REl - 0600485-10.2020.6.21.0081 - Voto Relator(a) - Sessão: 30/11/2021 às 14:00

 

VOTO

Inicialmente, afasto a preliminar de nulidade da sentença por cerceamento de defesa em razão do indeferimento da produção de prova oral e de busca e apreensão de documentos.

Os recorrentes afirmam que um dos fundamentos para a conclusão pela improcedência da ação foi a falta de provas da gravidade dos fatos e da sua caracterização como ilícitos eleitorais, mas que o pleito pela produção oral foi indeferido, assim como o pedido de busca e apreensão da relação de pacientes que foram atendidos no ano de 2020, com recursos do Consórcio Intermunicipal de Saúde, e da relação dos cidadãos que receberam vales-gás.

Observo que foram arroladas 5 testemunhas na inicial (ID 41000333) e 4 na contestação (ID 41006583), mas que os investigados, antecipadamente, impugnaram todas as pessoas arroladas pelos autores, informando, na contestação, que possuíam vínculo com os fatos e com os partidos interessados na causa (ID 41006583).

Embora a contradita de testemunhas seja realizada em audiência, nada impede que a parte interessada demonstre previamente que as testemunhas serão ouvidas na condição de meros informantes para que a outra parte seja instada a fundamentar a necessidade da prova para o julgamento da ação.

E sobre a produção de provas, bem se sabe que o magistrado pode indeferir aquela que entender inútil ou desnecessária para o deslinde da questão, conforme estabelece o art. 370 do CPC.

Intimados, os autores afirmaram que as testemunhas dos investigados também possuíam vínculos políticos, mas que se o juízo a quo “entendesse necessário (...) poderão ser arroladas – mediante intimações judiciais – outras pessoas”.

Nesse ato, referiram que o julgador poderia optar, à sua escolha, por ouvir de ofício “os cidadãos descritos no item supra que dão conta dos necessitados (em situação de vulnerabilidade social) que não estão inseridos nos programas sociais politiqueiros exercidos pelo Sr. Prefeito”. Requereram “Que o MM. Juízo, escolha quantas testemunhas desejar, aleatoriamente, com sugestão dos nomes destacados em vermelho, para esclarecer os fatos ora trazidos, que demonstram com clareza a compra de votos”. (ID 41006833).

Ocorre, conforme bem aponta a Procuradoria Regional Eleitoral, que “os investigantes não substituíram o rol de testemunhas, mas apenas conferiram ao juiz a faculdade de substituir as testemunhas arroladas por outras pessoas. Para tanto, assinalaram em vermelho, na réplica, diversas pessoas que poderiam ser arroladas pelo juízo. O número assinalado é bem maior do que o previsto na legislação, portanto, pressupunha-se uma escolha pelo magistrado”.

E diante da opção dada ao julgador no sentido de que ouvisse outras pessoas de ofício, acaso entendesse necessário, escolhendo testemunhas de modo genérico e aleatório, foi proferida decisão no sentido de que a oitiva e a busca e apreensão eram desnecessárias porque a prova documental era suficiente para a análise e julgamento da ação, uma vez que os fatos narrados eram incontroversos (ID 41008833):

Compulsando os autos, verifico a desnecessidade de designação de audiência para inquirição de testemunhas, posto que a prova documental produzida, com o acréscimo que abaixo se verá, bem como as alegações das partes são suficientes para o julgamento da demanda. Observo que os quatro fatos descritos na inicial são incontroversos, sendo que o cerne meritório se restringe à análise da tese defensiva elencada pela parte requerida para justificação da ocorrência (autorização legislativa para programas de governo e aplicação do Fundo de Amparo aos atingidos pela COVID).

Outrossim, pelos mesmo motivos, tenho como desnecessária a “busca e apreensão” dos documentos requeridos nos itens "b" e "c" da inicial, razão pela qual indefiro.

Destarte, como já mencionado, em complementação a prova documental produzida, determino a intimação do Ministério Público Eleitoral para que promova a juntada do expediente nº 00168000277/2020, no prazo de 3 dias, consoante exige o art. 411, da Consolidação Normativa Judicial Eleitoral (CNJE).

Com a juntada do expediente, nos termos do art. 412, da CNJE, dê-se vista as partes para alegações finais, no prazo de 2 dias.

Após, ao Ministério Público para parecer final.

 

Ainda que os recorrentes tenham se manifestado alegando que a prova era fundamental (ID 41009983), entendo que foi adequada a decisão pela manutenção do indeferimento, lançada nos seguintes termos (ID 41010183):

Compulsando os autos, verifico que a parte autora requer a reconsideração da decisão que indeferiu o pedido de prova testemunhal, ao passo que a parte ré requer a exclusão de fatos novos apresentados em réplica.

Pois bem.

De início, denoto que os fatos narrados na exordial - atinentes às doações de cobertor, à distribuição de vale-gás/cesta-básica, a locação de veículo e aos procedimentos odontológicos - restaram incontroversos, haja vista que a parte ré não os impugnou. Isso considerado, mostra-se desnecessária a produção de prova testemunhal para ratificar a sua ocorrência, até mesmo porque o que remanesce é a verificação de eventual justificativa legal para a prática dos aludidos atos descritos na exordial.

Ainda que assim não fosse, vale destacar que muito embora seja incontestável a realização de parcela das doações mencionadas na exordial ante a ausência de impugnação específica (o que, em contrapartida, não significa que derivaram de desvio de finalidade), as testemunhas arroladas pela parte postulante foram contraditadas pela parte adversa em razão de comprometimento por vínculos políticos e, aquela, por sua vez, limitou-se a requerer genericamente a sua substituição por pessoas a serem escolhidas aleatoriamente pelo Juízo - o que demonstra o descrédito e a prescindibilidade da aludida produção probatório da forma como foi postulada.

Desta feita, tenho por manter o indeferimento da prova testemunhal postulada por ambas as partes processuais.

Nas alegações finais, os investigantes silenciaram quanto ao indeferimento das buscas e apreensões, mas sustentaram a necessidade da prova testemunhal para comprovar a prática de desvio de finalidade e o caráter eleitoreiro nas entregas de bens e serviços, alegando que “sugeriram que, se o MM. Juízo assim entendesse, poderia ouvir, também, quaisquer das dezenas de pessoas citadas ao longo da ação”.

