HCCrim - 0600255-80.2021.6.21.0000 - Voto Relator(a) - Sessão: 25/01/2022 às 14:30

 VOTO

Por ocasião do deferimento da liminar, assim me manifestei:

Inicialmente, importa dizer que a concessão de trancamento de ação penal ou de inquérito policial pela via do habeas corpus é medida de exceção, somente sendo cabível quando, de plano, sem revolvimento de fatos e provas, seja demonstrada a ausência de justa causa, tida pelo titular do direito de ação ou pela autoridade policial como delitiva (Código de Processo Penal, art. 648, I), isto é, quando restar evidenciada eventual ilegalidade ou abuso de poder.

O TSE sobre o tema assim se posiciona:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRANCAMENTO DE AÇÃO PENALDENÚNCIA. ARTS. 347 DO CE E 4º, h, DA LEI 4.898/1965. CRIME. DESOBEDIÊNCIA ELEITORAL. DOLO. AUSÊNCIA. CRIME. ABUSO DE AUTORIDADE. INEXISTÊNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. ESTRITO CUMPRIMENTO DO DEVER LEGAL. EXCLUDENTE DE ILICITUDE. 1. O
trancamento de ação penal por meio de habeas corpus é possível quando se puder constatar, de plano, que há imputação de fato atípico, inexistência de indício da autoria do delito ou, ainda, a extinção da punibilidade. Precedentes. 2. Na espécie, os recorrentes, reitor e vice-reitor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri, foram denunciados pela suposta prática do crime de desobediência eleitoral (art. 347 do Código Eleitoral), por terem denegado pedido de requisição de servidora feito pela Justiça Eleitoral. Entretanto, a denegação do pedido baseou-se em pareceres emitidos pelos órgãos de assessoramento da reitoria e por órgãos de cúpula da Administração Pública Federal, circunstância que afasta a ocorrência de dolo, elemento subjetivo do tipo do art. 347 do Código Eleitoral. 3. Os recorrentes foram denunciados, também, por crime de abuso de autoridade, previsto no art. 4º, h, da Lei 4.898/1965, tendo em vista a demissão da referida servidora por abandono de serviço. Contudo, descabe cogitar de abuso de autoridade e lesão à honra e ao patrimônio da servidora, pois a demissão foi aplicada após regular tramitação de processo administrativo disciplinar (PAD) e decorreu de estrito cumprimento do dever legal, causa excludente da ilicitude (art. 23, III, do Código Penal). 4. Recurso provido para trancar a ação penal. (TSE - RHC: 15665 MG, Relator: Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Data de Julgamento: 22.4.2014, Data de Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 98, Data 28.5.2014, Página 76-77.) (Grifo nosso)

 

O delito previsto no art. 347 do Código Eleitoral assim dispõe: “Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução.”

A caracterização do tipo penal previsto no art. 347 do Código Eleitoral exige o elemento objetivo (recusar o cumprimento ou opor embaraços nos termos do artigo em referência) como também, o elemento subjetivo (dolo).

Dito isso, a paciente deveria agir necessariamente com a vontade livre e consciente de recusar o cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraço à sua execução. Ocorre que, dos fatos narrados evidencia-se que Ana Cristina não agiu eivada de dolo, pois além de fundamentar por escrito a inviabilidade de cedência de servidor, também adotou a cautela de agendar reunião com o Juiz Eleitoral, a fim de explicar pessoalmente a situação, levando em mãos o plano de trabalho de cada servidor do campus universitário.

O elemento subjetivo do tipo em questão é o dolo genérico, ou seja, a vontade livre e consciente de recusar o cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução. Assim decidiu o Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, que:

Ação penal eleitoral – Desobediência – Descumprimento a determinações do Poder Judiciário eleitoral – Infringência ao art. 347 do Código Eleitoral.

1. O delito eleitoral contemplado no art. 347 do Código Eleitoral, não raro, se caracteriza pelo descumprimento doloso a determinações emanadas da Justiça Eleitoral, no exercício do seu poder de polícia.

2. Se não há prova concludente nos autos, de modo a caracterizar o elemento subjetivo, qual seja a vontade livre e preordenada de não obedecer, com plena consciência da ilicitude do ato, inconfigurado resulta o crime previsto pelo art. 347 do CE, porque o núcleo do tipo definido neste texto é a desobediência, que tem o sentido de não cumprir, faltar a obediência, não atender. O tipo subjetivo é o dolo. Inexistindo, leva-se à improcedência da acusação. Recurso provido.

(TRE- PR, RC 121, classe 3, União da Vitória, acórdão 19.075, rel. Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo, j. 23.08.1994, Paraná Eleitoral, vol. 20, p.49). (Grifo nosso)

Ademais, à caracterização do crime, é indispensável a existência de ordem, diligência ou instrução emanada de autoridade competente, o que significa dizer, o ato deve estar revestido dos requisitos de legalidade e validade.

A requisição de servidores públicos pela Justiça Eleitoral está prevista na Lei nº 6.999/82 e regulamentada na Resolução TSE nº 23.523/2017, que, em seu art. 5º, dispõe que:

Compete aos tribunais regionais eleitorais requisitar servidores lotados no âmbito de sua jurisdição para auxiliar os cartórios das zonas eleitorais, observada a correlação entre as atividades desenvolvidas pelo servidor no órgão de origem e aquelas a serem desenvolvidas no serviço eleitoral. (grifo nosso)

De modo que, sendo a requisição de servidores competência do TRE (e não do Juiz Eleitoral de Jaguarão), não há que se falar em ocorrência do crime elencado no art. 347 do CE, pois a ordem, a diligência e a instrução foi emanada por autoridade sem competência para o ato.

Registro, ainda, que somente se reconhece a ausência de justa causa para a ação penal quando, de pronto, sem a necessidade de exame valorativo do conjunto fático ou probatório, evidenciar-se a atipicidade do fato, a ausência de indícios a fundamentarem a acusação ou, ainda, a extinção da punibilidade.

Na mesma esteira é a jurisprudência do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, conforme se infere do julgado abaixo citado, em que foi relator o Juiz Fernando Maia da Cunha:

Habeas corpus – Desobediência – Art. 347 do Código Eleitoral – Ausência de ordem direta que afasta o tipo penal cujo elemento subjetivo é o dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de recusar o cumprimento de ordens ou instruções da Justiça Eleitoral – Jurisprudência do TSE e do TRE – Atipicidade de conduta e inexistência de justa causa para a instauração de inquérito policial ou ação penal – Possibilidade de concessão da ordem de habeas corpus se a verificação da atipicidade não envolve análise da prova – Ordem concedida para trancar o inquérito policial. (TRE-SP, HC 2.143, Campinas, rel. Juiz Fernando Antônio Maia da Cunha, j. 21.11.2002, v.u., DOE 28.11.2002, p.167).

O trancamento da ação penal somente é possível de ser decretado em sede de habeas corpus no caso de constrangimento ilegal evidente, incontroverso, indisfarçável, que se mostra de plano ao julgador, não se destinando à correção de controvérsias ou de situações que demandam para sua identificação aprofundado exame de fatos e provas. Nessa linha, trago precedente do Tribunal Superior Eleitoral:

AÇÃO PENAL. ELEIÇÕES 2014. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. PREFEITO À ÉPOCA DOS FATOS. PRERROGATIVA DE FORO. PROPAGANDA ELEITORAL NO DIA DA ELEIÇÃO. ART. 39 DA  LEI Nº 9.504/97. TRANCAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. INEXISTÊNCIA. ORDEM DENEGADA.

1. O trancamento de ação penal é providência excepcional, somente adotada nos casos em que demonstrada, de plano, a inexistência de justa causa para o seu prosseguimento, que se traduz na ausência de indícios mínimos de autoria e/ou materialidade delitiva, na atipicidade da conduta imputada ao investigado, ou, ainda, na ocorrência de causa extintiva da punibilidade. Precedentes do TSE e do STF.

2. Nenhuma dessas hipóteses está presente no caso em apreço, uma vez que a denúncia demonstra de forma circunstanciada a subsunção da conduta imputada ao paciente quanto ao ilícito previsto no art. 39, § 5º, III, da Lei nº 9.504/97, além da qualificação do acusado (autoria e materialidade), atendendo, portanto, aos requisitos previstos no art. 41 do Código de Processo Penal c.c. o art. 357, § 2º, do Código Eleitoral.

3. Na linha da jurisprudência desta Corte Superior, “evidenciada a presença de elementos mínimos que atestam a tipicidade da conduta, bem como indícios de autoria e materialidade, deve ter prosseguimento a ação penal” (AgR–REspe nº 287–35/MG, Rel. Min. Rosa Weber, DJe de 25.5.2018).

4. O exame da matéria relativa à ausência de dolo do paciente, no caso concreto, demandaria análise mais aprofundada do ainda insuficiente conjunto probatório, providência incabível na via estreita do habeas corpus. Precedente do TSE.

