REl - 0600555-54.2020.6.21.0072 - Voto Relator(a) - Sessão: 21/07/2022 às 14:00

VOTO

Eminentes Colegas.

O recurso é tempestivo e, presentes os demais pressupostos de admissibilidade, merece conhecimento.

ROSÉLIA PEREIRA DE CASTRO SILVA recorre da sentença que desaprovou suas contas de candidata a vereadora de Viamão nas eleições 2020. Ainda, a decisão hostilizada determinou o recolhimento de R$ 2. 469,00 ao Tesouro Nacional.

As irregularidades dizem respeito à (1) utilização irregular de verbas do FEFC no valor de R$ 1.419,00, e ao (2) pagamento de gastos eleitorais, com verbas do FEFC, sem identificação do destinatário nos extratos bancários.

À análise.

Inicialmente, no que diz respeito ao gasto de R$ 1.419,00, verifico que a quantia foi registrada no extrato de prestação de contas como sobra de recursos do FEFC. Contudo, ao mesmo tempo a prestadora consignou em nota explicativa que “Foi pago contrato de locação de veículo da própria candidata, fato que impossibilita o cadastramento da movimentação financeira no SPCE, uma vez que não é permitido que o candidato seja seu próprio fornecedor. Deste modo o saldo contábil será diferente do saldo bancário no exato valor do referido contrato no montante de R$ 1.419,00”.

Importante consignar que a sentença hostilizada destacou a impossibilidade, apontada pela própria recorrente, de registrar no sistema o candidato como fornecedor, exatamente no ponto em que concluiu que a despesa com aluguel de veículo de propriedade da candidata é despesa de natureza pessoal, não podendo ser incluída na rubrica de gasto eleitoral. Dessa forma, é vedado o pagamento por meio de verbas da campanha, conforme previsto no § 6º do art. 35 da Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 35. São gastos eleitorais, sujeitos ao registro e aos limites fixados nesta Resolução (Lei n. 9.504/97, art. 26):

[...]

§ 6º Não são consideradas gastos eleitorais, não se sujeitam à prestação de contas e não podem ser pagas com recursos da campanha as seguintes despesas de natureza pessoal da candidata ou do candidato:

a) combustível e manutenção de veículo automotor usado pela candidata ou pelo candidato na campanha;

[...]

 

Na sequência, alega a recorrente que a vedação do mencionado dispositivo não alcança a locação de veículo de propriedade de candidato, e que a operação estaria comprovada por meio de um contrato de locação no qual a "candidata Rosélia" seria a contratante, e a contratada seria a "Rosélia proprietária do veículo". Indica extrato bancário no qual consta movimentação, no valor referido, na data de 18.11.2020.

O argumento seria razoável à primeira vista, considerando tão somente o dispositivo da Resolução em comento, pois de fato a locação de veículo próprio para fins de campanha eleitoral não é vedada.

No entanto, a análise sistemática da legislação revela o contrário.

Vejamos.

Ao tratar de utilização de automóvel de propriedade do próprio candidato, a Lei n. 9.504/97, no art. 28, § 6º, inc. III, somente o faz na modalidade de cessão.

Não há a hipótese de aluguel - e não poderia ser diferente, pois como registrou o parecer técnico contábil, a manobra revela a “existência de indícios de apropriação de recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral”, no caso, recursos oriundos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC. Ora, o uso de bem naquela condição exige avaliação “mediante a comprovação dos preços habitualmente praticados pela doadora ou pelo doador e a sua adequação aos praticados no mercado, com indicação da fonte de avaliação”, e no caso não há falar em um valor de mercado, pois inexiste despesa a ser coberta pelo prestador.

