REl - 0600282-51.2020.6.21.0080 - Voto Relator(a) - Sessão: 24/03/2022 às 14:00

VOTO

O recurso é adequado, tempestivo e comporta conhecimento.

No mérito, trata-se de recurso contra decisão do juízo a quo que julgou improcedente a Ação de Investigação Judicial Eleitoral por alegado uso indevido da máquina pública e abuso de autoridade/poder político, proposta por MARCIA ELIZA LUCAS FERREIRA contra RUDINEI HÄRTER, ALMENSOR CLEO UARTHE e ELIZETE MICHAELIS KOHLER.

Os fatos apontados pela recorrente versam sobre a utilização da máquina pública do município em favor de RUDINEI HÄRTER e ALMENSOR CLEO UARTHE, candidatos reeleitos nas eleições de 2020 para os cargos de prefeito e vice-prefeito de São Lourenço do Sul.

Antecipo que o recurso não merece provimento.

A repressão ao abuso de poder possui assento constitucional no § 9º de seu art. 14, in verbis:

Art. 14. […]

§ 9º. Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Cumprindo os desígnios da Carta Magna, foi editada a Lei Complementar n. 64/90, que, visando a proteger a normalidade e a legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, estabeleceu que as transgressões pertinentes seriam apuradas mediante investigação judicial.

Reproduzo, a seguir, os arts. 19 e 22, caput e inc. XIV, do referido diploma normativo:

Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

(...)

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(...)

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010.) (Grifei.)

O conceito de abuso de poder é indeterminado e aberto, não sendo definido por condutas taxativas.

Destarte, os atos abusivos serão assim interpretados nas hipóteses em que extrapolem o exercício regular e legítimo da capacidade econômica e de posições públicas dos candidatos capazes de causar indevido desequilíbrio ao pleito.

A respeito do tema, colaciono doutrina de Carlos Velloso e Walber Agra:

O abuso de poder econômico e político é de difícil conceituação e mais difícil ainda sua transplantação para a realidade fática. O primeiro é a exacerbação de recursos financeiros para cooptar votos para determinado(s) candidato(s), relegando a importância da mensagem política. Há uma exacerbação de meios materiais que apresentem conteúdo econômico para o voto de forma ilícita. O segundo configura-se na utilização das prerrogativas auferidas pelo exercício de uma função pública para a obtenção de votos, esquecendo-se do tratamento isonômico a que todos os cidadãos têm direito, geralmente com o emprego de desvio de finalidade. (Elementos de Direito Eleitoral, 5ª ed., 2016, p. 422.)

A quebra da normalidade do pleito está vinculada à gravidade da conduta capaz de alterar a normalidade das campanhas sem a necessidade de ser demonstrado que, ausente a prática abusiva, o resultado das urnas seria diferente.

É o que dispõe o art. 22, inc. XVI, da LC n. 64/90:

Art. 22.

(…)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

E, nesse sentido, bem esclarece José Jairo Gomes:

É preciso que o abuso de poder seja hábil a comprometer a normalidade e a legitimidade das eleições, pois são esses os bens jurídicos tutelados pela ação em apreço. Deve ostentar, em suma, a aptidão ou potencialidade de lesar a higidez do processo eleitoral. Por isso mesmo, há mister que as circunstâncias do evento considerado sejam graves (LC n. 64/90, art. 22, XVI), o que não significa devam necessariamente alterar o resultado das eleições. Nessa perspectiva, ganha relevo a relação de causalidade entre o fato imputado e a falta de higidez, anormalidade ou desequilíbrio do pleito, impondo a presença de liame objetivo entre tais eventos. (Direito Eleitoral, 12ª ed. 2016, p. 663).

