REl - 0600602-78.2024.6.21.0010 - Voto Relator(a) - Sessão: 22/07/2025 às 16:00

VOTO

1. Admissibilidade.

Eminentes colegas, tenho o recurso como tempestivo. Ademais, encontram-se presentes os demais pressupostos processuais exigíveis à espécie, de maneira que está a merecer conhecimento.

2. Preliminar. Solidariedade e nulidade parcial da sentença.

Os prestadores suscitam preliminar de ofensa aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, no ponto em que a sentença condena à devolução de valores, solidariamente, os candidatos beneficiários das doações dos prestadores, pois eles não integram este feito. A d. Procuradoria Regional Eleitoral acompanha, no ponto, a irresignação.

Com a devida vênia, antecipo que a prefacial não merece prosperar.

Na sentença, fora aplicado corretamente a determinação contida no art. 19, § 9º, da Resolução TSE n. 23.607/19, normativo que trata da arrecadação e dos gastos de recursos por partidos políticos e candidatas ou candidatos e sobre a prestação de contas nas eleições, verbis:

Art. 19. Os partidos políticos podem aplicar nas campanhas eleitorais os recursos do Fundo Partidário, inclusive aqueles recebidos em exercícios anteriores.

§ 9º Na hipótese de repasse de recursos do Fundo Partidário em desacordo com as regras dispostas neste artigo, configura-se a aplicação irregular dos recursos, devendo o valor repassado irregularmente ser recolhido ao Tesouro Nacional pelo órgão ou candidata ou candidato que realizou o repasse tido por irregular, respondendo solidariamente pela devolução a pessoa recebedora, na medida dos recursos que houver utilizado.

Ademais, a invocação de normas constantes no Código de Processo Civil, pura e simplesmente, encontra óbice nas determinações contidas na Resolução TSE n. 23.478/16, em especial ao previsto no art. 2 do referido diploma legal:

Art. 2º Em razão da especialidade da matéria, as ações, os procedimentos e os recursos eleitorais permanecem regidos pelas normas específicas previstas na legislação eleitoral e nas instruções do Tribunal Superior Eleitoral.

Parágrafo único. A aplicação das regras do Novo Código de Processo Civil tem caráter supletivo e subsidiário em relação aos feitos que tramitam na Justiça Eleitoral, desde que haja compatibilidade sistêmica. (Grifei.)

Nítida a incompatibilidade sistêmica entre as regras das prestações de contas em relação à sistemática processual lato sensu constante no Código de Processo Civil, há de predominar a regulamentação específica - eleitoral portanto. 

Trago, ademais, análise sistemática: os ditos "terceiros" (candidatos que receberam valores, e foram responsabilizados solidariamente) não se tratam (como poderia parecer ao leitor menos avisado) daqueles "terceiros" das relações tipicamente cíveis. Forma alguma. Cuida-se, aqui, de candidatos a cargos eletivos que, por dever legal, devem estar atentos a todo e qualquer valor que percebam ao longo de suas campanhas eleitorais, em conta bancária específica para tanto, com criação de número de CNPJ também exclusivamente dedicado. Verificada alguma irregularidade no percebimento de valores, é obrigação do candidato recebedor o estorno, a imediata devolução da quantia à origem, sob pena de responsabilização de cunho objetivo, que dispensa maiores esclarecimentos a respeito das intenções ou modalidades de culpa pela entrada de dinheiro que não se alinhe às normas de regência. Em tempos que a doutrina processual civilista se debruça, com razão, nos conceitos de processo estrutural, vale indicar que as prestações de contas há muito possuem tal jaez - aquele que se lança candidato tem o dever de transparência total, via prestação de contas, não à Justiça Eleitoral, mas a toda a sociedade, sobremodo quando há o manejo de valores de origem pública. 

Se o art. 19, § 9º, da Resolução TSE n. 23.607/19 relativiza os princípios do contraditório e da ampla defesa (e, de fato, o faz), isso se dá em prol de outros princípios também de coletividade e igualmente importantes. Trata-se de norma cuja validade e eficácia são plenas, não há notícias de que tenha sido, por exemplo, declarada sua inconstitucionalidade. 