Agrego expressamente às presentes razões de decidir o excerto do D. Procurador Regional eleitoral, em seu parecer, onde muito bem pontuou a questão:

Em relação à despesa com a locação do próprio veículo, não obstante se possa identificar erro na fundamentação da sentença ao invocar o art. 35, § 6º, da Resolução TSE n. 23.607/19, é evidente a sua ilegalidade, por se tratar de uma teratologia jurídica, na medida em que, nos termos do art. 565 do Código Civil, Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição. A locação se caracteriza, portanto, pela cessão temporária de um bem que é de propriedade de outrem, mediante remuneração. Ora, a candidata, enquanto proprietária do veículo, não pode locá-lo para si mesma, pois o uso do bem já está respaldado pela condição de proprietária, de modo que a remuneração que a recorrente pretendia extrair do ato em questão não possui justificativa jurídica ou econômica e demonstra, conforme referido no Parecer Conclusivo, um indício de apropriação pela candidata de recursos ou valores destinados ao financiamento eleitoral, em proveito próprio ou alheio no valor de R$1.419,00.

 

Destaco, ademais, que o extrato bancário apresentado demonstra que a operação foi a última realizada na conta bancária da então candidata e, impõe ressaltar, no exato valor do saldo em conta do dia anterior, dando fim às verbas públicas recebidas com o registro “CHEQUE TERCEIROS POR CAIXA”, modo vedado na legislação de regência.

Este aspecto será abordado a seguir, no conjunto das outras falhas.

Houve igualmente a identificação de pagamento de outros dois gastos eleitorais, com verbas do FEFC no montante de R$ 1.050,00 ( R$ 750,00, em 12.11.2020 e R$ 300,00, em 13.11.2020), sem identificação do destinatário nos extratos bancários, ambos sob a forma de “CHEQUE TERCEIROS POR CAIXA”.

Falha nítida. A forma exigida para realização dos gastos eleitorais está definida de modo taxativo na Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 38. Os gastos eleitorais de natureza financeira, ressalvados os de pequeno vulto previstos no art. 39 e o disposto no § 4º do art. 8º, ambos desta Resolução, só podem ser efetuados por meio de:

I - cheque nominal cruzado;

II - transferência bancária que identifique o CPF ou CNPJ do beneficiário;

III - débito em conta; ou

IV - cartão de débito da conta bancária.

 

No tópico, a recorrente alega que a “mera ausência de identificação dos CPFs dos destinatários” foi suprida por prints de telas do SPCE, nome e CPF do destinatário, contratos, recibos e identificação no relatório final de contas. A sentença hostilizada entendeu que os documentos não suprem a exigência de comprovação.

Com razão o juízo sentenciante.

Verifico que as provas se constituem de (1) telas do sistema com declarações unilaterais da prestadora; (2) dois contratos, o primeiro sem possibilidade de leitura da página onde consta o contratado, o valor e o objeto, em documento assinado sem data, e o segundo em nome da contratada Stefane Moura Salazar da Silveira, para “panfletagem e bandeiraço”, valor de R$ 750,00, assinado com data de 14.11.2020, véspera da eleição; (3) extratos bancários com destaque para as operações de compensação de cheques nos valores de R$ 750,00 e R$ 300,00, respectivamente descontados em 12.11.2020 e 13.11.2020, ambos sem registro de contraparte; (4) contrato de aluguel de carro próprio pela prestadora (irregularidade já analisada), e (5) extrato bancário, com destaque para a operação de compensação de cheque nos valores de R$ 1.419,00, sem contraparte.

Ora, os elementos de prova não suprem a exigência de comprovação estabelecida em lei, pois não demonstram elos seguros entre os beneficiários dos pagamentos e os serviços prestados. Nesse norte, ausente o cheque nominal cruzado, inexiste a comprovação do vínculo entre pagamento e fornecedor, objeto das declarações e contratos juntados à prestação.

Reproduzo, mais uma vez aqui,  excerto do bem-lançado parecer ministerial:

Cumpre ressaltar que os meios de pagamento previstos no art. 38 da Resolução TSE n. 23.607/19 são os únicos que permitem identificar exatamente a pessoa, física ou jurídica, que recebeu o valor depositado na conta de campanha, constituindo, assim, um mínimo necessário para efeito de comprovação do real destinatário dos recursos e, por consequência, da veracidade do gasto correspondente.