Na mesma linha, o egrégio Tribunal Superior Eleitoral, em iterativa jurisprudência, entende que, para a caracterização do abuso de poder, "é necessária a comprovação da gravidade dos fatos, e não sua potencialidade para alterar o resultado da eleição, isto é, deve-se levar em conta o critério qualitativo - a aptidão da conduta para influenciar a vontade livre do eleitor e desequilibrar a disputa entre os candidatos -, e não o quantitativo, qual seja a eventual diferença de votos entre o candidato eleito para determinado cargo e os não eleitos" (REspe n. 1-14/MG, Rel. Min. Admar Gonzaga, DJe de 25.2.2019).

Quanto à caracterização do abuso de poder econômico, de autoridade e político, reproduzo os ensinamentos de Rodrigo López Zilio (Direito Eleitoral - 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2016. pp. 541-542):

(…) Caracteriza-se o abuso de poder econômico, na esfera eleitoral, quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Pode-se configurar o abuso de poder econômico, exemplificativamente, no caso de descumprimento das normas que disciplinam as regras de arrecadação e prestação de contas na campanha eleitoral (v.g., arts. 18 a 25 da LE). Em face à adoção da livre concorrência como um dos princípios basilares da ordem econômica (art. 170, inciso IV, da CF), tem-se que o abuso do poder econômico é o mais nefasto vício que assola os atos de campanha, distorcendo a vontade do eleitor e causando inegáveis prejuízos à normalidade e legitimidade do pleito. Para a caracterização do abuso do poder econômico desimporta a origem dos recursos, configurando-se o ilícito no aporte de recursos de caráter privado ou público.

(…)

Abuso de poder de autoridade é todo ato emanado de pessoa que exerce cargo, emprego ou função que excede aos limites da legalidade ou de competência. O ato de abuso de poder de autoridade pressupõe o exercício de parcela de poder, não podendo se cogitar da incidência desta espécie de abuso quando o ato é praticado por pessoa desvinculada da administração pública (lato sensu). O exemplo mais evidenciado de abuso de poder de autoridade se encontra nas condutas vedadas previstas nos artigos 73 a 77 da LE. Enquanto o abuso de poder de autoridade pressupõe a vinculação do agente do ilícito com a administração pública mediante investidura em cargo, emprego ou função pública, o abuso de poder político se caracteriza pela vinculação do agente do ilícito mediante mandato eletivo. (Grifado)

Feitas essas considerações, passo à análise do caso concreto.

Alega a recorrente que houve incremento, em setembro, outubro e novembro de 2020, nos vencimentos dos servidores GILNEI BLODORN, WALDECI HOLZ, WALNEI ALVES DAS NEVES e VALMIR DE OLIVEIRA FREDES em decorrência do pagamento de horário extraordinário, indicando que os serviços da Prefeitura teriam sido concentrados em tais meses, com o objetivo de, no período eleitoral mais agudo, demonstrar eficiência da administração municipal e, assim, interferir na vontade do eleitor, favorecendo os candidatos recorridos.

Não lhe assiste razão.

Restou demonstrado nos autos que houve necessidade de realização de horas extras pelos servidores lotados nos setores operacionais das Secretarias Municipais responsáveis pela infraestrutura urbana e rural, em virtude das situações de calamidade pública que assolaram São Lourenço do Sul.

O Decreto Municipal n. 5.186, de 01.11.2019, com prazo de vigência de 180 dias, estabeleceu estado de emergência em toda a área rural de São Lourenço do Sul devido a chuvas, sendo homologado pelo Governo do Estado via Decreto n. 54.923, de 12 de dezembro de 2019 (ID 43021083).

O Decreto Municipal n. 5.260, de 09.01.2020, com prazo de vigência de 180 dias,  declarou situação de emergência nas áreas afetadas pela estiagem, sendo homologado pelo Governo do Estado via Decreto n. 55.078, de 26 de fevereiro de 2020 (ID 43021183).

Após, foi editado o Decreto Municipal n. 5.313, de 20.3.2020, declarando estado de calamidade pública, em razão da notória situação de pandemia de Covid-19.