Apesar da irresignação, assiste razão ao magistrado ao manter os indeferimentos na sentença, com base nos seguintes fundamentos (ID 41010733):

Aduziu a parte postulante que o indeferimento do pedido de prova testemunhal consiste e cerceamento de defesa, eis que a dilação probatória se mostra imprescindível à demonstração dos fatos constitutivos de seu direito.

Nesse contexto, reitero que, em sendo incontroversos os quatro fatos descritos na exordial, remanesce a verificação de (im)procedência da tese defensiva suscitada pela parte ré, especificamente no que tange à motivação legal das doações efetuadas, de modo que o acervo probatório coligido aos autos se mostra suficiente à formação de minha convicção. Para mais, vale consignar que as testemunhas arroladas pela parte requerente, em sede de dilação probatória, foram contraditadas pela parte requerida e aquela, em contrapartida, se absteve a postular a substituição genérica da prova testemunhal por outras pessoas a serem escolhidas pelo Juízo, de forma a corroborar a prescindibilidade de acolhimento do pleito como foi postulado.

Ainda que assim não fosse, cumpre consignar que eventual existência de previsão legislativa para os fatos objeto da causa de pedir detém o condão de justificá-los, o que somente poderia ser modificado em caso de impugnação à validade da norma propriamente dito, hipótese que refoge à natureza da presente demanda.

Em sendo assim, o indeferimento do pedido de prova testemunhal vai ao encontro do que prevê o art. 369 do Código e Processo Civil (CPC), notadamente porque o pleito de dilação probatória não preenche o requisito normativo atinente à necessidade de influir eficazmente na convicção do juiz.

Nesse sentido, cito julgado:

AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2016. VEREADOR. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL (AIJE). ABUSO DE PODER ECONÔMICO. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ARTS. 22 DA LC 64/90 E 41–A DA LEI 9.504/97. PAGAMENTO EM TROCA DE VOTOS.[...] .PRELIMINARES. GRAVAÇÃO AMBIENTAL. LICITUDE. LISTISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO. DISPENSABILIDADE. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. REJEIÇÃO.[...] 7. Não há falar em cerceamento de defesa por se indeferir nova audiência para a oitiva de testemunha que apresentou atestado médico de 90 dias, a comprometer a celeridade processual. No ponto, o juiz tem poderes para indeferir provas inúteis e desnecessárias, sobretudo no caso dos autos, em que o sujeito iria depor como mero informante por constar da "malfadada lista" [...] (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 15782, Acórdão, Relator(a) Min. Luis Felipe Salomão, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 235, Data 16/11/2020, Página 0) (grifei)

Isso posto, rejeito a preliminar e passo à análise do mérito propriamente dito.

 

Considerando que cabe ao magistrado, motivadamente, indeferir a produção de provas que entenda desnecessária ou protelatória, o que se verifica nos autos é que o juízo a quo fundamentou as decisões que indeferiram os pleitos dos recorrentes, fundando-se na razoável conclusão pela desnecessidade da prova.

Assim a conclusão da sentença: “o indeferimento do pedido de prova testemunhal vai ao encontro do que prevê o art. 369 do Código de Processo Civil (CPC), notadamente porque o pleito de dilação probatória não preenche o requisito normativo atinente à necessidade de influir eficazmente na convicção do juiz”.

Ademais, o recurso sequer traz impugnação específica contra o indeferimento dos pedidos de busca e apreensão, violando nesse ponto o princípio da dialeticidade recursal.

E quanto ao indeferimento da prova oral, ao contrário do que pretendem os recorrentes, não se pode exigir que o magistrado arrole testemunhas de ofício, pois a oitiva de testemunhas do juízo é mera faculdade de cada julgador a ser exercida diante das peculiaridades do caso concreto.

Portanto, rejeito a preliminar de nulidade da sentença por cerceamento de defesa.

Por fim, merece acolhida a alegação dos recorridos, que conheço como matéria preliminar, no sentido de que após a contestação os autores inovaram os fatos delimitados na inicial.

A ação foi primeiramente ajuizada com base em 4 fatos: 1) distribuição de edredons, 2) distribuição de vales-gás, 3) distribuição de cestas básicas com utilização de veículo não oficial, e 4) excesso de consultas odontológicas.

Os investigados apresentaram defesa contra os fatos imputados, mas ao se manifestar sobre as provas juntadas à contestação os autores ofereceram réplica inovando a narrativa inicial.

Realmente, na réplica, os investigantes acrescentaram à causa de pedir três fatos novos (ID 4100683):

- “Com relação à empresa SERVSUL, que veio terceirizar serviços para a prefeitura municipal nas vésperas da eleição e contratou vários funcionários nos meses de outubro e novembro, a fim de angariar o seu apoio e de seus familiares”;

- “Além disso, registre-se que os réus não impugnaram o vídeo cujo link foi juntado na inicial, que atesta a distribuição de cestas básicas no comitê do MDB do Campo da Pedra, segundo o eleitor Luiz Molina Severoi”;

- “Aliás, o dentista, Sr. Rafael Ortiz da Silva, ofereceu R$550,00 reais para a cidadã Ana Paula Severo Guedes trocar a bandeira do DEM para o MDB, conforme ata notarial abaixo”.

Os recorridos manifestaram-se oportunamente, em tréplica, afirmando que era ilícito o acréscimo de fatos não narrados na inicial, mas na sentença o magistrado entendeu que, com base no princípio da correlação, dois dos fatos novos poderiam ser conhecidos, consistentes no uso de funcionários da empresa SERVSUL e na distribuição de cestas básicas a partir do comitê do MDB:

Por fim, e não obstante a vigência do princípio da correlação no processo eleitoral, destaco que os fatos novos trazidos em réplica pela parte postulante [atinentes à participação da empresa Servisul na prestação de serviços municipais e ao envolvimento de Jorge Saydeles, cuja análise foi postergada em sede de despacho saneador] são adjacentes à causa de pedir indicada na exordial e com ela se relacionam indiretamente, razão pela qual passo a analisá-los.

Desde já, adianto que não merecem acolhimento.

Digo isso porque a aludida empresa foi devidamente contratada para prestação de serviços terceirizados no Município, inexistindo comprovação de abusividade quanto à opção de voto de cada um de seus trabalhadores, bem como inexistindo abusividade no recebimento de eventuais doações de alimentos/edredons, eis que tão somente o fato de lá trabalharem não afasta possível hipossuficiência financeira/vulnerabilidade social a justificar a benesse.

Em sentido semelhante, quanto ao vídeo7 anexado aos autos [no qual um senhor chamado seu Luís relata que uma mulher descarregava os ranchos e que lhe negaram a entrega das doações], inexiste fundamento à sua caracterização isolada como ato comprobatório de ilícito eleitoral, porquanto, a todo instante, seu Luís é induzido pelo postulante a confirmar a identidade das pessoas que estavam efetuando as doações e a especificar o veículo utilizado para tanto.

Desta feita, considerando a análise supra [e, especialmente, a ausência de demonstração de gravidade dos fatos, eis que inexistente desvio da máquina pública do interesse social para o benefício exclusivo do candidato e aptidão em afetar a normalidade da eleição] e a demonstração de caso de calamidade pública a autorizar a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, resta configurada a incidência do princípio in dubio pro sufrágio e da excludente de ilícito eleitoral prevista no art. IV, art. 73 da LE.

 

Conforme sustentam os próprios recorrentes, a sentença efetivamente foi omissa quanto à acusação de oferta de dinheiro em troca de voto efetuada com base numa ata notarial reproduzida no bojo da réplica. Na ata, a eleitora Ana Paula Severo Guedes afirma ter sido oferecida pelo dentista Rafael Ortiz, contratado pelo Município de Dilermando de Aguiar, a quantia de R$ 550,00 (quinhentos e cinquenta reais) para que votasse no candidato José Claiton Sauzem Ilha.

Esse fato não foi objeto do julgamento e nem de embargos declaratórios, mas é certo que também se trata de inovação na causa de pedir, pois sequer foi mencionada na petição inicial a prática da captação ilícita de sufrágio descrita no art. 41-A da Lei das Eleições por parte do dentista Rafael Ortiz.

É preciso ter presente que a análise da tese de que houve compra de voto, exclusivamente por esta instância recursal, caracterizaria inegável supressão de instância.

Além disso, entendo, ao contrário do que concluiu o juízo a quo, que o conhecimento desses três fatos novos trazidos em réplica vai justamente de encontro ao princípio da correlação, congruência ou da adstrição, preceituado no Código de Processo Civil em seus arts. 141 e 492:

Art. 141. O juiz decidirá o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte.

(…)

Art. 492. É vedado ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.

Parágrafo único. A decisão deve ser certa, ainda que resolva relação jurídica condicional.

 

O caput do art. 22 da LC n. 64/90 é expresso ao estabelecer que na inicial o investigante deve relatar fatos e indicar provas, indícios e circunstâncias, para pedir a abertura de investigação judicial, procedimento não adotado quanto à alegação de que cestas básicas estariam sendo descarregadas no comitê do MDB, assim como as irregularidades pertinentes a contratações efetuadas pela empresa Serv Sul e no que se refere à suposta compra de votos realizadas pelo dentista que atuava na prefeitura.

Embora os recorrentes aleguem que um desses fatos novos, relativo à distribuição de cestas básicas no Comitê do MDB, estaria amparado em prova já acostada na petição inicial, a qual traz em seu bojo o link do site Youtube contendo um vídeo que trata do assunto (<youtu.be/ZOePh0a6z8k>), do exame da peça não se verifica, em nenhum momento, tal acusação contra os recorridos.

E não cabe aos investigados, em sede de Ação de Investigação Judicial Eleitoral, analisar as provas buscando fatos que amparem causa de pedir não expressa na petição inicial, ônus que compete aos autores, mormente diante do extenso volume de documentos juntados pelos investigantes.

O art. 329 do CPC determina que o autor poderá somente até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu (inc. I).

Após a defesa, a inovação apenas pode ser realizada com o consentimento do réu, e, no caso dos autos, houve expressa insurgência dos investigados quanto ao acréscimo de fatos levantado após a contestação.

A alegada utilização da empresa SERV SUL, prestadora de serviços terceirizados para o município, para contratar apoiadores de campanha em benefício dos recorridos, somente foi levantada em sede de réplica, após a contestação, assim como a narrativa de que o comitê estava sendo utilizado para distribuição de cestas básicas ou de que o dentista ofereceu dinheiro em troca de voto.

Portanto, acolho a alegação de que houve inovação na causa de pedir quando da réplica em face do acréscimo de três fatos que não constaram na petição inicial, os quais não serão conhecidos, nos termos da fundamentação.

No mérito, a ação busca a condenação dos recorridos por abuso de poder político e econômico e condutas vedadas.

Passo ao exame das razões de reforma quanto aos fatos narrados na inicial.

1. Distribuição de edredons

A sentença de improcedência refere que a distribuição de edredons e de cestas básicas à população foi realizada com base na Lei Municipal n. 564/11, pela Lei Municipal n. 875/20, e pela consequente criação do Fundo Municipal de amparo aos atingidos pela pandemia da covid-19.

O Decreto Executivo Municipal n. 23/20 declara calamidade pública no Município de Dilermando de Aguiar para fins de prevenção e de enfrentamento à pandemia causada pela covid-19 (ID 41006583), circunstância que permite a realização das doações nos termos do § 10 do art. 73 da Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(...)

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

Ao contrário do que entendem os recorrentes, a existência de calamidade pública e de estado de emergência afasta a necessidade de que a entrega de bens decorra de programa social em execução nos anos anteriores, dada a natureza imprevisível de tais intercorrências.

Além disso, a mera alegação de descumprimento formal dos procedimentos estabelecidos pela municipalidade para a realização das doações, representada na narrativa de que a distribuição ocorreu “sem qualquer critério” e que houve falha na elaboração de relatórios de avaliação técnica, não tem o condão de afastar a licitude das doações no pertinente ao aspecto eleitoral da conduta.

Entretanto, os recorrentes também apontaram que as doações infringiram os incs. II e IV do art. 73 da Lei n. 9.504/97, que vedam o uso de materiais ou serviços, custeados pelo poder público, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos respectivos órgãos, e proíbem o uso promocional em favor de candidatos, da distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados pelo poder público:

Art. 73. (…)

(...)

II - usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram;

(...)

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

 

O presente recurso reitera a narrativa exposta na petição inicial no sentido de que a recorrida Anamaria Lima de Lima, candidata eleita como vice-prefeita de Dilermando de Aguiar/RS, “ainda que não exercesse qualquer cargo na administração municipal, se utilizou de veículo próprio para fazer entrega de edredons para munícipes, devidamente acompanhada pela primeira-dama do Município de Dilermando de Aguiar, esposa do então candidato Claiton Sauzem Ilha”.

Os recorridos não negam o fato, limitando-se a alegar a ausência de ilicitude.

Ocorre que não há outra explicação plausível, além da promoção da futura candidatura, para justificar o motivo de a candidata, que não fazia parte da administração municipal, ter participado da entrega de bens realizada pela prefeitura, encontrando pessoalmente, ao que se tem prova, uma eleitora agraciada com a entrega do edredom, em plena pandemia.

A situação foi verificada por oficial de diligências da Promotoria de Justiça de São Pedro do Sul, em averiguação na residência de moradora Tercília Pereira Lima, que recebeu um edredom, tendo sido confirmado que Anamaria estava presente no ato de entrega ocorrido em 31.8.2020 (ID 41000733 e ID 41010133, p. 10):

INFORMAÇÃO

00866.000.277/2020-0001

Em 06 de outubro de 2020, compareci na casa da senhora Tercília Pereira Lima, rua dos Cedros, confirmou que recebeu um edredom da senhor Rosângela Deprá, primeira dama do Município de Dilermando de Aguiar, isso aconteceu no mês de agosto, disse que não pediu o edredom, e que a Rosângela não pediu votos, e nem falou sobre política, e no ato da entrega Rosângela deixou claro que o edredom era para o neto que tem necessidades especiais. Nesta mesma época em que recebeu o edredom, soube que Rosângela Deprá entregou em várias casas de pessoas carentes, disse que, no ato da entrega, a vice-prefeita, Anamaria, estava junto.

Nesta mesma data, compareci na casa da senhora Neli Teresinha Teixeira de Lima, rua Duque de Caxias, (no quebra molas), disse que recebeu um edredom da Raquel, pessoa esta que trabalhava na Secretaria de Assistência Social, a pessoa não pediu votos, nem falou sobre política, apenas lhe entregaram, disse que não pediu o edredom. Acredita que o pessoal da assistência social conheçam sua situação, pois frequentemente utiliza os serviços de saúde do município.

Era o que cabia informar.

 

Essa diligência consta de informação extraída dos autos da Notícia de Fato n. 00866.000.277/2020-00014, instaurada no âmbito da Promotoria de Justiça de São Pedro do Sul, para apurar a possível prática de captação ilícita de sufrágio pela candidata a vice-prefeita no Município de Dilermando de Aguiar pelo MDB, Anamaria Lima, e pela primeira dama Rosangela Deprá.

O oficial de diligências registrou que a Sra. Neli Terezinha Teixeira de Lima também recebeu a doação de um edredom diretamente da servidora Raquel, que trabalha na Secretaria de Assistência Social, não havendo referência à presença da investigada Anamaria nesse fato.

Nessas circunstâncias, tem-se a prova da participação da recorrida em apenas uma entrega de edredom.

Além disso, conforme refere a Procuradoria Regional Eleitoral, é preciso dirimir uma impropriedade contida na informação supra: “em agosto de 2020, ANAMARIA não ocupava o cargo de Vice-Prefeita, conforme constou na informação”.

O Parquet nesta instância realizou acurada análise da finalidade eleitoral da conduta em relação à recorrida Anamaria, apontando que desde julho a investigada era reconhecida pré-candidata da chapa majoritária do Prefeito Claitin Ilha, candidato à reeleição.

No dia 09.07.2020, mês imediatamente anterior à participação da candidata na entrega gratuita do edredom, o prefeito postou na sua página pessoal do Facebook a mensagem: “O Gabinete da 1ª Dama e a Sec Assistência Social, estão recebendo a sua doação de agasalhos. Foram recebidos da Sra. ANAMARIA LIMA de LIMA e amigos + de 50 edredons, que estarão sendo repassados a comunidade. Pretendemos atender + de 100 famílias, ajude-nos” (ID 41010383).

Com propriedade, a Procuradoria Regional Eleitoral refere que:

A simples leitura da mensagem supra revela que o Prefeito CLAITON ILHA fez questão de destacar apenas o nome de ANAMARIA como uma das doadoras de edredons na campanha do agasalho.

Em agosto, mês imediatamente seguinte à referida postagem, embora a doadora ANAMARIA não ocupasse qualquer cargo na gestão municipal, teve o privilégio de participar da entrega gratuita de edredom, juntamente com a esposa do Prefeito CLAITON ILHA, a qual personificava e representava o Gabinete da primeira-dama.

Em setembro, mês imediatamente seguinte ao ato da entrega do bem, ANAMARIA tornou-se candidata à Vice-Prefeita na chapa do Prefeito CLAITON ILHA e candidato à reeleição pela Coligação demandada JUNTOS NO CAMINHO CERTO, liderada pelo MDB.

De fato, assiste razão aos recorrentes ao afirmarem que tal circunstância demonstra claramente a utilização do ato para promoção da futura candidatura, visto que na época da entrega e comparecimento à residência a candidata Anamaria não exercia cargo ou mandato eletivo.

Os recorridos afirmam que a postagem de Facebook menciona a entrega dos cobertores por Anamaria e amigos (referindo-se às doações do Fundo Covid também), com o objetivo de motivar novas doações. Ocorre que Anamaria não era mera doadora, mas também uma pré-candidata na chapa do prefeito candidato à reeleição, e a promoção de seu nome no ato benemerente favorecia, de modo não isonômico, a candidatura da situação.

Por essa razão, era vedado o uso da distribuição gratuita de bens em favor da campanha dos recorridos, conforme prevê o inc. IV do art. 73 da Lei n. 9.504/97, cumprindo reproduzir a conclusão da Procuradoria Regional Eleitoral:

A promoção pessoal do nome de ANAMARIA LIMA, portanto, restou evidente tanto pela mensagem postada pelo Prefeito CLAITON ILHA quanto a permissão de acompanhar a primeira-dama na distribuição gratuita de edredom promovida justamente pela Prefeitura Municipal.

Saliente-se que o fato de não ter havido pedido de voto ou sido tratado de política quando da entrega da benesse não afasta o ilícito, pois a mera presença da pré-candidata já vincula a sua imagem ao bem que é entregue ao cidadão/eleitor, trazendo-lhe benefício indevido à futura candidatura. O mesmo se diga em relação à postagem feita na página do Prefeito.

Ademais, o único motivo para justificar a presença da investigada ANAMARIA em ato de distribuição gratuita de bem arrecadado em campanha oficial promovida pela Prefeitura Municipal, bem como de ser feita menção apenas ao seu nome na página do Prefeito, foi o de promover sua imagem pessoal perante à população, restando, assim, configurada a conduta vedada tipificada no inciso IV do art. 73 da LE.

Neste ponto, importante salientar que a condição de pré-candidata nãoimpede a incidência da conduta vedada desde que venha a ser registrada a candidatura, pois a conduta termina por beneficiar a futura candidata.

No entanto, a prova documental acostada comprova tão somente que ANAMARIA participou juntamente com a primeira-dama da entrega gratuita de um edredom na residência da Sra. Tercília Pereira Lima.

 

Os recorrentes referem que “nitidamente a doação de edredons realizada pela então candidata Anamaria Lima de Lima teve por intuito a obtenção de dividendos políticos, na medida em que a recorrida além de doar, realizou pessoalmente as entregas, acompanhada da primeira-dama, apresentando-se como candidata”.

Embora tenha sido demonstrada a distribuição de 97 edredons, o uso promocional em favor da candidatura foi comprovado tão somente quanto a uma eleitora, carecendo o feito de provas no sentido de que a recorrida tenha acompanhado outras entregas.

Dada a reduzida proporção da conduta em questão, não prospera a tese de que o fato possui gravidade o suficiente para justificar a cassação dos diplomas, medida desproporcional ao ilícito comprovado.

A lesão ao bem jurídico tutelado, que é a igualdade de oportunidades entre os candidatos e a legitimidade do pleito, foi demonstrada somente quanto a uma eleitora beneficiada, razão pela qual a conduta merece reprimenda com a pena de multa aos beneficiados com o ato ilícito.

Conforme entende o Parquet, a alegação de prática de abuso de poder deve ser rejeitada, pois “ainda que a diferença de votos entre a chapa vencedora e a chapa vencida tenha sido de apenas 215 votos, entendemos que a promoção em favor da candidata ANAMARIA, nessas circunstâncias, não teve, igualmente, o condão de afetar a normalidade e a legitimidade do pleito, o que afasta a configuração do ilícito, nos termos do art. 22, inc. IV, da LC n. 64/90.”

Com essas considerações, uma vez caracterizada a conduta vedada descrita no art. 73, inc. IV, da Lei n. 9.504/97, entendo que o recurso comporta provimento no ponto, a fim de que os candidatos recorridos José Claiton Sauzem Ilha e Anamaria Lima de Lima sejam condenados à pena de multa prevista no art. 73, §§ 4º e § 8º, da Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(...)

§ 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de cinco a cem mil UFIR.

(…)

§ 8º Aplicam-se as sanções do § 4º aos agentes públicos responsáveis pelas condutas vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem.

2. Distribuição de vale-gás

Os recorrentes afirmam que o convênio entre o Estado do Rio Grande do Sul foi firmado com a municipalidade em 7.8.2020 (ID 74992717), sendo que os recursos foram recebidos em 14.9.2020, mas que se aguardou a proximidade das eleições para a distribuição dos vales, que teve início em 3.11.2020, quase 60 (sessenta) dias após o ingresso dos valores na conta bancária específica.

A distribuição de vale-gás foi justificada pela vigência do Projeto Cuidado e Cidadania à pessoa idosa prioritária, criado em 08.06.2020, com fundamento na declaração da OMS de que a doença do coronavírus tem maior gravidade em pessoas idosas e do Estatuto do Idoso.

O Projeto prevê a distribuição de gêneros alimentícios e gás de cozinha a, no mínimo, 220 pessoas idosas, no intuito de prevenir, mitigar e/ou reduzir danos a que estão submetidas em face da pandemia, e foi aprovado mediante termo de convênio administrativo entre o Estado do Rio Grande do Sul e o Município de Dilermando de Aguiar.

Segundo a sentença, “Isso considerado, tendo em vista o amparo normativo a autorizar a distribuição de vale gás, bem como considerando o momento de encaminhamento do projeto à aprovação [consubstanciado no primeiro ápice de agravamento da pandemia], e a existência de requerimento de benefício eventual para esse fim, não resta demonstrada a prática de ilícito eleitoral/conduta vedada”.

Os recorrentes afirmam ser “inegável que a distribuição de vales-gás para a população idosa poucos dias antes da votação foi grave o suficiente para romper a normalidade e legitimidade da eleição em Dilermando de Aguiar”, pois era presumível um índice maior de abstenção entre pessoas idosas do que o verificado na eleição, o qual teria sido reduzido devido à doação de gás cozinha.

Contudo, conforme referido quanto à doação de edredons, não se verifica, no aspecto eleitoral, a presença de ilicitude nas doações, ainda que tenham sido realizadas em data próxima ao pleito, considerando que ocorreram na vigência do Decreto Executivo Municipal n. 23/20, que declara calamidade pública no Município de Dilermando de Aguiar para fins de prevenção e de enfrentamento à pandemia causada pela covid-19 (ID 41006583).

Tal circunstância caracteriza exceção que permite sejam realizadas as doações nos termos do § 10 do art. 73 da Lei n. 9.504/97. O fato de a doação de vale-gás ter sido destinada a pessoas idosas, de igual modo, não representa ilícito ou gravame a justificar a procedência do pedido condenatório nesse ponto, não partindo de presunção a tese de que o benefício aumentou o número de idosos votantes na eleição.

Ora, consta do convênio que ampara as doações a justificativa de que o benefício seria distribuído em razão do agravamento da pandemia (ID 41004533, p. 1-7), justamente para suprir o atendimento de necessidades básicas da população idosa, bem como a sua entrega em domicílio “no intuito de prevenir, mitigar e/ou reduzir danos a que estão submetidas as pessoas idosas, em especial, face à pandemia do COVID-19, de acordo com o Plano de Trabalho” (ID 41004483, p. 4 ).

O valor de R$ 28.000,00 (vinte e oito mil reais) a ser repassado pelo Estado para tal fim foi recebido pelo Município no dia 14.9.2020, em conta bancária específica, tendo sido apresentado pelos investigados a lista de dados dos beneficiários e a data do recebimento do vale-gás (ID 41004433), além dos requerimentos solicitando a doação e do parecer favorável da Assistente Social (ID 41004583).

Também quanto a esse fato é insuficiente, para a configuração da conduta como ilícito eleitoral, a alegação de que houve descumprimento formal dos procedimentos estabelecidos pela municipalidade para a realização das doações, consistente na falta de assinatura dos beneficiados em parte dos documentos, ou ausência de nomes de parte dos favorecidos, considerando que a doação em si não representa infração eleitoral.

Além disso, conforme observou a Procuradoria Regional Eleitoral, as doações não ocorreram após 60 dias do recebimento dos recursos financeiros, e sim 45 dias:

Se os recursos foram recebidos em 14.09, não é de todo desarrazoado o início da entrega do benefício 45 dias depois, considerando a necessidade de aquisição e análise social, com a emissão do parecer. Saliente-se que eventual atraso impediu que um número maior de beneficiários recebesse a benesse antes das eleições, o que não parece ser a conduta que se espera de quem pretende obter benefício eleitoral.

De fato, os recorridos demonstraram ter havido diversos requerimentos de vale-gás após as eleições, o que vai de encontro à alegação de que a doação teve o propósito de favorecer a ida às urnas das pessoas que possuem voto facultativo.

Portanto, as razões recursais não infirmam a conclusão de que não foi demonstrado o desvio de finalidade na conduta.

3. Distribuição de cestas básicas, com utilização de veículo não oficial

Os recorrentes afirmaram que houve a aquisição inédita de importe superior a R$ 40.000,00 da empresa MF Distribuidora para a compra de cestas básicas, as quais foram distribuídas por veículo particular alugado para esse fim exclusivo.

Sustentam que, durante os meses de julho até novembro de 2020, o prefeito se utilizou da estrutura da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social para promover a sua candidatura, mediante a distribuição de cestas básicas.

A decisão recorrida entendeu que a distribuição de cestas básicas foi realizada com base na Lei Municipal n. 564/11, pela Lei Municipal n. 875/20, e pela consequente criação do fundo municipal de amparo aos atingidos pela pandemia do covid-19.

O magistrado concluiu, quanto à utilização de veículo não oficial para a entrega das cestas básicas, “que a parte ré logrou êxito em demonstrar que a locação do automóvel, em detrimento do automóvel então disponibilizando para tanto na Secretaria, deu-se em decorrência de impossibilidade de utilização do mesmo ante defeitos mecânicos.”

Apesar de os recorridos terem alegado que houve utilização da pandemia para justificar a distribuição das cestas básicas nas proximidades do dia da votação, não restou demonstrada a prática de abuso de poder ou conduta vedada que ampare a procedência do pedido condenatório.

A doação do benefício estava amparada no Decreto Executivo Municipal n. 23/20 que declara calamidade pública no Município de Dilermando de Aguiar em razão da pandemia, exceção expressamente prevista no § 10 do art. 73 da Lei n. 9.504/97 para a distribuição gratuita de bens.

Diante da legalidade das doações, não caracteriza infração o fato de ter havido aumento de doações com a proximidade das eleições.

Embora os recorrentes aleguem não ter sido apresentado nenhum relatório de estudo social capaz de comprovar a hipossuficiência/vulnerabilidade das pessoas que receberam cestas básicas, a sentença é clara ao narrar a desnecessidade da previsão do procedimento na legislação que embasa as doações:

Nessa senda, consoante já observado, reitero que tanto a Lei Municipal nº 564/20115 quanto a Lei Municipal nº 875/20206, autorizaram a distribuição de auxílio-alimentação sem a previsão de relatórios comprobatórios de hipossuficiência financeira/vulnerabilidade para o recebimento das doações, dando azo à legalidade da conduta. Ademais, no que diz respeito à utilização de veículo não oficial para a entrega das cestas básicas, registro que a parte ré logrou êxito em demonstrar que a locação do automóvel, em detrimento do automóvel então disponibilizando para tanto na Secretaria, deu-se em decorrência de impossibilidade de utilização do mesmo ante defeitos mecânicos (fls. 1488/1499). Comprovando, assim, que no mesmo prazo de conserto do veículo oficial houve a locação de automóvel diverso a suprir a necessidade de uso do bem.

Tendo em vista o já analisado afastamento dos três primeiros fatos objeto da causa de pedir, vale ressaltar que a questão atinente à ausência de assinatura em determinados pareceres de benefícios assistenciais (fls. 1430, 1431, 1437, 1440/1446, 1448/1486) não denota o condão de, isoladamente [isso considerando que os três fatos já foram afastados ante a ausência de ilegalidade], configurar as condutas de distribuição de vale gás, edredons e cestas básicas como ilícitos eleitorais/condutas vedadas. Isso porque além de não denotar quantidade expressiva de casos diante da totalidade de pessoas agraciadas, os relatórios contam com a solicitação dos beneficiários e o parecer confirmativo da assistente social competente, de forma que, em contrapartida, a parte requerente não logrou êxito demonstrar que as pessoas vinculadas aos relatórios desprovidos de assinaturas não foram agraciadas com as doações ou não denotavam, à época da verificação, hipossuficiência a justificar a benesse.

 

Ademais, novamente aqui cumpre reiterar que não há configuração da conduta como ilícito eleitoral por mero descumprimento formal dos procedimentos estabelecidos pela municipalidade para a realização das doações.

Também é desarrazoada a alegação de que a utilização de veículo locado para a doação das cestas básicas demonstraria a prática de abuso de poder político por reforçar a tese de que houve um aumento desproporcional no volume das doações entre setembro de novembro de 2020, uma vez ter sido plenamente demonstrado que a locação ocorreu em decorrência de manutenção do veículo oficial da Secretaria de Assistência Social.