Tais dados fecham o círculo da análise das despesas, mediante a utilização de informações disponibilizadas por terceiro alheio à relação entre credor e devedor e, portanto, dotado da necessária isenção e confiabilidade para atestar os exatos origem e destino dos valores. Isso porque somente o registro correto e fidedigno das informações pela instituição financeira permite o posterior rastreamento, para que se possa apontar, por análise de sistema a sistema, eventuais inconformidades.

Assim, se por um lado o pagamento pelos meios indicados pelo art. 38 da Resolução TSE n. 23.607/19 não é suficiente, por si só, para atestar a realidade do gasto de campanha informado, ou seja, de que o valor foi efetivamente empregado em um serviço ou produto para a campanha eleitoral, sendo, pois, necessário trazer uma confirmação, chancelada pelo terceiro com quem o candidato contratou, acerca dos elementos da relação existente; por outra via a tão só confirmação do terceiro por recibo, contrato ou nota fiscal também é insuficiente, pois não há registro rastreável de que foi ele quem efetivamente recebeu o referido valor.

É somente tal triangularização entre prestador de contas, instituição financeira e terceiro contratado, com dados provenientes de diversas fontes, que permite, nos termos da Resolução TSE n. 23.607/19, o efetivo controle dos gastos de campanha a partir do confronto dos dados pertinentes. Saliente-se, ademais, que tal necessidade de controle avulta em importância quando, como no caso, se trata de aplicação de recursos públicos.

Ademais, a obrigação de que os recursos públicos recebidos pelos candidatos sejam gastos mediante forma de pagamento que permite a rastreabilidade do numerário até a conta do destinatário (crédito em conta), como se dá com o cheque cruzado (art. 45 da Lei n. 7.357/85), assegura que outros controles públicos possam ser exercidos, como é o caso da Receita Federal e do COAF.

Finalmente, ao não ser cruzado o cheque, permitindo o saque sem depósito em conta, resta prejudicado o sistema instituído pela Justiça Eleitoral para conferir transparência e publicidade às receitas e gastos de campanha, uma vez que impossibilitada a alimentação do sistema Divulgacandcontas com a informação sobre o beneficiário, inviabilizando o controle por parte da sociedade.

 

Aliás, tal posicionamento resta sedimentado neste Tribunal e, exemplificativamente, trago ementa do Processo n. 0600665-45.2020.6.21.0010, de minha relatoria, julgado à unanimidade em 20.10.2021:

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATO. VEREADOR. PRELIMINAR. JUNTADA DE DOCUMENTOS NA VIA RECURSAL. INCOERÊNCIA NA APRESENTAÇÃO DE PROVA. TENTATIVA DE INDUÇÃO DO JUÍZO EM ERRO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. APLICAÇÃO DE MULTA. MÉRITO. DIVERGÊNCIA ENTRE EXTRATOS BANCÁRIOS E PRESTAÇÃO DE CONTAS. UTILIZAÇÃO IRREGULAR DE VERBAS DO FUNDO ESPECIAL DE FINANCIAMENTO DE CAMPANHA – FEFC. PAGAMENTOS EM DESACORDO COM O ART. 38 DA RESOLUÇÃO TSE N. 23.607/19. IRREGULARIDADES DE ELEVADO PERCENTUAL. INVIÁVEL A APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. DESAPROVAÇÃO. RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL. DESPROVIMENTO. 

1. Recurso contra sentença que desaprovou as contas de campanha relativas às eleições 2020, em razão de não apresentação integral dos extratos bancários referentes aos recursos do FEFC; ausência de comprovação de gastos com recursos do FEFC; realização de pagamento de despesas de forma diversa da prevista na legislação; e divergência entre a movimentação financeira registrada nos extratos e a informada na prestação de contas. Determinado o recolhimento do valor irregular ao Tesouro Nacional. 