Conforme restou assentado pelo juízo monocrático (ID 43032283), a prova testemunhal colhida corrobora a tese defensiva de que o aumento da demanda de serviços gerado pelos eventos climáticos e pandêmico, bem como pelo auxílio enviado pelo Governo do Estado, justificaram a necessidade de realização de serviço extraordinário.

Deveras, a testemunha GILNEI BLODORN (ID 43027233), questionada sobre o motivo da alteração da média de seus vencimentos no período setembro-novembro de 2019 de R$ 4.330,00 para R$ 6.000,00, no mesmo período em 2020, informou: “A gente trabalhou um pouquinho a mais, né? Tinham as caçamba que vieram do Estado, e a gente acompanhou um pouquinho. Trabalhou um pouquinho mais” (00:01:30). Indagada se lembrava de a demanda ter aumentado nos últimos tempos, em toda a última gestão, pela seca, pela enchente, e pelo coronavírus, respondeu que “aumentou bastante, né? até por isso que veio as caçambas do Estado, até uma máquina veio pra acompanhar também, nós também acompanhamos” (00:07:40).

No mesmo diapasão, WALNEI ALVES DAS NEVES, perguntado se as situações de calamidade aumentaram a demanda de trabalho, respondeu: “aumentou, porque veio os caminhão e as máquinas deles, do Estado” (ID 43027133, 00:06:00).

Sobre esse tópico, VALMIR DE OLIVEIRA FREDES, que informou em seu depoimento trabalhar “mais na parte de recolhimento de entulho” (ID 43027283, 00:00:55), justificou ter realizado mais horas extras em 2020 do que em 2019 devido à quebra do maquinário. Disse, ainda, haver somente uma pá-carregadeira em funcionamento e que em 2020 se optou por deixar apenas um operador para a referida máquina, que era ele (ID 43027283, 00:01:30).

Ademais, consoante comprovam as fichas financeiras relativas aos servidores GILNEI BLODORN (ID 43028183), WALDECI HOLZ (ID 43028283), WALNEI ALVES DAS NEVES (ID 43028333) e VALMIR DE OLIVEIRA FREDES (ID 43028233), os vencimentos nos meses de setembro, outubro e novembro de 2020 não desbordaram da remuneração percebida ao longo dos demais meses do ano.

Outrossim, anoto que inexistia impedimento jurídico absoluto à realização de horas extras pelos servidores da Prefeitura, pois, como bem avaliado pelo magistrado de piso, os decretos ressalvavam a possibilidade de realização de serviço extraordinário (ID 43032283):

A autora faz extenso histórico acerca dos Decretos Municipais exarados pelo Prefeito Municipal que visavam redução de despesas, a fim de contextualizar sua tese e comprovar a contradição entre tais decisões com aquelas tomadas próximas ao pleito, quando alega o aumento em demasia dos serviços prestados.

É inconteste que os Decretos Municipais nºs 4.563, de 06/01/2017 (id. 58715724) e 4.907, de 26/09/2018 (id. 58715725) instituem o turno único na Prefeitura Municipal com a precípua necessidade de redução de despesas. Entretanto os próprios Decretos ressalvam a possibilidade de realização de serviço extraordinário (art. 3º), devendo considerar horas excedentes a partir da jornada de trabalho estabelecida para os cargos, nos casos autorizados na forma da Lei Municipal nº 2.518/2002 (id. 58715739). A Lei em comento traz a regulamentação no art. 57, caput:

Art. 57. A prestação de serviços extraordinários só poderá ocorrer por expressa determinação da autoridade competente, mediante solicitação fundamentada do chefe da repartição, ou de ofício.

Ou seja, ainda que houvesse objetivo de reduzir despesas, também há previsão de pagamento de serviço extraordinário, se devidamente autorizado. Não se presta este expediente analisar a adequação da autorização de horas extras e sim se sua autorização teve fins eleitorais. Consoante se extrai, trata-se de opção do gestor, não se vislumbrando, em tese, ilegalidade ou irregularidade, estando dentro da discricionariedade do administrador público municipal.

