do cargo eleito em razão.

(TRE-MT; Processo n. 0600053-48.2022.6.11.0000; Relator: DES. ELEITORAL LUIZ OCTÁVIO OLIVEIRA SABOIA RIBEIRO; Relator Designado: DES. ELEITORAL ABEL SGUAREZI, Cuiabá, julgado em 20.05.2022)

No âmbito deste Tribunal Regional, o entendimento restou recentemente acolhido, por maioria, em composição deste Pleno com a participação da ilustre Desa. Eleitoral Kalin Cogo Rodrigues, tendo proferido o voto de desempate o eminente Presidente Francisco José Moesch, na linha da seguinte ementa de minha relatoria:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE JUSTA CAUSA PARA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA SEM PERDA DO MANDATO ELETIVO. VEREADOR. FUSÃO. RECONHECIDA MUDANÇA SUBSTANCIAL NO PROGRAMA PARTIDÁRIO. ALTERAÇÃO DE IDEOLOGIA. EXTINÇÃO DO PARTIDO PELO QUAL O PARLAMENTAR FOI ELEITO. ART. 22-A, CAPUT, DA LEI 9.096/95. DÉFICIT DEMOCRÁTICO E DE PARTICIPAÇÃO DOS FILIADOS. CONFIRMADA TUTELA PROVISÓRIA. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO.

1. Ação declaratória de justa causa para desfiliação partidária sem perda do mandato eletivo, ajuizada por vereador eleito em face de partido político, com fundamento na mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário, tendo em vista a fusão entre agremiações. Deferida tutela provisória de urgência.

2. A fusão entre partidos políticos caracteriza, por si só, uma mudança substancial nos programas políticos e ideológicos das agremiações fundidas, com criação de nova sigla, sob novos princípios, novas posições ideológicas e novas lideranças, justificando, assim, a desfiliação partidária, sem a perda do mandato. Nessa linha, recentes julgados do TSE e de Tribunais Regionais Eleitorais. Na hipótese, mudança substancial do programa partidário por meio da alteração de ideologia. Em contraposição ao ideário do antigo partido do demandante, a nova agremiação adotou posição denominada "social liberalista", elemento suficiente para a justa causa, conforme precedente do TSE.

3. O art. 22-A, caput, da Lei 9.096/95 permite a desfiliação com justa causa, pois, numa interpretação literal, o requerente não pleiteia a desfiliação “do partido pelo qual foi eleito”, uma vez que este foi extinto, mas do novo partido, resultado da fusão. Ao fazer surgir uma nova agremiação, a fusão posicionou o parlamentar requerente em vínculo de filiação com legenda pela qual não foi eleito, justificando a desfiliação sem perda do mandato. Incorporada ao art. 17, § 6º, da CF/88 a inteligência da referida norma. Em uma interpretação teleológica, a norma do art. 22-A deve ser lida em conformidade com os princípios constitucionais que a guiam, como o democrático e o da soberania popular. Existência de déficit democrático e de participação dos filiados nos rumos das grandes agremiações. Assim, a fusão realizada nos termos do art. 29 da Lei dos Partidos Políticos limitou-se a uma discussão de seus órgãos nacionais e, ainda que seja esta a forma prevista em lei, trata-se de uma decisão de cúpula que afeta diretamente todos os filiados do partido, que não podem ser obrigados a aceitá-las, cabendo-lhes o direito de manter-se ou não na agremiação.

4. Procedência da ação. Confirmada tutela provisória.

(TRE-RS; AJDesCargEle 0600136-85.2022.6.21.0000, Relator: DES. ELEITORAL CAETANO CUERVO LO PUMO, acórdão de 05.07.2022)

 

Ainda que, diante de todo os exposto, entenda desnecessária a análise textual dos estatutos partidários para o deslinde do caso, cabe mencionar que, ao analisar o tema, o Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina efetuou o cotejo analítico das disposições estatutárias, concluindo, ao cabo, que houve mudança substancial do programa partidário do extinto Democratas em relação ao atual União Brasil, consoante ementa que transcrevo:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE JUSTA CAUSA PARA DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA.

