REl - 0600902-71.2020.6.21.0045 - Voto Relator(a) - Sessão: 08/02/2022 às 14:00

VOTO

A tese recursal de nulidade da sentença refere-se ao julgamento do mérito da ação, pois está baseada na falta de provas de uso da máquina pública para compra de votos e na ausência de enquadramento dos fatos como abuso de poder e conduta vedada.

Consta dos autos que, após vistoria na Secretaria de Assistência Social Trabalho e Cidadania de Santo Ângelo, realizada para apurar notícias enviadas pelo aplicativo WhatsApp ao cartório eleitoral relatando irregularidades na entrega de cestas básicas, foi encontrada uma listagem de candidatos a vereador e outros documentos, dentre eles duas folhas com tabela e a inscrição “Eleições 15/11/2020 Jacques e Dr. Volnei” e “Grupos de Trabalho Jacques e Volnei”, com indícios de entrega de cestas básicas para benefício eleitoral.

O cumprimento dos mandados de busca e apreensão foi realizado no dia em que houve a distribuição de mais de 02 (duas) centenas de cestas básicas pela Secretaria de Assistência Social Trabalho e Cidadania de Santo Ângelo-RS. Na sala onde trabalhava Cleusa Teresinha Melo - local em que os beneficiados tinham que assinar os recibos da entrega de cestas básicas - foi localizado, na cesta de lixo, um bilhete por ela redigido, no qual constava uma lista com o nome de 6 candidatos ao cargo de vereador do Município de Santo Ângelo-RS, dentre os quais se incluía o nome do demandado, Nolasco.

Após, foi efetuada a busca e apreensão de celulares, dentre eles os pertencentes ao recorrente Evandro Carlos Nolasco, candidato à reeleição como vereador, e à servidora Cleusa Teresinha Melo (IDs 44354333 e 44354383).

Nos aparelhos, foram localizadas mensagens comprometedoras entre Cleusa e Evandro, demonstrando que, durante o período eleitoral, este encaminhava eleitores à Secretaria de Assistência Social Trabalho e Cidadania de Santo Ângelo para receberem cestas básicas custeadas pela Municipalidade de Santo Ângelo-RS, por intermédio de Cleusa. As mensagens estão retratadas pela foto do próprio aparelho telefônico, no corpo da inicial, ID 44354283, e nas alegações finais do ID 44357433:


De acordo com a sentença, não foi comprovada a alegação defensiva de que as conversas entre o candidato e a servidora Cleusa versavam somente sobre encaminhamentos à secretaria municipal, porque “as referidas conversas não retratam apenas encaminhamento das pessoas ao órgão competente, pois fica claro que as mensagens eram para o efetivo atendimento da demanda”.

Com base nas provas colhidas, dentre elas a lista com o nome de 22 pessoas encaminhadas, entre 24.7.2020 e 3.11.2020, pelo recorrente à Cleusa, para o recebimento de cestas básicas, a magistrada concluiu não haver dúvida que esta ação tem “extrema gravidade”, além de caracterizar abuso de poder político e econômico e a conduta vedada prevista no inc. IV do art. 73 da Lei n. 9.504/97, com afetação da normalidade e legitimidade do pleito eleitoral:

A situação em julgamento é de extrema gravidade, na medida em que não afeta apenas a igualdade de chances dos candidatos, ferindo a isonomia daqueles que não sendo aliados ao governo municipal não tinham o mesmo caminho simplificado de atendimento das demandas, mas principalmente afeta a população, que independente da necessidade, trilham caminhos diferenciados, uns o caminho legal da inscrição, análise e deferimento e outros um simples direcionamento.

A repercussão de ações envolvendo entrega de bens às vésperas de eleição, sem sombra de dúvidas, são potenciais captadoras de votos e beneficiam o candidato, principalmente considerando que atingem pessoas de pouca instrução e totalmente fragilizadas pela situação de necessidade que passam.

O olhar que se deve ter, porém, não é de que o representado estava auxiliando pessoas necessitadas, mas sim de que estava se valendo da desgraça das pessoas para benefício pessoal, de angariar mais votos.

A conduta do representado, lamentavelmente, alimenta a falsa ideia de que as eleições são somente uma oportunidade de obter, junto aos candidatos, meios para satisfazer as necessidades materiais imediatas da população.

E mais, a aferição de critérios técnicos dos beneficiados é indispensável no desenvolvimento dos programas sociais de fornecimento de bens, justamente para desvincular da decisão política, ensejando a sua violação na punição dos responsáveis.

 

Na hipótese vertente, aplicam-se ao feito o § 9º do art. 14 da CF, os arts. 19, caput, 22, incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90 e o inc. IV do art. 73 da Lei n. 9.504/97, que tratam do uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade em benefício dos candidatos, e da vedação do uso promocional da distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo poder público.

Nenhum desses dispositivos legais exige que os atos sejam praticados com expressa contrapartida do voto do eleitor:

Constituição Federal:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

(…)

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)

 

Lei Complementar n. 64/90:

Art. 19. As transgressões pertinentes à origem de valores pecuniários, abuso do poder econômico ou político, em detrimento da liberdade de voto, serão apuradas mediante investigações jurisdicionais realizadas pelo Corregedor-Geral e Corregedores Regionais Eleitorais.

Parágrafo único. A apuração e a punição das transgressões mencionadas no caput deste artigo terão o objetivo de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta, indireta e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(…)

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

(Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

(…)

 

Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(...)

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

 

No recurso, o candidato afirma que a conduta em questão não pode ser considerada como “forma ilícita para captação de sufrágio”, pois não houve alteração no resultado das eleições, uma vez ter se classificado suplente.