O percuciente parecer da Procuradoria Regional Eleitoral igualmente conclui por haver justificativa para o aumento das horas extras em 2020, em face das situações enfrentadas pelo município, consoante excerto que segue transcrito (ID 44897784):

O aumento considerável de horas extras no ano eleitoral poderia não ter outra justificativa, salvo a finalidade de influenciar no voto do eleitor, de forma a incutir uma ideia de eficiência do candidato à reeleição próximo à data do pleito, o que caracterizaria o abuso de poder político e econômico, derivado daquele, e eventual conduta vedada.

Ocorre que os investigados trouxeram justificativas que, no mínimo, importariam no reconhecimento de dúvida razoável a respeito do ilícito eleitoral, a ensejar a aplicação do princípio in dubio pro suffragium. Senão vejamos.

Conforme as aludidas tabelas, os gastos com horas extras com os referidos funcionários, na média, tem um aumento significativo no mês de dezembro de 2019, que permanece durante todo o ano de 2020. Os investigados justificaram com o fato da existência de três situações que importaram em decreto de situação de emergência e estado de calamidade pública.

Nesse sentido, foi juntado o Decreto Municipal n. 5.186, de 1º de novembro de 2019, que decretou situação de emergência em virtude de chuvas intensas havidas no mês de outubro de 2019. A homologação da situação de emergência por parte do Governo do Estado ocorreu em 12 de dezembro de 2019, conforme Decreto Estadual n. 54.923, justificando o aumento das horas extras a partir desse mês.

Quanto às enchentes de outubro, as imagens trazidas nas alegações finais dos investigados, reiteradas no recurso, deixam clara a gravidade do evento e os prejuízos trazidos para as obras públicas, notadamente estradas do município.

De salientar que o Governo do Estado somente firmou convênio com o município de São Lourenço do Sul para auxiliar na realização da reconstrução das obras destruídas pelas enchentes em maio de 2020, conforme se extrai da cópia do Convênio nº 595/2020 acostada aos autos (ID 43021133).

Neste ponto, a parte autora, conforme se vê da fl. 8 das alegações finais, reiterada em seu recurso, traz a possibilidade de ter havido um conluio entre o Prefeito, candidato à reeleição, e o Governo do Estado para viabilizar o maquinário somente próximo da data do pleito. Porém, além de não haver prova de tal conluio, a existência de candidato do PSDB, partido do Governador do Estado, à eleição majoritária no município de São Lourenço do Sul, torna pouco provável tal acerto para beneficiar os candidatos da coligação PDT-PL-PSL.

(...)

Ainda foram acostadas com a petição inicial, proposições da Câmara de Vereadores à Prefeitura Municipal, todas do ano de 2020, inclusive com fotos, para encascalhamento, patrolamento, nivelamento de vias, que termina por corroborar às necessidades de serviço existentes no ano de 2020.

Outrossim, das tabelas de pagamento de horas extras trazidas na sentença, é possível verificar que houve um aumento de horas extras não apenas nos três meses que antecederam as eleições mas durante todo o ano de 2020, após os aludidos eventos.

Com efeito, deve-se destacar que, para comprovar os ilícitos eleitorais narrados na exordial, a autora arrolou como testemunhas os servidores públicos municipais Walnei Alves das Neves, Waldeci Holz, Gilnei Blodorn, Valdeson de Freitas Pollnow e Valmir Oliveira Fredes (ID 43018583, fl. 17 do PDF). No entanto, dispensou a oitiva da testemunha Valdeson Pollnow, o que restou homologado pelo Juízo a quo (ID 43027083, fl. 1 do PDF).

(...)

Vê-se, portanto, que as testemunhas arroladas pela própria autora, em nenhum momento, corroboram a alegação de que houve incremento extraordinário de trabalho nos meses que antecederam a eleição, para beneficiar o então Prefeito e candidato à reeleição.