FILIADO DETENTOR DE MANDATO DE VEREADOR - FUSÃO - EXTINÇÃO DA ANTIGA AGREMIAÇÃO PARA CRIAÇÃO DE NOVA SIGLA PARTIDÁRIA - ALEGAÇÃO DE MUDANÇA SUBSTANCIAL NO PROGRAMA PARTIDÁRIO, BEM COMO DE ALTERAÇÕES ESTATUTÁRIAS QUE IMPACTAM A ESFERA DE DIREITOS E DEVERES DO FILIADO - QUEBRA DO VÍNCULO IDEOLÓGICO.

REQUERIMENTO DE INGRESSO NOS AUTOS COMO TERCEIRO INTERESSADO DO DIRETÓRIO ESTADUAL DO PARTIDO E DO PRIMEIRO SUPLENTE DE VEREADOR - RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DO INTERESSE JURÍDICO TÃO SOMENTE QUANTO AO PRIMEIRO SUPLENTE COMO ASSISTENTE SIMPLES - ADMISSÃO - O ASSISTENTE SIMPLES ASSUME O PROCESSO NO ESTADO EM QUE SE ENCONTRA - PRECEDENTES.

A MUDANÇA SUBSTANCIAL DO PROGRAMA PARTIDÁRIO PARA FINS DE CONFIGURAÇÃO DA JUSTA CAUSA PARA DESFILIAÇÃO DEVE ALTERAR DE FORMA RELEVANTE O PROGRAMA, AFETANDO OS RUMOS E A IDEOLOGIA DO PARTIDO.

CASO CONCRETO - AS AÇÕES E AS ORIENTAÇÕES DA AGREMIAÇÃO ANTERIOR NÃO ESTÃO MAIS PRESENTES - A POSIÇÃO DA AGREMIAÇÃO DEMONSTRA CLARAMENTE UMA OPOSIÇÃO AO GOVERNO FEDERAL - EVIDENTE DIFERENÇA DE POSTURA ENTRE O EXTINTO DEM E O ATUAL UNIÃO BRASIL.

PRECEITOS E VALORES PARTIDÁRIOS DO EXTINTO DEMOCRATAS QUE NÃO FORAM EXPRESSAMENTE ACOLHIDOS PELO NOVO PARTIDO - EFEITOS NA ESFERA JURÍDICA DO DETENTOR DE CARGO ELETIVO - O ESTATUTO DA NOVA GREI PARTIDÁRIA ESTABELECE QUE "O INTEGRANTE DA BANCADA DO PARTIDO SUBORDINARÁ SUA AÇÃO PARLAMENTAR AOS PRINCÍPIOS DOUTRINÁRIOS E PROGRAMÁTICOS DESTE ESTATUTO E ÀS DIRETRIZES LEGITIMAMENTE ESTABELECIDAS".

QUADRO COMPARATIVO - MUDANÇAS ESTATUTÁRIAS ADVINDAS DA CRIAÇÃO DO UNIÃO BRASIL - CONVENÇÃO NACIONAL - ATUALMENTE OS REPRESENTANTES DO PARTIDO NO CONGRESSO NACIONAL NÃO DETÉM O EXERCÍCIO DO DIREITO DE VOTO (ART. 46 E SEGUINTES, DO ESTATUTO DO EXTINTO DEMOCRATAS, E ART. 47 DO NOVO ESTATUTO) - AS REGRAS DO NOVO ESTATUTO DIFEREM ENORMEMENTE DO ESTATUTO DO EXTINTO DEMOCRATAS.

É FORÇOSO CONCLUIR QUE O AUTOR, COM A EXTINÇÃO DO DEM E A CRIAÇÃO DO UNIÃO BRASIL, FOI SUBMETIDO A UMA MUDANÇA SUBSTANCIAL DO ESTATUTO PARTIDÁRIO, ENCONTRANDO-SE SUBORDINADO ÀS NOVAS NORMAS E IDEÁRIOS DE OUTRA AGREMIAÇÃO, QUE NÃO SE COMUNICAM COM OS VALORES E DIREITOS ANTERIORES - EVIDENTE DIMINUIÇÃO DA DEMOCRACIA INTRAPARTIDÁRIA - RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE JUSTA CAUSA PARA AUTORIZAR A DESFILIAÇÃO SEM PERDA DO MANDATO ELETIVO - PROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL.

(PROCESSO n 0600047-78, ACÓRDÃO de 11/04/2022, Relator: JUIZ WILLIAN MEDEIROS DE QUADROS, Publicação: DJE - Diário de JE, Tomo 68, Data 20/04/2022, Página 8)

Considerando que os estatutos partidários, após aprovados pelo TSE, incorporam-se às fontes formais não estatais do Direito Eleitoral (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 14 ed. São Paulo: Atlas, p. 47), por oportuno e enriquecedor ao presente debate, transcrevo trecho da judiciosa análise procedida pelo Tribunal Eleitoral Catarinense (grifos no original):

De fato, verifico que as mudanças estatutárias advindas da criação do União Brasil, retiraram, efetivamente, da convenção nacional, a possibilidade de que os representantes no Congresso Nacional exerçam seu direito de voto (art. 46 e seguintes, do estatuto do extinto Democratas, e art. 47 do novo estatuto).

 

Para tanto, faço um quadro comparativo entre os estatutos para a plena compreensão de Vossas Excelências, verbis:

 

  • DEMOCRATAS

    UNIÃO BRASIL

     

    Art. 46. A instalação da convenção nacional dependerá da existência de, no mínimo, 9 diretórios estaduais constituídos.

    §1º - Constituem a convenção nacional:

    a) os delegados ou seus suplentes dos diretórios estaduais;

    b) os membros do diretório nacional ou seus suplentes; e

    c) os representantes do partido no Congresso Nacional.

    § 2º O quorum qualificado para a deliberação da convenção nacional é representado pela presença de:

    a) delegados, representantes de, pelo menos, 9 diretórios estaduais;

    b) metade mais um da soma dos convencionais referidos nas letras “b” e “c” do parágrafo anterior.

     

    Art. 47. Compete à convenção nacional:

    a) eleger o diretório nacional e seus suplentes;

    b) eleger o conselho fiscal, o conselho de ética partidária, bem como nominar e dar posse imediata ao conselho político nacional;

    c) escolher os candidatos do partido à presidência e vice-presidência da República;

    d) analisar e aprovar o plano de governo dos seus candidatos à presidência da República;

    e) decidir soberanamente os assuntos políticos partidários e administrativos, com efeitos em todo o território nacional, inclusive os referentes ao patrimônio do partido;

    f) decidir sobre a fusão incorporação do Democratas outro partido ou vice-versa, bem como sobre a sua dissolução e a destinação de seu acervo patrimonial.

    g) decidir sobre a reforma do programa, do estatuto e do código de ética partidária.

    Parágrafo único – À exceção das matérias que dispõem as alíneas “a” e “b” deste artigo, todas as demais deverão ser objeto de parecer prévio do conselho político nacional. (ID 18754256).

    Art. 47. Constituem a Convenção Nacional:

    I – os delegados ou seus suplentes dos diretórios estaduais; e

    II – os membros do diretório nacional ou seus suplentes.

    §1º. Integrarão a Convenção Nacional os representantes do União Brasil no Congresso Nacional, mas sem direito a voto.

     

    Art. 48. Compete à convenção nacional.

    I - eleger o diretório nacional e seus suplentes;

    II - escolher os candidatos do partido à presidência e a vice-presidência da República;

    III - analisar e aprovar o plano de governo dos seus candidatos à Presidência da República.

    IV - decidir soberanamente os assuntos políticos partidários e administrativos, com efeitos em todo o território nacional, inclusive os referentes ao patrimônio do partido.

    V - decidir sobre a fusão, incorporação da União Brasil a outro partido ou vice-versa, bem como sob sua dissolução e a destinação de seu acervo patrimonial.

    VI - decidir sobre a reforma do programa, do estatuto e do código de ética partidária.

    (ID 18754255).