2. Preliminar. O recorrente acostou documentação em fase recursal, circunstância que, na classe processual sob exame, prestação de contas, não apresenta prejuízo à tramitação do processo, mormente quando se trata de documentos simples, capazes de esclarecer as irregularidades apontadas sem a necessidade de nova análise técnica ou diligências complementares. Entretanto, a incoerência na revelação de imagem de cheque preenchido de modo cruzado, o qual anteriormente fora apresentado sem cruzamento, inevitavelmente aponta para manipulação intencional da imagem da cártula. O oferecimento de provas em meio digital alcança facilidades aos demandantes na formação do conjunto probatório, situação bastante positiva mas que, por outro lado, impõe responsabilidades às partes, sobretudo no que diz respeito ao dever de lealdade, letra expressa no art. 5º do Código de Processo Civil. Os elementos indicam a intenção de induzir o juízo em equívoco, mediante comportamento desleal, a evidenciar litigância de má-fé e ensejar a aplicação de sanção, nos termos dos arts. 80 e 81, ambos do Código de Processo Civil. Desconsiderada como prova a cópia em que o cheque se encontra cruzado. 

3. A não apresentação integral dos extratos da conta bancária para movimentação dos recursos do FEFC permanece como ressalva, de acordo com a sentença hostilizada, em razão da disponibilidade dos extratos eletrônicos.

4. Ausência de recibo emitido para pagamento de atividade de militância. O preenchimento dos documentos deve refletir com fidelidade as operações financeiras havidas na campanha. Falha que impede a verificação da licitude dos gastos, da identidade dos contratados e da real destinação das verbas, mormente as públicas, como no caso. Ademais, a despesa foi realizada com recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC, em desacordo com o disposto no art. 38 da Resolução TSE n. 23.607/19. O contrato de prestação de serviço e o recibo de pagamento são insuficientes para demonstrar o efetivo cumprimento da obrigação contratual e não suprem a falta de apresentação do título corretamente preenchido, nos moldes da legislação de regência. A comprovação segura da aplicação das verbas usadas na campanha eleitoral se faz por meio de documentos idôneos, corretamente elaborados e movimentados conforme determinam as regras eleitorais, nos termos dos arts. 53, inc. II, al. "c", e 60, caput, da Resolução TSE n. 23.607/19. 

5. As irregularidades havidas nos gastos das verbas públicas, somadas, representam 84,10% dos recursos declarados, impedindo a aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Mantida a desaprovação das contas. Recolhimento ao Tesouro Nacional. Aplicada multa por litigância de má-fé no valor correspondente a um salário mínimo, a ser recolhido à União. 

6. Provimento negado. 

(Grifei.)

 

Em resumo, as irregularidades praticadas configuram falhas graves, as quais comprometem a regularidade das contas, não se tratando das circunstâncias invocadas pela recorrente, segundo a qual erros formais e materiais corrigidos não autorizam a rejeição das contas e a cominação de sanção a candidato ou partido, nem os irrelevantes acarretam sua rejeição (art. 30 e §§ 2 e 2-A da Lei n. 9.504). Foram identificadas irregularidades de indiscutível cunho material e, portanto, à hipótese deve incidir o § 1º do art. 79 da Resolução TSE n. 23.607/19, com a devolução dos valores ao Tesouro Nacional como determinado na sentença, pois configurada a utilização indevida de recursos públicos.

Por fim, destaco que o montante das irregularidades, no valor de R$ 2.469,00 (R$ 1.419,00 + R$ 750,00 + R$ 300,00), representa 82,3% dos recursos recebidos, um total de R$ 3.000,00, e excede nominalmente o parâmetro legal de R$ 1.064,10, admitido pela jurisprudência como “balizador, para as prestações de contas de candidatos”, e “como espécie de tarifação do princípio da insignificância” (AgR–REspe 0601473–67, de relatoria do Ministro Edson Fachin, de 5.11.2019.), devendo ser mantida a desaprovação.

Diante do exposto, VOTO para negar provimento ao recurso.