Por outro lado, verifica-se que as testemunhas são unânimes em afirmar que, tanto na zona rural quanto na zona urbana, houve aumento da demanda de trabalho no ano do pleito, quer seja em razão das fortes chuvas e estiagem, quer seja em razão de problemas mecânicos com as máquinas que operavam (caçamba, caminhões, pá-carragadeiras), o que ensejou a concessão de horas extras, e também em virtude do envio de maquinários e equipamentos do Governo Estadual, e finalmente para serviço de sanitização decorrente do combate à pandemia.

Nesse ponto, a prova oral harmoniza-se com as provas documentais juntadas aos autos acima referidas.

Noutro giro, no que atina ao alegado direcionamento do serviço de recolhimento de entulho para ocorrer na mesma via pública e durante a prática de ato de campanha de RUDINEI HÄRTER, de forma a incutir no eleitorado uma falsa sensação de eficiência da administração pública municipal, também não merece prosperar.

Veja-se que os serviços públicos rotineiros não cessam durante o período eleitoral, e não houve indicativo de que o candidato tenha se valido da citada atividade estatal para sua promoção pessoal.

Não bastasse isso, o serviço, levado a cabo no dia 07.11.2020, no bairro Sete de Setembro, ocorreu de acordo com o cronograma previamente estipulado pela Prefeitura (ID 43027933 e ID 43020583, fl. 88).

Consoante registrado no depoimento de VALMIR DE OLIVEIRA FREDES, o cronograma relativo ao serviço de recolhimento de entulho contém quatro rotas pré-determinadas, cada qual tendo início na segunda-feira e se estendendo ao longo da semana. Na data da fotografia, um sábado, em que ele próprio aparece dirigindo uma máquina, estava sendo executada a Rota 1, que contempla o bairro Sete de Setembro. Declarou que cada rota “é de segunda a sexta, mas a gente nunca consegue terminar na...na... quando chove, algum problema, a gente às vezes ajuda no recolhimento do lixo doméstico, a pá-carregadeira ajuda, né? Qualquer probleminha, aí atrasa um dia, dois; a gente sempre trabalha no sábado. Sempre foi feito assim.  E nessa semana, no dia 07 do 11, tava naquela semana na rota, tava ali, certinho” (ID 43027283, 00:06:30).

Idêntica foi a conclusão do nobre julgador a quo em seu decisum, que convém ser trasladada:

4. Da publicações em rede social Facebook e da execução de serviço durante caminhada

A autora traz à baila publicação feita na rede social Facebook de moradora (Cátia) que, à época da eleição, expôs serviço realizado, em tese, com fins eleitorais (id. 58702893, p. 11). Ainda que a indignação ali exposta pudesse trazer algum indício que corroborasse para o deslinde do feito, não há como concluir que o serviço realizado no caso possa configurar abuso de poder político. Deve-se ter em mente que os trabalhos da Prefeitura não param por conta das eleições e a postagem, por si só, não comprova em nada o alegado abuso de poder político ou qualquer desvio de finalidade.

Já a publicação trazida na p. 12, da petição inicial, também na rede social Facebook, apresenta foto de moradora do Bairro Sete de Setembro (Bárbara) que mostra determinado serviço de recolhimento de entulhos juntamente com a caminhada do candidato a Prefeito Municipal. Nesse caso, a vinculação da imagem do então candidato associada ao serviço público poderia, em tese, trazer benefício e ferir a paridade de armas entre os candidatos.

Entretanto, em análise mais apurada, pode-se verificar que não há utilização por parte do candidato do serviço que estava sendo executado para promoção pessoal. É notório que o serviço de recolhimento de entulhos é prestado rotineiramente no município de São Lourenço do Sul, respeitando um calendário pré-elaborado e pré-divulgado. Com efeito, a data da foto confere com a data cujo calendário de serviços determina para a prestação deste serviço (id. 74629459, pag. 88). Não há como concluir que o candidato utilizou-se do serviço em desvio de finalidade para seu benefício, eis que se trata de um serviço rotineiro, prestado durante todo o período do seu mandato. A prova testemunhal confirma (id.87689866, pág. 18):

(...)