 

Não há dúvidas de que as regras do novo estatuto diferem enormemente do estatuto do Democratas.

 

Ao retirar o direito de voto dos representantes do União Brasil no Congresso Nacional, houve uma alteração substancial do estatuto anterior, já que os parlamentares eleitos terão que se submeter as decisões da Convenção Nacional, sem qualquer discussão e voto.

 

Tal fato anteriormente não ocorria, já que os parlamentares eleitos poderiam se contrapor às questões discutidas por meio do seu direito de voto.

 

Não se questiona a forma como o União Brasil regula a convenção nacional em seu estatuto, contudo, comparando com o estatuto do extinto Democratas, é inegável que essas circunstâncias alteram a forma como questões delicadas e complexas eram enfrentadas anteriormente.

 

Em síntese, houve uma clara diminuição da democracia intrapartidária, o que ao fim e ao cabo suprimiu os direitos e garantias do autor.

Por fim, pensando no caso concreto, vejo que a petição inicial faz aprofundado cotejo acerca de outras mudanças programáticas, como o fato de o Estatuto Partidário da nova agremiação ter atendido em sua maioria a preceitos do PSL, em especial quanto ao ponto mais sensível de uma agremiação partidária, qual seja: sua ideologia.

Note-se que o art. 22, parágrafo único, inc. I, da Lei das Eleições alberga duas condições distintas: a mudança substancial do programa ou o seu desvio reiterado.

No caso em tela, o argumento recai com mais força, ao meu ver, justamente na mudança substancial mencionada no voto do Relator, com a adoção da posição denominada social liberalista do novo partido.

Entendo que não haja necessidade de comprovar atos concretos sobre o reflexo dessa mudança em questões particularizadas, embora os fatos da semana, especialmente as conversas entre o Presidente do União Brasil e o pré-candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Governo de São Paulo, algo inimaginável por parte isolada do Democratas, sirvam para mostrar concretamente que o novo partido assume de fato uma política mais ao centro, o que é objetivamente tratado na peça pórtico.

Conforme Bobbio, o que notadamente diferencia as classificações de esquerda, direita e centro e justamente o princípio da igualdade, representada, no União Brasil, pelo destaque dado ao aspecto social. A mera palavra social reporta à igualdade que, como lembra Bobbio, é a principal característica da esquerda em contraposição à liberdade clássica e pura.

Em contraposição, consta no ideário dos Democratas, em seu item 01, que “o compromisso maior do Partido é com a liberdade, sob todas as suas formas”, conforme publicação do Senado Federal denominada, Partidos políticos brasileiros: Programas e diretrizes doutrinárias (p. 84, disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/508139/001003807.pdf?sequence=1).

Entendo que houve, portanto, uma mudança substancial do programa partidário, por meio da alteração de sua ideologia, elemento suficiente para a justa causa, conforme precedente do TSE, no sentido de que a “mudança substancial do programa partidário para fins de configuração da justa causa para desfiliação deve ser tal que subverta de forma relevante o programa e a própria ideologia do partido” (AÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO DE DESFILIAÇÃO PARTIDÁRIA/PERDA DE CARGO ELETIVO nº 060024958, Acórdão, Relator(a) Min. Carlos Horbach, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 191, Data 18/10/2021), e é justamente esta questão ideológica que o caso concreto parece trazer.

Dessa forma, concluo que o instituto da fusão partidária constitui mudança substancial de programa partidário em nível nacional e, ao fazer surgir uma nova agremiação, posicionou o parlamentar requerente em vínculo de filiação com legenda pela qual não foi eleito, justificando a desfiliação sem perda do mandato. Além disso, claro resta que a desfiliação não ocorreu junto ao partido pelo qual o parlamentar foi eleito.

ANTE O EXPOSTO, divergindo do voto do Relator, JULGO PROCEDENTE a presente ação, a fim de declarar a existência de justa causa para a desfiliação de FELIPE COELHO PINTO do UNIÃO BRASIL, sem a perda do cargo eletivo, com fundamento no art. 22-A, caput e inc. I do parágrafo único, da Lei n. 9.096/95.