Não cabe, nesse ponto, realizar a análise requerida pelos recorrentes no sentido de que a locação foi irregular porque o automóvel encaminhado para revisão necessitava de troca de peças de rápida substituição, uma vez que o ato foi devidamente justificado e não representa, por si só, qualquer ilícito eleitoral.

Desse modo, não procede o pedido condenatório quanto a este fato.

4. Excesso de consultas odontológicas

O excesso de consultas odontológicas foi considerado lícito na sentença, a partir da demonstração do represamento de atendimentos decorrente da pandemia, determinado pelo Conselho Regional de Odontologia do Rio Grande do Sul em ofício circular.

A decisão também se ampara na Nota Técnica sobre atendimentos odontológicos divulgada pela Secretaria de Saúde do Governo do Rio Grande do Sul, na qual se recomendou a priorização de urgências e emergências durante o período inicial da pandemia, e no entendimento de que é verosímil a tese de que em momento posterior houve aumento da procura por atendimentos, conforme planilhas apresentadas.

Os recorrentes apontam que a prova documental demonstra que nos 03 (três) meses que antecederam ao pleito houve aumento de consultas odontológicas para favorecer a campanha dos recorridos, e que passadas as eleições o número de procedimentos e o gasto voltaram aos patamares normais.

Ocorre que, em se tratando do período de pandemia, não há como utilizar o gasto integral com atendimentos da área da saúde para justificar ilegalidade na realização de procedimentos odontológicos, visto que os valores apresentados nos autos se referem a diversos atendimentos, à totalidade.

Foi demonstrado que também foram suspensos outros atendimentos especializados, tais como de fonoaudiologia, psicologia e fisioterapia, os quais foram retomados no início de setembro, os quais devem ser igualmente contabilizados no aumento dos custos com a área da saúde, sendo compreensível o acréscimo de despesas decorrente da pandemia.

O recurso alega que a Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA n. 04/20, na qual se baseou a sentença, aconselhou que fossem priorizados os atendimentos de urgência e emergência, mas que os documentos apresentados demonstram que os procedimentos odontológicos realizados entre setembro e novembro de 2020 não são eram de urgência ou emergência, “a não ser que Dilermando de Aguiar tenha experimentado um surto de cáries durante os 3 (três) meses que antecederam o dia da votação.”

A Procuradoria Regional Eleitoral realizou minuciosa análise sobre os gastos com atendimentos de saúde praticados pelo município no ano da eleição e concluiu pela ausência de provas “de que a gestão municipal teve a intenção deliberada de aumentar os valores pagos ao Consórcio Intermunicipal de Saúde nos meses de setembro, outubro e novembro buscando obter vantagem eleitoral.”

Cumpre reproduzir o aquilatado exame de dados sobre os gastos odontológicos realizado pelo Parquet (ID 44829505):

Segundo o Relatório de Produção, o custo dos atendimentos realizados no mês de janeiro foi de R$ 55.590,83, com o desconto de R$ 3.601,47, o valor total foi de R$ 51.989,36 (ID 41004833, fl. 155 do PDF); em fevereiro, o valor total foi de R$ 55.572,34 (ID 41004933, fl. 155 do PDF); em março foi de R$51.223,92, com o desconto de R$ 140,50, o valor total foi de R$ 51.083,42 (ID41005033, fl. 126 do PDF).

No mês de janeiro, desconsiderando os exames de laboratório e de imagem, verifica-se que o custo com atendimentos especializados foi de: R$ 10.142,44 com fisioterapia (ID 41004833, fls. 1 - 15 do PDF), e R$ 27.552,57 com diversos procedimentos de odontologia e com algumas consultas de enfermagem, psiquiatria e fonoaudiologia (ID 41004833, fls. 21 - 88 do PDF).

Em janeiro de 2020, portanto, a soma do custo dos atendimentos especializados alcançou o montante de R$ 37.695,01, que representa 67,81 % do custo dos atendimentos realizados (R$ 55.590,83) sem o desconto de R$ 3.601,47 (ID 41004833 – fl. 155 do PDF).

Após ter sido declarado o estado de calamidade pública nacional, nono Estado do Rio Grande do Sul e no Município de Dilermando de Aguiar10, para fins de prevenção e de enfrentamento à epidemia causada pelo Covid-19, verifica-se uma diminuição significativa do número de atendimentos realizados, e, consequentemente, dos valores pagos ao Consórcio.

Com efeito, no mês de abril, o custo dos atendimentos foi de R$ 18.540,74, com o desconto de R$ 4.422,66, o valor total foi de R$ 14.118,08 (ID 41005083, fl. 34 do PDF); no mês de maio R$ 17.310,92, com o desconto de R$ 2.173,78, o valor total foi de R$ 15.137,14 (ID 41005183, fls. 33 e 34 do PDF); no mês de junho R$ 23.618,23, com o desconto de R$ 9.893,40, o valor total foi de R$ 13.724,84 (ID 41005283, fl. 40 do PDF).

Em abril de 2020, desconsiderando os exames de laboratório e de imagem, verifica-se que o custo com atendimentos especializados foi de: R$ 1.893,92 com fisioterapia (ID 41005083, fls. 1 – 4 do PDF), e R$ 12.907,58 com procedimentos de odontologia, consultas de enfermagem e clínico geral (ID 41005083, fls. 1 – 24 do PDF).

Em abril, portanto, a soma do custo com atendimentos especializados alcançou o montante de R$ 14.801,50, que representa 79,83% do custo dos atendimentos (R$ 18.989,36) sem o desconto de R$ 4.422,66 (ID 41005083 – fl. 34 do PDF).

Frise-se que as médias percentuais do custo dos atendimentos especializados do mês de janeiro (67,81%) e de abril (79,83%) são muito próximas da média de setembro (75,80%), mês a partir do qual se verificou uma maior flexibilização do retorno dos atendimentos especializados por parte dos órgãos oficiais de saúde.

Antes de examinar a média de setembro, vale ressaltar que os próprios recorrentes apresentaram, no corpo do recurso, uma tabela, na qual se verifica que, entre 7 de junho a 22 de outubro, o nível de restrição social era de bandeira laranja(risco médio); entre 23 de outubro a 28 de novembro era de bandeira amarela (risco baixo), e de 30 de novembro a dezembro de de 2020 bandeira vermelha (risco alto).

No mês de setembro, o Relatório de Produção atesta que o custo com atendimentos especializados foi de: R$ 1.345,68 com fisioterapia (ID 41005533 –fls. 1 – 3 do PDF), R$ 24.494,37 com diversas consultas de enfermagem, clínico geral, procedimentos odontológicos e alguns atendimentos de fonoaudiologia (ID41005533 – fls. 6 – 45 do PDF), e R$ 13.934,25 com procedimentos exclusivamente de odontologia (ID 41005533 – fls. 74 – 99 do PDF).

Em setembro, portanto, a soma do custo com atendimentos especializados alcançou o montante de R$ 39.774,20, que representa 75,80% do custo dos atendimentos (R$ 52.473,24) sem o desconto de R$ 4.538,92 (ID 41005533 – fl. 99 do PDF).

Considerando o mês de fevereiro, em que se verificou o maior gasto despendido pela gestão municipal com o Consórcio Municipal de Saúde no ano de2020 (R$ 55.572,34), parece razoável inferir que a diminuição do número dos atendimentos, e, consequentemente, dos valores pagos em abril (R$ 14.118,08),maio (R$ 15.137,14) e junho (R$ 13.724,84) decorre dos efeitos causados pela pandemia e as medidas de proteção contra o risco de infecção adotadas por órgãos oficiais de saúde, como a suspensão e/ou restrição de consultas médicas individuais e odontológicas para os casos de urgência e emergência.

Por outro lado, a flexibilização das restrições impostas pelos órgãos de saúde, aliada à cor da bandeira laranja (7 de junho de 2020 a 22 de outubro) e bandeira amarela (23 de outubro a 28 de novembro), conforme a tabela apresentada pelos recorrentes, tem-se como razoável a retomada e o incremento dos atendimentos de saúde a partir de setembro, em especial de odontologia e fisioterapia, como se deu em janeiro, fevereiro e março de 2020.

A diminuição significativa do valor pago ao Consórcio no mês de dezembro (R$ 28.728,93) se comparado com o mês de novembro (R$ 47.842,35)decorre da restrição imposta pela bandeira vermelha (30 de novembro a dezembro de 2020), que provavelmente pode ter provocado receio na população local de procurar atendimento médico.

É dizer, não há elementos probatórios que comprovem que a gestão municipal teve a intenção deliberada de aumentar os valores pagos ao Consórcio Intermunicipal de Saúde nos meses de setembro, outubro e novembro buscando obter vantagem eleitoral.

 

Como se vê, apesar da insurgência dos recorrentes, as vicissitudes causadas pela pandemia do novo coronavírus justificam os atendimentos realizados, merecendo ser desprovido o recurso nesse ponto.

Além disso, não procede a alegação de que houve irregularidade na contratação de dentista, pois foi demonstrado que a profissional titular estava na faixa de risco ao coronavírus, o que acarretou a necessidade de substituição.

Por tudo que dos autos consta, acompanho a conclusão da Procuradoria Regional Eleitoral no sentido de que as razões recursais merecem provimento em parte em face da comprovação do uso promocional da distribuição gratuita de um edredom em favor da campanha dos recorridos.

Considerando que a conduta vedada foi praticada com apenas uma ação, entendo que a multa deve ser fixada no mínimo legal de R$ 5.320,50 para cada candidato, quantia que se afigura adequada, razoável e proporcional para reprimir o ilícito.

Por ser improcedente o pedido de condenação por abuso de poder, gênero do qual é espécie a conduta vedada ora reconhecida, a inelegibilidade, enquanto reflexo da condenação pela prática do disposto no art. 73, inc. IV, da Lei n. 9.504/97 (art. 1o, inc. I, al. “j”, LC n. 64/90), deverá ser analisada quando do julgamento de eventual pedido de registro de candidatura.

A cassação do diploma e a declaração da inelegibilidade são medidas extremas, e, segundo entendimento remansoso, “nem toda conduta vedada, nem todo abuso do poder político acarretam a automática cassação de registro ou de diploma, competindo à Justiça Eleitoral exercer um juízo de proporcionalidade entre a conduta praticada e a sanção a ser imposta” (TSE, REspe n. 336–45/SC, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe de 17.4.2015):

ELEIÇÕES 2016. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. REPRESENTAÇÃO. CONDUTA VEDADA. ART. 73, VII DA LEI ELEITORAL. CUMULATIVIDADE OBRIGATÓRIA DAS SANÇÕES DE MULTA E CASSAÇÃO. INEXISTÊNCIA. PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. APLICAÇÃO. DESPROVIMENTO. 1. Os §§ 4º e 5º do art. 73 da Lei Eleitoral não trazem de forma obrigatória e taxativa a cumulatividade das sanções de multa e cassação, devendo ser analisadas as peculiaridades do caso concreto à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 2.  No caso, embora tenha havido aumento desproporcional dos gastos com propaganda institucional, inexistem nos autos provas da má–fé do gestor ou da transformação da publicidade governamental em eleitoral.  3. Negado provimento aos Recursos Especiais Eleitorais do Ministério Público Eleitoral, da Coligação Mudança com Segurança, de Lucimar Sacre de Campos e de José Aderson Hazana. Agravo regimental julgado prejudicado. 

(TSE, RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 37130, Acórdão, Relator(a) Min. Edson Fachin, Relator(a) designado(a) Min. Alexandre de Moraes, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 235, Data 16/11/2020)

 

Com essas razões, entendo que a sentença merece ser parcialmente reformada, dando-se parcial provimento ao recurso interposto para condenar os recorridos ao pagamento de multa individual de R$ 5.320,50 (cinco mil trezentos e vinte reais e cinquenta centavos).

ANTE O EXPOSTO, rejeito a preliminar de nulidade por cerceamento de defesa, conheço como preliminar e acolho a alegação de que após a contestação os autores inovaram os fatos delimitados na inicial, os quais não comportam conhecimento, e, no mérito, VOTO pelo provimento parcial do recurso interposto, para condenar os recorridos JOSÉ CLAITON SAUZEM ILHA e ANAMARIA LIMA DE LIMA ao pagamento de multa individual de R$ 5.320,50 (cinco mil trezentos e vinte reais e cinquenta centavos), pela prática da conduta vedada prevista no art. 73, inc. IV, da Lei n. 9.504/97.