O Parquet Eleitoral, na mesma toada, entende que inexiste prova de que o serviço tenha deixado de ser realizado nos outros dias para ser efetuado apenas no sábado. Além disso, acertadamente, compreende que se trata de ato de diminuta relevância no âmbito da campanha eleitoral, pois, ainda que tivesse havido promoção pessoal, não haveria que se falar em abuso de poder político, vez que não teria o condão de prejudicar a legitimidade e a normalidade do pleito.

Segue, abaixo, fragmento do parecer ministerial:

Como se vê da sentença, entendeu-se que o serviço estava ocorrendo no local onde se deu a caminhada do Prefeito, atendendo a um cronograma prévio, que, para o bairro em questão, iniciava na 1º segunda-feira do mês. A autora alega que um serviço que deveria ter iniciado em uma segunda-feira ocorreu com toda a estrutura em um sábado, coincidentemente junto com o ato de campanha eleitoral.

Conforme trecho do depoimento do operador acima transcrito, o serviço de recolhimento do entulho iniciava na segunda-feira e era realizado durante toda a semana, podendo adentrar no final de semana se necessário (em caso de chuva ou utilização do maquinário para outro serviço). Portanto, a utilização do maquinário no bairro Sete de Setembro estava de acordo com o cronograma, pois se tratava da primeira semana do mês de novembro, não havendo prova de que o serviço tenha deixado de ser realizado nos outros dias para ser feito apenas no sábado como alegado pela recorrente.

Ademais, considerando as fotografias acostadas na petição inicial (fl. 12), ainda que tivesse sido realizado deliberadamente o ato de campanha no momento em que estava trabalhando a máquina da Prefeitura, o certo é que se trata de um pequeno ato de campanha em um determinado bairro da cidade, sem que haja qualquer prova de referência em discurso, por exemplo, relacionando a atuação do candidato aos serviços que ali estavam sendo realizadas. Ademais, não se trata de serviço excepcional, que chame maior atenção dos eleitores, pois estamos falando da coleta ordinária de entulhos, realizadas todos os meses.

Assim, ainda que houvesse promoção pessoal do candidato em relação ao serviço público prestado, e isso é afirmado apenas a título de argumentação, restaria afastado o abuso de poder político e econômico, vez que o fato, por sua menor dimensão, não teria o condão de prejudicar a legitimidade e normalidade do pleito (art. 22, inc. XVI, da LC 64/90). No tocante à conduta vedada, se fosse o caso, seria suficiente apenas a aplicação da multa.

Destarte, a autora não logrou demonstrar que equipamentos, máquinas e pessoal vinculados às Secretarias Municipais de Obras e Urbanismo (SMOU) e de Desenvolvimento Rural (SMDR) de São Lourenço do Sul foram direcionados para influenciar o resultado do pleito, beneficiando o então Prefeito e candidato à reeleição RUDINEI HÄRTER, que foi eleito com 11.557 votos (44,84%) contra 8.913 (34,58%), obtidos pela candidata autora.

Nesse sentido, a vontade do eleitor expressa nas urnas configura manifestação do princípio democrático, basilar na República Federativa do Brasil e pressuposto do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, as sanções de cassação do diploma e inelegibilidade previstas no inc. XIV do art. 22 da LC 64/90 para os casos de abuso de poder devem consistir em exceção, ultima ratio no processo eleitoral, e somente diante da ocorrência de condutas graves, e substanciosamente comprovadas, viáveis a comprometer a normalidade e legitimidade do sufrágio.

Desse modo, por todos os fundamentos trazidos, a manutenção da sentença que julgou improcedente a presente ação de investigação judicial eleitoral é medida que se impõe.