Sob tais termos, afasto a prefacial.

3. Mérito.

A sentença desaprovou as contas relativas à campanha de LEANDRO TITTELMAIER BALARDIN e DULCE MARIA MARQUES LOPES, candidatos eleitos aos cargos de prefeito e vice-prefeita no Município de Cachoeira do Sul, Eleições 2024, condenando-os ao recolhimento, ao Tesouro Nacional, do valor de R$ 41.296,56 (quarenta e um mil duzentos e noventa e seis reais e cinquenta e seis centavos). A decisão condenara também, solidariamente, os candidatos recebedores das quantias irregulares, na medida dos importes recebidos – matéria recém tratada, acima.

No relativo ao fundo da causa, as irregularidades apontadas na sentença são as seguintes: (i) utilização de verbas oriundas de “outros recursos” para cobrir despesas em favor de candidaturas de partidos diferentes da agremiação dos prestadores; (ii) utilização de verbas oriundas do FEFC Mulher para cobrir despesas em favor de candidaturas masculinas; (iii) utilização de verbas oriundas do FEFC para cobrir despesas em favor de candidaturas de partidos diferentes da agremiação dos prestadores.

Passo à análise individualizada das irregularidades.

3.1. Utilização de verbas oriundas de “outros recursos” para cobrir despesas em favor de candidaturas de partidos diferentes da agremiação dos prestadores.

De início, impende consignar que a Coligação TODOS JUNTOS POR CACHOEIRA (Federação PSDB CIDADANIA (PSDB/CIDADANIA) / PODE / MDB / PSD) apresentou a candidatura majoritária em tela, e tanto prefeito quanto vice-prefeita pertencem aos quadros do PSDB. De outra banda, os candidatos (a vereador) beneficiados com as verbas da conta Outros Recursos são pertencentes às siglas partidárias MDB e PODEMOS (conforme relatório anexado ao Parecer Conclusivo, ID 458817925).

A sentença entendeu irregular as doações realizadas com recursos privados, pelos recorrentes, a candidatos concorrentes ao pleito proporcional, pertencentes à sigla diversa dos candidatos à majoritária. Fundamentou como segue:

Ainda que se não se trate de recurso público, os valores manejados na conta dos candidatos (Outros Recursos) advieram da própria sigla partidária, em importe significativo (R$ 12.500,00, receita recebida em 04/10/2024, Diretório Estadual PSDB), pelo que considero configurada irregularidade na prestação de contas, adotando a incidência em analogia à proibição constante do art. 17, §2º, RTSE n. 23607/2019, pois onde há a mesma razão deve se aplicar o mesmo direito (ubi eadem est ratio, idem jus).

Como visto, a decisão combatida aplicou aos recursos privados, analogicamente, a regra do art. 17, §2º, da Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 17. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral e distribuído aos diretórios nacionais dos partidos políticos na forma disciplinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º) .

§ 1º Inexistindo candidatura própria do partido ou da federação por ele integrada ou em coligação na circunscrição, é vedado o repasse dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para outros partidos políticos ou candidaturas desses mesmos partidos. (Redação dada pela Resolução nº 23.731/2024)

§ 2º É vedado o repasse de recursos do FEFC, dentro ou fora da circunscrição, por partidos políticos ou candidatas ou candidatos:

I - não pertencentes à mesma federação ou coligação; e/ou (Redação dada pela Resolução nº 23.731/2024)

II - não federados ou coligados. (Redação dada pela Resolução nº 23.731/2024)

Sustentam os recorrentes a inexistência de vedação legal para o repasse de recursos de origem privada, arrecadados pela candidatura majoritária, a candidaturas de outras siglas, e que a decisão teria ofendido a autonomia deliberativa da candidatura no que diz respeito a aplicação dos recursos por ela arrecadados, ofende também o princípio da reserva legal.

Assiste razão, no ponto, aos prestadores.

As regras restritivas de direitos não podem sofrer alargamento por meio de interpretação extensiva de seu texto, sobretudo quando possuem viés sancionatório, como a situação que ora se observa.

A disposição em comento - e aplicada por analogia pelo juízo de origem - consiste em uma vedação excepcional, de cunho normativo estrito, à previsão de doação de recursos entre candidatos, e, diga-se, nada refere quanto ao repasse de verbas privadas. Aponta especificamente a proibição no relativo a recursos públicos advindos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC.

Nessa linha, precedente do e. Tribunal Superior Eleitoral, o qual (ainda que trate de tema diverso) indica a necessidade de interpretação restrita das normas que restringem direitos: 

“[...] ‘As restrições a direitos fundamentais devem ser interpretadas restritivamente, consoante lição basilar da dogmática de restrição a direitos fundamentais, axioma que deve ser trasladado à seara eleitoral, de forma a impor que, sempre que se deparar com uma situação de potencial restrição ao ius honorum, como sói ocorrer nas impugnações de registro de candidatura, o magistrado deve prestigiar a interpretação que potencialize a liberdade fundamental política de ser votado, e não o inverso’ [...]”. (Ac. de 10.12.2020 no REspEl nº 060022730, rel. Min. Sérgio Banhos.)

 

“Eleições 2024. [...] 8. A orientação jurisprudencial predominante nesta Corte Superior é no sentido de que as ‘normas delineadas na Lei de Inelegibilidade (LC n. 64/1990), por serem de ordem restritiva, também devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de se incorrer em indevida analogia, desnaturando o comando legal’ [...].” (Ac. de 6/2/2025 no AgR-REspEl n. 060014039, rel. Min. Floriano de Azevedo Marques.)

 

“[...] é da reiterada jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral que ‘ as causas de inelegibilidade devem ter interpretação estrita, porquanto atreladas ao exercício de direitos políticos fundamentais’ [...]”. (Ac. de 4.3.2021 no AgR-REspEl nº 060020632, rel. Min. Edson Fachin, red. designado Min.  Tarcisio Vieira de Carvalho Neto.)

Afasto o apontamento.

3.2. Uso de verbas do "FEFC Mulher" para o pagamento de despesas de candidatos do gênero masculino.

Trata-se de recursos que o Diretório Nacional do PSDB remetera à candidatura de DULCE MARIA a vice-prefeita (prestadora de contas). A origem do numerário foi o Fundo Especial de Financiamento de Campanha, da especialidade FEFC – CANDIDATURAS FEMININAS NÃO NEGRAS. Todavia, houve remessa de valores a outros candidatos (autodeclarados do gênero masculino), com o fito de pagamento de dívidas havidas em comum.

No que toca ao regramento, a utilização de recursos destinados às medidas afirmativas para inserção da mulher na política está disciplinada na Resolução TSE n. 23.607/19:

Art. 17. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral e distribuído aos diretórios nacionais dos partidos políticos na forma disciplinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º) .

§ 4º Para o financiamento de candidaturas femininas e de pessoas negras os partidos devem destinar os seguintes percentuais do montante recebido do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) (STF: ADI nº 5.617/DF, DJE de 3.10.2018, e ADPF- MC nº 738/DF, DJE de 29.10.2020; e TSE: Consulta nº 0600252-18, DJE de 15.8.2018, e Consulta nº 0600306-47, DJE de 5.10.2020):

I - para as candidaturas femininas o percentual corresponderá à proporção dessas candidaturas em relação a soma das candidaturas masculinas e femininas do partido, não podendo ser inferior a 30% (trinta por cento);

II - para as candidaturas de pessoas negras o percentual corresponderá à proporção de:

a) mulheres negras e não negras do gênero feminino do partido; e

b) homens negros e não negros do gênero masculino do partido; e

(...)

§ 6º A verba do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) destinada ao custeio das campanhas femininas e de pessoas negras deve ser aplicada exclusivamente nestas campanhas, sendo ilícito o seu emprego no financiamento de outras campanhas não contempladas nas cotas a que se destinam.

§ 7º O disposto no § 6º deste artigo não impede: o pagamento de despesas comuns com candidatos do gênero masculino e de pessoas não negras; a transferência ao órgão partidário de verbas destinadas ao custeio da sua cota-parte em despesas coletivas, desde que haja benefício para campanhas femininas e de pessoas negras.

§ 8º O emprego ilícito de recursos do Fundo Especial de Financiamento das Campanhas (FEFC) nos termos dos §§ 6º e 7º deste artigo, inclusive na hipótese de desvio de finalidade, sujeitará os (as) responsáveis e beneficiárias ou beneficiários às sanções do art. 30-A da Lei nº 9.504/1997, sem prejuízo das demais cominações legais cabíveis.

§ 9º Na hipótese de repasse de recursos do FEFC em desacordo com as regras dispostas neste artigo, configura-se a aplicação irregular dos recursos, devendo o valor repassado irregularmente ser recolhido ao Tesouro Nacional pelo órgão ou candidata ou candidato que realizou o repasse tido por irregular, respondendo solidariamente pela devolução a pessoa recebedora, na medida dos recursos que houver utilizado.

Na decisão recorrida, o juízo da origem apontou como despesas que deixaram de atender à legislação (i) a produção de áudio e vídeo para TV e rádio; (ii) serviços advocatícios, destinados ao custeio de gastos de campanhas; (iii) serviços contábeis.

Antecipo que a questão é complexa, e devem ser sopesados caso a caso, pelo julgador, os elementos de prova relativos aos gastos, no sentido de aferir se os autos demonstram, afinal de contas, se houve (ou não houve) o indicado "benefício" a que alude o § 7º do art. 19 da Resolução TSE n. 23.607/19. Trata-se de uma linha tênue e que requer redobrada atenção, para que não se permita, por um lado, seja desvirtuada ação afirmativa tão importante e, por outro, não sancionar candidata que efetivamente tenha auferido benefício ao parear sua candidatura com a de candidatos homens.

À análise.

3.2.1. Produção de áudio e vídeo para TV e rádio.

No relativo às despesas contratadas com a prestadora de serviços RUDIMARA DA SILVA MOREIRA, para a produção de vídeos e fotos de material de campanha, foram realizados em favor dos seguintes candidatos, conforme valores descritos na tabela:

Argumentam os prestadores que a aplicação de recursos foi estratégica e representou, além de um benefício à candidatura majoritária, a consolidação dos efeitos da política afirmativa no caso concreto.

Em primeiro, não restou claro - quer da argumentação, quer da prova documental - de que forma o pagamento de produção de fotos e vídeos a 11 (onze) candidatos homens teria redundado em "consolidação dos efeitos da política afirmativa no caso concreto". Não há um dado objetivo, vale dizer, de benefício da "estratégia": por exemplo, o conteúdo das gravações realizadas pelos candidatos à vereança, que por ventura apontassem a candidata mulher como a líder que as razões de recurso indicam que ela seja - não sendo possível aceitar aqui, obviamente, a protocolar citação da frase" DULCE MARIA para vice-prefeita", ou termos semelhantes. 

O benefício a que alude a determinação da resolução há de ser demonstrado - e, nesse sentido, os precedentes trazidos pelos próprios recorrentes (do Tribunal Superior Eleitoral e também desta Corte) assim indicam.

Transcrevo, por esclarecedoras, as ementas:

ELEIÇÕES 2018. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DE CAMPANHA. DEPUTADA FEDERAL. DESAPROVAÇÃO COM DETERMINAÇÃO DE DEVOLUÇÃO DE VALORES AO ERÁRIO. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA ANUALIDADE ELEITORAL E AO ART. 105 DA LEI DAS ELEICOES. IMPROCEDÊNCIA. REPASSES DE RECURSOS PÚBLICOS DESTINADOS ÀS CANDIDATURAS FEMININAS À CANDIDATOS DO SEXO MASCULINO. BENEFÍCIO NÃO COMPROVADO. NECESSIDADE DE REEXAME DE FATOS E PROVAS PARA SE CONCLUIR DE FORMA DIVERSA. ÓBICE DO ENUNCIADO Nº 24 DO TSE. NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO INTERNO. 1. O disposto nos §§ 5º e 6º do art. 19 e §§ 6º e 7º do art. 21, ambos da Res.- TSE nº 23.553 /2017, cuja redação foi dada pela Res.-TSE 23.575/2018, não viola o art. 16 da CF e o art. 105 da Lei das Eleições, pois apenas regulamenta  o entendimento da Justiça Eleitoral sobre a decisão proferida pelo STF na ADI nº 5.617/DF, cuja aplicação independeria de normatização pelo TSE. 2. A regulamentação do TSE sobre a questão não acrescentou diretrizes que cerceiam ou impedem que as mulheres, para promover suas candidaturas, façam parcerias com candidatos do outro gênero; apenas traz efetividade ao entendimento do STF ao exigir o óbvio: que seja comprovado que os recursos públicos destinados às candidaturas femininas foram efetivamente utilizados para promovê-las. 3. Para se chegar a conclusão diversa da Corte regional – que assentou inexistir comprovação de que o repasse de recursos públicos, destinados às candidaturas femininas, a candidatos do sexo masculino, tenha trazido benefícios à candidatura da agravante –, demandaria o reexame de fatos e provas, o que não se admite em recurso especial, ante o óbice do Enunciado nº 24 da Súmula do TSE. 4. Alicerçada a decisão combatida em fundamentos idôneos, não merece ser provido o agravo interno, tendo em vista a ausência de argumentos hábeis a modificá-la. 5. Negado provimento ao agravo interno. Acordam os ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por unanimidade, em negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do relator. (Tribunal Superior Eleitoral. AgR-AI 060503440/RJ. Rel. Min. Og Fernandes, Acórdão 18/08/2020, DJe de 03/09/2020) (Grifei.)

 

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CANDIDATOS NÃO ELEITOS. PREFEITO E VICE-PREFEITO. DESAPROVAÇÃO. [...]. TRANSFERÊNCIA DE VALORES DO FUNDO ESPECIAL DE FINANCIAMENTO DE CAMPANHA (FEFC) PARA CANDIDATURAS MASCULINAS. ESTRATÉGIA POLÍTICA PARA FORTALECER CAMPANHA DE CANDIDATA. AFASTADO O APONTAMENTO DE APLICAÇÃO IRREGULAR DE RECURSOS DO FEFC. CUSTEIO DE PALESTRA MOTIVACIONAL COM VERBA DO FEFC. QUALIFICAÇÃO DOS CANDIDATOS PARA FINS PUBLICITÁRIOS. A FALHA REMANESCENTE NÃO COMPROMETE A REGULARIDADE DAS CONTAS. AFASTADA A CONDENAÇÃO DE PERDA DO DIREITO AO RECEBIMENTO DA QUOTA DO FUNDO PARTIDÁRIO. AFASTADO O DEVER DE DEVOLUÇÃO DE VALORES AO ERÁRIO. APROVAÇÃO COM RESSALVAS. PARCIAL PROVIMENTO [...] 3. Transferência de valores do FEFC para candidaturas masculinas, referentes ao custeio de serviços de advocacia e contabilidade, sem a identificação de benefício para a campanha da própria candidata. Entretanto, a prestadora assumiu despesas em comum com candidatos homens, denotando uma estratégia política voltada a fortalecer a sua própria campanha na medida em que lhe seria favorável o apoio político, caracterizando benefício à sua campanha. Ademais, a candidatura feminina não foi impelida a repassar o valor às candidaturas masculinas. Afastado o apontamento de aplicação irregular de recursos do FEFC, como também o dever de recolhimento do valor ao Tesouro Nacional, conforme o art. 79, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19. 4. Custeio de palestra motivacional com verba do FEFC. Serviço prestado em um contexto de elaboração de estratégia de campanha, estando relacionado com a promoção da candidatura, ou seja, consistindo em qualificação dos candidatos para fins publicitários. A despesa é passível de enquadramento na hipótese prevista no art. 35, inc. VII, da Resolução TSE n. 23.607/19 [...]. (Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. REl 060035951/RS. Rel. Des. Luís Alberto D’Azevedo Aurvalle, Acórdão de 10/05/2022, DJe de Data 11/05/2022)

 

Nota-se, portanto, a exigência de comprovação concreta do benefício da candidatura feminina (precedente do TSE) e existência de evento comum, coletivo, que a todos aproveita (precedente deste TRE/RS, palestra motivacional). 

Ora, o simples pagamento das gravações de candidatos a vereador, forma individualizada, não pode ser considerado "estratégico", na medida em que caracteriza situação típica da campanha individualizada - vale dizer, todo e qualquer candidato a realiza com vias à própria eleição. No ponto, este Tribunal tem entendimento no sentido de que tal espécie de gasto não comporta argumento de benefícios reflexos sob pena de que se torne mera legislação álibi, sem efetividade, pois um suposto "benefício coletivo" é de difícil aferição (Recurso Eleitoral 060033012/RS, Relator Des. JOSÉ VINICIUS ANDRADE JAPPUR, Acórdão de 27/10/2022, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico, data 31/10/2022).

Portanto, julgo não haver demonstração, nos presentes autos, a comprovação do meramente alegado benefício para a candidatura feminina – requisito legal para admitir pagamento com verba destinada a cota de gênero de despesa comum realizada com outros candidatos. A simples associação de imagens de candidaturas majoritárias e proporcionais não representa, por si só, um benefício, pois é fato comezinho a toda e qualquer candidatura e não encontra respaldo legal ou jurisprudencial.

3.2.2. Serviços advocatícios.

Quanto à despesa firmada com BRUNO BORCHHARDT MULLER / LISANDRO SANTOS MACHADO, tem-se como objeto a prestação de serviços advocatícios, oferecido aos candidatos constantes da grade que reproduzo:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No presente item, a fundamentação tecida no tópico anterior cabe com ainda mais intensa força. Sequer em hipótese pode ser aceito que verbas destinadas ao fomento da participação feminina em candidaturas sirvam ao pagamento de valores relativos à assessoria jurídica de candidatos homens, pois se trata de serviço de natureza absolutamente individual, do qual não poderia se beneficiar (repito, sequer hipoteticamente) a candidata doadora.

Com efeito, repito: o benefício à candidatura feminina doadora carece de demonstração por meio de dados objetivos, fatos concretos, e não meras alegações de cunho subjetivo.

Os prestadores sustentam, ainda, que eventual condenação da vice-prefeita implicaria desestímulo à vida política.

Sem razão. O desestímulo tem origem, na realidade, no uso desvirtuado da ação afirmativa, como observado no caso sob exame.

Relembro que a legislação de regência busca, com a implementação da cota de gênero, concretizar conquista legislativa destinada ao fortalecimento do direito de candidaturas femininas, e prevê medidas que inibam os repasses de tais verbas de modo dissimulado aos competidores de outro gênero. Não se trata de inibir, mas de efetivamente alcançar o escopo da norma.

Sublinho que o fato de a chapa majoritária, composta por uma mulher, restar eleita, não tem o condão de afastar a irregularidade. A legislação não prevê qualquer liame, nexo causal entre a ação afirmativa de participação e a efetiva eleição (que, bem se sabe, é composta por inúmeros elementos). 

3.2.3. Serviços Contábeis.

Conforme apontado na sentença, a candidata vice-prefeita empregou recursos recebidos a título de cota de gênero, em forma de doação de serviços contábeis para candidatura masculina, nestes termos:

Gize-se que serviços contábeis não tem a natureza de despesas comuns, de acordo com o disposto no art. 60, §6º, da resolução regente; tampouco pela sua natureza (tipo) podem assim ser categorizados.

Irregular, portanto, a aplicação dos valores que eram para serem destinados à candidatura feminina e foram repassados como doação de serviços para candidatos masculinos, sem nenhum benefício direto para a candidatura, ante a natureza técnica e especializada do serviço contratado, que não se amolda ao conceito de despesa comum, conforme consignado pelo §7º, art. 17, RTSE nº 23607/2019.

(...)

Assim, quanto à utilização de recursos FEFC, destinados ao financiamento de cota de gênero, no pagamento de serviços contábeis de candidaturas masculinas, resta configurada irregularidade no importe de R$ 9.757,00, acrescido de R$ 379,56 referente à quantia paga pelo valor excedente da Prestação de Contas do candidato a Vereador Sérgio Quoss (recebedor da doação), no total de R$ 10.136,56.

À exata semelhança dos serviços advocatícios, a assessoria contábil não carrega natureza de despesa comum, mas sim absolutamente individual, não acarretando qualquer benefício à doadora sequer em tese. Os candidatos homens - ou a agremiação - é que deveriam suportar os gastos de suas respectivas candidaturas. Qualquer dos outros participantes poderiam arcar com tais despesas, menos, por óbvio, valores oriundos da ação afirmativa em questão.

O gasto irregular, aqui, alcança R$ 10.136,56.

Conclusão. Item 3.2.

Nessa linha de raciocínio, as despesas no montante de R$ 18.716,56 (R$ R$ 4.730,00 + R$ 3.850,00 + R$ 10.136,56) são irregulares e o valor equivalente deve ser devolvido ao erário.

3.3. Utilização de verbas oriundas do FEFC para cobrir despesas em favor de candidaturas de partidos diferentes da agremiação dos prestadores.

A sentença entendeu irregular o repasse de verbas oriundas do FEFC recebidas pelo candidato a prefeito, para candidatos ao cargo de vereador filiados a partidos distintos daquele pelo qual o doador disputou o pleito, ainda que tenha formado coligação para o cargo majoritário, e fundamentou a decisão no julgado do e. TSE, Recurso Especial Eleitoral nº 060047407, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, publicado no DJE de 15.09.2022.

Com efeito, a legislação veda a doação da referida verba pública nas hipóteses enumeradas na norma:

Resolução TSE n. 23.607/19

Art. 17. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) será disponibilizado pelo Tesouro Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral e distribuído aos diretórios nacionais dos partidos políticos na forma disciplinada pelo Tribunal Superior Eleitoral (Lei nº 9.504/1997, art. 16-C, § 2º).

§ 1º Inexistindo candidatura própria do partido ou da federação por ele integrada ou em coligação na circunscrição, é vedado o repasse dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para outros partidos políticos ou candidaturas desses mesmos partidos. (Redação dada pela Resolução nº 23.731/2024)

§ 2º É vedado o repasse de recursos do FEFC, dentro ou fora da circunscrição, por partidos políticos ou candidatas ou candidatos:

I - não pertencentes à mesma federação ou coligação; e/ou (Redação dada pela Resolução nº 23.731/2024)

II - não federados ou coligados. (Redação dada pela Resolução nº 23.731/2024)

§ 2º-A A inobservância do disposto no § 2º deste artigo configura irregularidade grave e caracteriza o recebimento de recursos de fonte vedada. (Incluído pela Resolução nº 23.665/2021)

No presente tópico, as despesas irregulares alcançam o importe total de R$ 22.580,00 (vinte e dois mil quinhentos e oitenta reais) e, conforme redação da sentença, estão assim constituídas:

ID 125648210, referente à contratação de serviço de produção de áudio e vídeo para o rádio e TV, doado a candidatos da sigla MDB de Cachoeira do Sul, no valor de R$ 6.880,00;

ID 125648209, referente a contratação para prestação de serviço de áudio e vídeo para rádio e TV, doado para candidatos do PODEMOS, no valor de R$ 4.300,00; e

ID 125648186, referente a despesas com material impresso de vereadores (não identificados), no importe de R$ 11.400,00, referidas no comprovante fiscal de nº 2983. Cabendo salientar que, em sede de manifestação, os candidatos beneficiários não foram identificados; tendo sido feita remissão ao documento anexo 9 (ID 126537833), no qual há registros fotográficos de material de publicidade de candidatos do MDB, PODEMOS e PSDB.

Os recorrentes se opõem somente ao apontamento de R$ 11.400,00, ao argumento de que houve equívoco por parte da sentença em considerar material publicitário diverso do referido na Nota Fiscal nº 2983.