5. Ordem de habeas corpus denegada.

(Habeas Corpus nº 060085761, Acórdão, Relator(a) Min. Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário de justiça eletrônico, Tomo 221, Data 07/11/2018) (Grifo nosso)

Desta feita, se, após relatado o Inquérito Policial, o processo continua em trâmite perante a mesma Zona Eleitoral de Jaguarão, inclusive com o oferecimento de transação penal por parte do Ministério Público Eleitoral, resta caracterizada coação ilegal a ser sanada pela via do remédio heroico, nos exatos lindes do art. 648, I, do CPP

Assim, mister se faz o trancamento da ação, pois os elementos verificados até aqui demonstram constrangimento ilegal a ser sanado na presente via, em face da ausência de justa causa, consubstanciada em hipótese de atipicidade fulcro no art. 648, I, do Código de Processo Penal.

Ante o exposto, CONCEDO medida liminar para determinar o trancamento do Inquérito Policial até o julgamento do presente Habeas Corpus, com a cancelamento da audiência designada para o dia 24.11.2021 na 1ª Zona Eleitoral de Porto Alegre.

 

Na espécie, a impetração tem como cerne o tipo penal previsto no art. 347 do Código Eleitoral:

Art. 347. Recusar alguém cumprimento ou obediência a diligências, ordens ou instruções da Justiça Eleitoral ou opor embaraços à sua execução:

Pena - detenção de três meses a um ano e pagamento de 10 a 20 dias-multa.

 

Como muito bem observado pelo Ministério Público Eleitoral, são três condutas previstas no tipo, cujo núcleo é formado pelas elementares “recusar cumprimento”, “recusar obediência” e “opor embaraço”.

Além disso, o tipo previsto no art. 347 do Código Eleitoral exige, à sua caracterização, que a ordem, diligência ou instrução emane de autoridade competente, devendo o ato estar revestido dos requisitos de legalidade e validade.

No caso, a Promotoria Eleitoral, com base nos autos do Inquérito Policial n. 0027/2019-4-DPF/JGO/RS, ofereceu proposta de transação penal (ID 44872743, fl. 47) a Ana Cristina da Silva Rodrigues, por incursa no delito previsto no art. 347 do Código Eleitoral.

O magistrado, tendo em vista Ana Cristina não residir mais em Jaguarão/RS, determinou (ID 44872743, fl. 56) a expedição de carta precatória ao Juízo da 1ª Zona Eleitoral de Porto Alegre/RS, para oferecimento de proposta de transação penal e eventual fiscalização do cumprimento das condições da transação, em caso de aceitação da proposta.

Em resumo, consta do aludido procedimento que a paciente Ana Cristina da Silva Rodrigues, na condição de Diretora da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus Jaguarão/RS, teria deixado de atender à requisição de um servidor para compor o quadro mínimo de funcionários necessário para garantir o funcionamento de Cartório Eleitoral.

Como menciona a douta Procuradoria Eleitoral, a questão atinente à ausência de tipicidade, quer seja por ausência de dolo, quer seja por alegada impossibilidade de atendimento material da requisição, demandaria, a toda a evidência, exame aprofundado dos elementos fáticos e probatórios coligidos no apuratório, inviável em sede de habeas corpus. Ademais, os indícios de materialidade e autoria descritos no relatório apresentado pela Autoridade Policial (ID 44872743,fls. 29-32) autorizariam, em princípio, eventual instauração de ação penal, em cujos autos a tese defensiva seria oportunamente analisada, após regular instrução judicial, com as garantias do contraditório e da ampla defesa.

Contudo, a requisição de servidores públicos pela Justiça Eleitoral encontra-se prevista na Lei n. 6.999/82, atualmente regulamentada pela Resolução TSE n. 23.523/17, que, em seu art. 5º, dispõe ser competência dos Tribunais Regionais Eleitorais requisitar servidores lotados no âmbito de sua jurisdição para auxiliar os cartórios das zonas eleitorais.

O juiz eleitoral, por delegação, pode providenciar a obtenção dos dados cadastrais do servidor público, entretanto, a requisição deste compete ao Tribunal Regional Eleitoral.

De modo que, sendo a requisição de servidores competência do TRE (e não do Juiz Eleitoral de Jaguarão), não há que se falar em ocorrência do crime elencado no art. 347 do CE, pois a ordem foi emanada por autoridade sem competência para o ato.

Ante o exposto, VOTO no sentido de conceder a ordem para trancamento da ação penal, confirmando a liminar deferida.