Ocorre que a atuação do candidato na entrega de cestas básicas jamais poderia ser compreendida como forma lícita de captação de votos, pelo conteúdo econômico do benefício e malferimento da isonomia no pleito, pois os demais candidatos que não detinham o cargo de vereador, nem proximidade com a funcionária da prefeitura, não utilizaram esse recurso para angariar a simpatia de eleitores, representando uma vantagem do recorrente frente aos concorrentes.

Ademais, o inc. XVI do art. 22 da LC n. 64/90 estabelece que, para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam, sendo, portanto, irrelevante que o candidato não tenha logrado sua eleição, uma vez que foi diplomado como suplente.

É a legitimidade de sua eleição como suplente de vereador que deve ser analisada nos autos.

Confesso que, a partir do exame do caderno probatório, do conjunto da prova e da sua manifesta concatenação e relação temporal com o pleito ocorrido em 15.11.2020, não vejo como deixar de entender que é realmente grave o fato de que o candidato tinha prévio contato com eleitores que precisavam de cestas básicas, encaminhando à servidora municipal que trabalhava na entrega dos benefícios os respectivos dados de nome completo, CPF, endereço e quantidade de membros da família.

Até uma avaliação socioeconômica era encaminhada pelo candidato à servidora, pois nas mensagens o candidato referia que as pessoas que recomendava à prefeitura estavam “precisando muito de alimentos”, em “uma pobreza extrema”, em “situação terrível”, denunciando um contato direto com os eleitores com quem possuía vínculo.

A relação de nomes de vereadores encontrada na lixeira, aliada às demais provas e, principalmente, às mensagens enviadas pelo recorrente à Cleusa no período eleitoral, não deixa dúvidas de que a finalidade desse agir estava também dirigida ao proveito eleitoral.

Ao contrário do que o candidato defende, o caderno probatório é robusto, concreto e invencível quanto à gravidade dessa conduta diante da legitimidade da sua votação, pois se referia à entrega de alimentos a pessoa carentes, sendo inegável que o seu contato com Cleusa foi utilizado como capital político perante os eleitores.

Ademais, a conduta não foi isolada, pois perdurou ao longo de meses e atingiu, no mínimo, 22 eleitores, ou seja, 22 famílias num universo de 6.133 em Santo Ângelo, tendo o candidato auferido 568 votos.

A narrativa do recorrente é de que, “desde o princípio, não buscava fazer uso da máquina pública em seu favor, mas tão somente, indicava o caminho a ser tomado por pessoas que encontravam-se desamparadas num momento de grave crise social”.

Todavia, não há como desvincular o proveito eleitoral do seu agir, sendo irrelevante a alegação de que as testemunhas foram meramente “indicadas” e negaram ter sido impelidas a dar o voto e passado pelo processo administrativo de cadastramento e visitação de assistente social, antes do recebimento das cestas básicas, sem qualquer diferenciação no tratamento.

A matemática utilizada nessa “indicação” soa perniciosa porque o candidato tinha prévio contato com os eleitores e, a seguir, passava seus dados à funcionária da prefeitura para garantir que os alimentos fossem concedidos, ficando, portanto, com seu nome vinculado à entrega de cestas básicas.

O resultado dessa equação gerou, no mínimo, o sentimento de gratidão dos beneficiados, o reconhecimento de que foi o candidato que intercedeu na concessão do benefício ou favor, o que basta para se perceber, sem muito esforço, a gravidade das circunstâncias dos fatos em virtude da inexorável quebra da legitimidade do pleito.

A tese de que não houve finalidade eleitoreira cai por terra e não se sustenta nem de longe, porque toda essa atuação foi perpetrada em datas muito próximas ao pleito, durante o período de campanha.

Os precedentes colacionados ao recurso não se prestam a infirmar a conclusão da sentença, pois não se amoldam ao caso em exame, em que a gravidade das circunstâncias é evidente pela relevância do bem utilizado como moeda em troca de votos, cestas básicas dirigidas a pessoas vulneráveis.

Portanto, acompanho a conclusão alcançada na sentença, no sentido de que houve grave ofensa à legitimidade do pleito, sendo desarrazoada e desprovida de verossimilhança a alegação de que não havia finalidade eleitoral.

De igual modo, está perfectibilizada a hipótese de conduta vedada descrita no inc. IV do art. 73 da Lei das Eleições, pois houve promoção pessoal em favor de candidato com a distribuição gratuita de cestas básicas, sendo razoável e proporcional a multa fixada em R$ 10.641,00, ou seja, o dobro do mínimo legal, em virtude da quantidade de pessoas agraciadas.

Restando manifesta a prática das infrações, a cassação do diploma e a declaração da inelegibilidade são medidas impositivas.

Nesse contexto, por toda a prova dos autos, entendo que o recurso merece ser desprovido.

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo desprovimento do recurso, mantendo a sentença de cassação do diploma, declaração da inelegibilidade e multa, restando nulos, para todos os fins, os votos atribuídos ao recorrente, devendo ser realizado o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, por força do disposto no art. 198, inc. II, al. "b", da Resolução TSE n. 23.611/19, dispositivo que foi objeto inclusive de confirmação pelo TSE no RO 603900-65.2018.6.05.0000, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJE de 26.11.2020.

Considero prequestionada toda a matéria de defesa invocada nos autos, a fim de facilitar o acesso à instância recursal.

Comunique-se esta decisão à respectiva Zona Eleitoral para cumprimento e registro das sanções nos sistemas pertinentes.