De fato, é possível verificar que as propagandas de ID 126537833 (ID 45881787 no PJE 2º grau), referidas na sentença, indicam tamanho diverso do material descrito no documento fiscal, mas necessário esclarecer que o próprio candidato, em momento anterior à sentença, apresentou tais panfletos com o intuito de esclarecer o gasto, oportunidade em que alegou se tratar de material de uso comum (ID 45881778).

Agora, em fase recursal, sustenta que o impresso constante do documento fiscal não configuraria despesa comum, mas, sim, gasto do próprio prestador através do qual aproveita a imagem daquelas candidaturas proporcionais, filiadas às agremiações que compõem a coligação.

Reporto-me à imagem do impresso (este sim condizente com a descrição da nota fiscal), que revela:

Como se verifica, em grande parte a publicidade é voltada à apresentação dos candidatos.

Assim sendo, publicidade realizada em favor de concorrentes da eleição proporcional pertencentes a agremiações distintas do partido dos candidatos à eleição majoritária, paga com recursos recebidos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC, constitui despesa irregular, conforme entendimento do e. TSE. Exemplificativamente:

ELEIÇÕES 2020. AGRAVO INTERNO EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PRESTAÇÃO DE CONTAS. CARGOS DE PREFEITO E VICE-PREFEITO. INVIABILIDADE DO RECURSO ESPECIAL. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO Nº 30 DA SÚMULA DO TSE. ARGUMENTOS INAPTOS PARA REFORMAR A DECISÃO IMPUGNADA. NEGADO PROVIMENTO AO AGRAVO INTERNO.

1. Na origem, o TRE/GO, por unanimidade, desaprovou as contas do ora agravante, candidato ao cargo de prefeito, e determinou o recolhimento ao Tesouro Nacional dos valores do FEFC repassados a candidatos ao cargo de vereador de partido distinto.

2. A decisão agravada negou seguimento ao agravo em recurso especial em razão da incidência do Enunciado nº 30 da Súmula do TSE.

3. No agravo interno, o agravante defende não incidir o enunciado sumular mencionado, ao argumento de que o recurso especial não foi fundamentado em dissídio jurisprudencial, mas, sim, em contrariedade expressa a disposição de lei.

4. A alegação de que o recurso especial foi interposto com fulcro no art. 276, I, a, do Código Eleitoral, não se aplicando, portanto, o Enunciado Sumular nº 30 do TSE em tal hipótese, não encontra amparo na jurisprudência deste Tribunal, segundo a qual o Verbete Sumular nº 30 do TSE é aplicável a ambas as hipóteses de cabimento do recurso especial. Precedente.

5. Conforme a jurisprudência o TSE, "[...] é irregular o repasse de recursos recebidos do FEFC por candidato a prefeito para candidatos a vereador filiados a partidos distintos daquele pelo qual o doador disputou o pleito, ainda que tenham formado coligação para o cargo majoritário" (AgR-REspEl nº 0600474-07/BA, rel. Min. Sergio Banhos, julgado em 8.9.2022, DJe de 15.9.2022). Incidência do Enunciado nº 30 da Súmula do TSE.6. As razões do agravo interno não infirmam de modo efetivo os fundamentos da decisão monocrática recorrida.7. Negado provimento ao agravo interno.

Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial Eleitoral nº060116265, Acórdão, Relator(a) Min. Raul Araújo Filho, Publicação: DJE – Diário de Justiça Eletrônico, 03/09/2024.

Portanto, julgo para confirmar os recolhimentos determinados na sentença recorrida, e reconhecer a irregularidade no montante de R$ 22.580,00 (R$ 6.880,00 + R$ 4.300,00 + R$ 11.400,00).

Conclusão.

Consideradas as irregularidades atinentes à aplicação de verbas do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC, já identificadas na sentença, impõe-se a manutenção do recolhimento ao Tesouro Nacional da quantia de 41.296,56 (R$ 18.716,56 + R$ 22.580,00).

Diante do exposto, VOTO para rejeitar a preliminar de nulidade e, no mérito, dar parcial provimento ao recurso, apenas para afastar o apontamento relativo à transferência de recursos privados, mantendo os demais termos da sentença, nos termos da fundamentação.