Destarte, na hipótese vertente, não restou demonstrada a prática de ato abusivo ou com desvio de finalidade e, menos ainda, que pudesse ostentar gravidade apta a afetar a legitimidade das eleições, de modo que não deve prosperar a presente investigação judicial eleitoral, com suas rigorosas consequências.

Segundo a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, “a configuração do abuso de poder, com a consequente imposição da grave sanção de cassação de diploma daquele que foi escolhido pelo povo – afastamento, portanto, da soberania popular – , necessita de prova robusta da prática do ilícito eleitoral, exigindo-se que a conduta ilícita, devidamente comprovada, seja grave o suficiente a ensejar a aplicação dessa severa sanção, nos termos do art. 22, inciso XVI, da LC nº 64/1990, segundo o qual, ‘para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam’” (Recurso Ordinário n. 191942, Acórdão, Relator Min. Gilmar Mendes, Publicação: RJTSE - Revista de jurisprudência do TSE, Volume  25, Tomo  4, Data 16.9.2014, p. 300).

Cumpre destacar que RUDINEI HÄRTER, candidato reeleito para o Executivo Municipal de São Lourenço do Sul, foi eleito com 11.557 votos (44,84%), tendo a candidata recorrente, MARCIA ELIZA LUCAS FERREIRA, obtido 8.913 votos (34,58%).

Nesse contexto, impende gizar que a soberania da vontade popular, expressa nas urnas, há de ser preservada, a menos que exista lastro probatório consistente de que a legitimidade do pleito foi maculada.

No mesmo sentido, transcrevo, a seguir, excerto de aresto do TSE:

AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2018. PRESIDENTE E VICE–PRESIDENTE DA REPÚBLICA. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO. WHATSAPP. DISPARO DE MENSAGENS EM MASSA. NOTÍCIAS FALSAS (FAKE NEWS). MATÉRIA JORNALÍSTICA. PRELIMINARES. REJEIÇÃO. ACUSAÇÃO AMPARADA EM CONJECTURAS. AUSÊNCIA DE PROVAS SEGURAS A VINCULAR A CAMPANHA ELEITORAL AOS SUPOSTOS DISPAROS. IMPROCEDÊNCIA.

(...)

25. No mérito, é sabido que para se caracterizar o abuso de poder, impõe–se a comprovação, de forma segura, da gravidade dos fatos imputados, demonstrada a partir da verificação do alto grau de reprovabilidade da conduta (aspecto qualitativo) e de sua significativa repercussão a fim de influenciar o equilíbrio da disputa eleitoral (aspecto quantitativo). A mensuração dos reflexos eleitorais da conduta, não obstante deva continuar a ser ponderada pelo julgador, não constitui mais fator determinante para a ocorrência do abuso de poder, agora revelado, substancialmente, pelo desvalor do comportamento.

(...)

31. Emanando todo o poder do povo, compete à Justiça Eleitoral proteger a vontade popular, e não, substituí–la, razão pela qual a cassação de mandatos deve ser sempre precedida de minuciosas apuração e comprovação. Na verdade, sua incidência somente deverá ocorrer quando, dadas a gravidade e a lesividade das condutas, a legitimidade do pleito tenha sido tão afetada que outra solução menos gravosa não teria o condão de restabelecê–la.

(...)

36. Inexistente demonstração efetiva da materialidade do ilícito e de sua gravidade, não há que se perquirir acerca de eventuais reflexos eleitorais. Não sendo possível constatar a prática de conduta grave o suficiente para turbar a legitimidade, a normalidade e a paridade de armas das eleições, fica afastada a ocorrência do abuso de poder, o que, por sua vez, conduz à rejeição dos pedidos de cassação do mandato e declaração de inelegibilidade.

(...)

(Ação de Investigação Judicial Eleitoral n. 060177905, Acórdão, Relator Min. Luis Felipe Salomão, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 44, Data 11.3.2021).

Assim, deve a sentença ser integralmente mantida.

Ante o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso.