REl - 0600040-47.2021.6.21.0019 - Voto Relator(a) - Sessão: 26/11/2021 às 14:00

VOTO

Eminentes Colegas.

Na linha do exposto pela Procuradoria Regional Eleitoral, entendo como tempestivo o recurso, sobretudo ante a ausência de dados precisos acerca da intimação do recorrente da decisão relativa aos embargos de declaração.

Saliento que os presentes autos eram originariamente físicos, tiveram seu trâmite suspenso devido à pandemia causada pela COVID-19 e foram digitalizados após findo tal impedimento de força maior, de maneira que não foi possível utilizar as ferramentas presentes no sistema do Processo Judicial Eletrônico.

Entendo que o conjunto de circunstâncias não pode prejudicar a análise do recurso, de modo que o apelo é de ser entendido como tempestivo, até mesmo para que não ocorra injustificável prejuízo à parte.

Ademais, estão presentes os demais requisitos típicos à espécie e, desse modo, o recurso merece conhecimento.

No caso dos autos, o Diretório Municipal do PSDB de Encruzilhada do Sul teve suas contas partidárias do exercício de 2018 desaprovadas, em razão do recebimento de valores de fontes vedadas, consistentes em doações realizadas por detentores de cargos demissíveis ad nutum, de chefia e de direção, no montante de R$ 1.368,00 (mil trezentos e sessenta e oito reais), acrescido de multa de 10% (dez por cento), bem como determinada a suspensão do recebimento de quotas oriundas do Fundo Partidário pelo prazo de 1 (um) ano.

Nomeadamente, houve (1) quatro contribuições de R$ 150,00, entre as datas de 01.02.2018 e 30.04.2018, de MARINA OTILIS ZERWES DE FREITAS, à época Diretora da Casa de Passagem da Prefeitura de Encruzilhada do Sul, e (2) seis contribuições de R$ 110,00 e uma contribuição de R$ 108,00, entre 01.02.2018 e 03.09.2018, de ODETE DOS SANTOS FREITAS SOARES, então Coordenadora do PIM da Prefeitura de Encruzilhada do Sul.

Destaco que a magistrada da origem excluiu do cômputo as contribuições de CRISTINA MESSIAS, R$ 328,00, que se encontrava filiada ao PSDB desde 10.07.2017, conforme certidão expedida no dia 11.11.2019 pelo Tribunal Superior Eleitoral, e entendeu como irregulares as contribuições acima indicadas porque Marina e Odete estavam com a situação “cancelado” no Sistema de Filiação Partidária, também conforme certidões expedidas pelo TSE, fls. 96 e 97 do processo digitalizado.

Ao tempo do exercício, assim dispunha a Lei n. 9.096/95:

Art. 31. É vedado ao partido receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive através de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...) V - pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, ressalvados os filiados a partido político. 

 

O comando foi regulamentado pelo Tribunal Superior Eleitoral na Resolução n. 23.546/17:

Art. 12. É vedado aos partidos políticos e às suas fundações receber, direta ou indiretamente, sob qualquer forma ou pretexto, doação, contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de:

(...) IV - autoridades públicas.

§ 1º Consideram-se autoridades públicas, para fins do inciso IV do caput, pessoas físicas que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, ou cargo ou emprego público temporário, ressalvados os filiados a partido político.

§ 2º As vedações previstas neste artigo atingem todos os órgãos partidários, inclusive suas fundações, observado o disposto no § 2º do art. 20.

§ 3º Entende-se por doação indireta, a que se refere o caput, aquela efetuada por pessoa interposta que se inclua nas hipóteses previstas nos incisos.

Portanto, na hipótese, é incontroverso que as doações foram oriundas de autoridades públicas, assentando-se a controvérsia na caracterização das doadoras na condição de filiadas ao partido político. Para afastar a irregularidade, o partido recorrente alega que MARINA OTILIS e ODETE FREITAS eram filiadas ao PSDB à época dos fatos, conforme demonstrariam as fichas de filiação trazidas aos autos.

Não procede.

O Tribunal Superior Eleitoral, a fim de dirimir conflitos relativos a essa questão específica, editou o enunciado da Súmula n. 20, com a seguinte redação:

A prova de filiação partidária daquele cujo nome não constou da lista de filiados de que trata o art. 19 da Lei nº 9.096/1995, pode ser realizada por outros elementos de convicção, salvo quando se tratar de documentos produzidos unilateralmente, destituídos de fé pública.

Na mesma linha é a jurisprudência desta Corte, no sentido de que o registro da filiação no banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral é que confere caráter público e formaliza a vinculação dos cidadãos aos partidos políticos (RE n. 16-71.2019.6.21.0073, Rel. Des. Eleitoral Gustavo Diefenthäler. Julgado em 21.9.2020, unânime), até mesmo porque a aceitação de documentos unilaterais geraria tratamento desigual entre as agremiações em detrimento daqueles partidos que agiram corretamente.

Este é, também, o posicionamento do e. Tribunal Superior Eleitoral:

AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. ELEIÇÕES 2020. VEREADOR. REGISTRO DE CANDIDATURA. CONDIÇÃO DE ELEGIBILIDADE. FILIAÇÃO PARTIDÁRIA. PROVA. DOCUMENTO UNILATERAL. INADMISSIBILIDADE. SÚMULA 20/TSE. NEGATIVA DE PROVIMENTO. 1. No decisum monocrático, manteve–se acórdão unânime do TRE/SE em que se indeferiu o registro de candidatura do agravante, não eleito ao cargo de vereador de Arauá/SE em 2020, por ausência de prova de filiação partidária antes dos seis meses que antecedem o pleito (art. 9º da Lei 9.504/97). 2. Nos termos da Súmula 20/TSE, "[a] prova de filiação partidária daquele cujo nome não constou da lista de filiados de que trata o art. 19 da Lei nº 9.096/1995, pode ser realizada por outros elementos de convicção, salvo quando se tratar de documentos produzidos unilateralmente, destituídos de fé pública". 3. No caso, conforme a moldura fática do aresto a quo, o candidato apresentou "relação interna do partido, ficha de filiação e declaração firmada pelo partido", documentos, contudo, insuficientes para comprovar o tempestivo ingresso nos quadros da grei. Precedentes. 4. De outra parte, concluir a respeito da regular filiação a partir de ata notarial, cuja transcrição exata não consta da moldura fática do acórdão regional, esbarra no óbice da Súmula 24/TSE, não sendo possível o reexame fático–probatório em sede extraordinária. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL n. 060019096, Relator Min. Luis Felipe Salomão, DJE 30.06.2021) (grifei)

Esse o caso dos autos, em que nenhum elemento com reconhecimento público ou comprovadamente produzido em data anterior ao ajuizamento da prestação de contas foi juntado aos autos. Não há credibilidade à tese de que as doadoras já estavam filiadas à agremiação no exercício de 2018, de modo que as contribuições recebidas de MARINA OTILIS e ODETE FREITAS configuram recursos oriundos de fontes vedadas.

 Ainda, o recorrente pleiteia a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, a qual prevê concessão de anistia:

Art. 55-D. Ficam anistiadas as devoluções, as cobranças ou as transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições feitas em anos anteriores por servidores públicos que exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. (Incluído pela Lei nº 13.831, de 2019)

Novamente, o argumento recursal não merece guarida. Este Tribunal, em sessão de julgamento de 19.8.2019, nos autos do processo RE 35-92, de relatoria do Des. Eleitoral Gerson Fischmann, entendeu inconstitucional a norma invocada. Confira-se a ementa do precedente:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO DE 2015. DESAPROVAÇÃO. MATÉRIA PRELIMINAR ACOLHIDA. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 55-D DA LEI N. 9.096/95, INCLUÍDO PELA LEI N. 13.831/19. MÉRITO. RECEBIMENTO DE RECURSOS DE ORIGEM NÃO IDENTIFICADA E DE FONTE VEDADA. PORCENTAGEM REPRESENTATIVA DAS IRREGULARIDADES DIANTE DA TOTALIDADE DOS RECURSOS ARRECADADOS NO PERÍODO. AFASTADA A APLICAÇÃO DOS POSTULADOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. MANUTENÇÃO DO JUÍZO DE DESAPROVAÇÃO. REDUZIDO O PERÍODO DE SUSPENSÃO DO FUNDO PARTIDÁRIO. AFASTADA A CONDIÇÃO DE QUE A SANÇÃO SUBSISTA ATÉ QUE OS ESCLARECIMENTOS SEJAM ACEITOS PELA JUSTIÇA ELEITORAL. PROVIMENTO PARCIAL. 1. Incidente de inconstitucionalidade suscitado pelo Procurador Regional Eleitoral. 1.1. O art. 55-D da Lei n. 9.096/95, norma legal objeto do aludido incidente, incluído pela Lei n. 13.831/19, assinala a anistia das devoluções, cobranças ou transferências ao Tesouro Nacional que tenham como causa as doações ou contribuições efetuadas, em anos anteriores, por servidores públicos os quais exerçam função ou cargo público de livre nomeação e exoneração, desde que filiados a partido político. Ausência de notícia de que tenha havido oferecimento dos dados relativos à previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro quando da tramitação da proposta legislativa prevendo a renúncia da receita. Omissão que afronta a exigência constitucional incluída pela EC n. 95/16 no art. 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. A legislação infraconstitucional igualmente exige seja comprovado o impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União, nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18. 1.2. A anistia das verbas consideradas como oriundas de fontes vedadas - benefício instituído em causa própria e sem qualquer finalidade pública subjacente - atenta ao princípio da moralidade administrativa e desvirtua a natureza jurídica do instituto. 1.3. Vício de inconstitucionalidade formal e material. Acolhimento da preliminar. Afastada, no caso concreto, a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, incluído pela Lei n. 13.831/19. (...) 6. Parcial provimento.

(TRE-RS, RE n. 35-92, Rel. Des. Eleitoral Gerson Fischmann, julgado em 19.8.2019, DEJERS 23.8.2019.)

E, tendo o Plenário da Corte declarado a inconstitucionalidade, ante a ausência da indicação de outros elementos hábeis a justificar a revogação do precedente, sublinho que cabe aqui manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente (art. 926 do CPC), bem como observar a orientação do plenário do órgão (art. 927, inc. V, do CPC).

A necessidade de estabilização das decisões, em especial daquelas que examinam a validade de normas, também é imperativa segundo a doutrina:

Assim, uma vez decidida a questão constitucional no Tribunal, as Câmaras ou Turmas não mais podem submeter a arguição de inconstitucionalidade ao Plenário ou ao Órgão Especial. Até porque estes estão proibidos de voltar a tratar da questão constitucional sem que presentes os requisitos hábeis a justificar a revogação de precedentes, como a transformação dos valores sociais ou da concepção geral do direito ou, ainda, erro manifesto. Aliás, é improvável que a decisão do Tribunal, sem ter chegado à análise do STF, possa estar sujeita a tais condições. Advirta-se que a alteração da composição do órgão julgador não é suficiente para a revogação do precedente. Da mesma forma, os fundamentos que foram levantados quando do julgamento não podem simplesmente voltar a ser discutidos. O rejulgamento é viável apenas quando se tem consciência de que a manutenção do precedente constitui a eternização de um erro ou de uma injustiça, seja porque há equívoco grosseiro na decisão, seja porque a evolução da sociedade e do direito está a mostrar que a decisão primitiva não mais pode prevalecer. (SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional – 6. ed. – São Paulo: Saraiva, 2017, edição eletrônica)

Assim, na hipótese dos autos, o referido artigo deve ser declarado inconstitucional pelos mesmos fundamentos traçados no RE 35-92, motivo pelo qual reproduzo as razões do e. relator naquele feito, às quais agrego expressamente como razões de decidir:

Além disso, a legislação infraconstitucional igualmente exige a devida comprovação do impacto orçamentário e financeiro à concessão de benefício que gere a diminuição de receita da União (art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal e arts. 114 e 116 da Lei n. 13.707/18). Assim, no ponto, o dispositivo legal em questão possui vício de inconstitucionalidade na origem.

(...)

O instituto da prestação de contas tem como escopo emprestar transparência à atividade partidária, identificar a origem e a destinação dos recursos utilizados nas disputas eleitorais, tudo com o propósito de evitar o aporte de dividendos ilícitos no processo eleitoral e evitar o abuso do poder econômico. Nessa medida, quando esses mesmos organismos que deveriam ser os protagonistas da democracia representativa, em uma verdadeira queda de braço com o Poder Executivo, instituem anistia de todas as verbas consideradas oriundas de fontes vedadas, forçoso reconhecer ofensa direta ao princípio da prestação de contas. Não só isso, sendo o benefício em causa própria e sem qualquer finalidade pública, para dizer o mínimo, há inequívoca violação ao princípio da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CF). A anistia igualmente coloca em situação não isonômica e em posição desfavorável aquelas agremiações partidárias que adimpliram suas obrigações com o recolhimento de importâncias glosadas pela Justiça Eleitoral quando do exame e fiscalização de suas contas.

(...)

Para além disso, subverte a natureza jurídica do instituto da Anistia, realizando uma aplicação retroativa da Lei n. 13.488/17, que autorizou as doações daqueles que exercem cargo ou função demissível ad nutum, desde que filiados.

(...)

Ressalto que esse entendimento é adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral: a legislação que regula a prestação de contas é aquela que vigorava na data em que apresentada a contabilidade, por força do princípio da anualidade eleitoral, da isonomia, do tempus regit actum, e das regras que disciplinam o conflito de leis no tempo (ED-ED-PC 96183/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJE de 18.3.2016). Portanto, como reação à interpretação dada pelos Tribunais, o legislador, por meio de expediente nada republicano, moral e ético, aprova regramento anistiando todas doações advindas de servidores demissíveis ad nutum filiados, atribuindo eficácia imediata nos processos de prestação de contas e de criação dos órgãos partidários em andamento, a partir de sua publicação, ainda que julgados (art. 3º da Lei n. 13.831/19).

(...)

Em resumo, o art. 55-D, inserido na Lei dos Partidos Políticos pela Lei n. 13.831/19, padece de vício de inconstitucionalidade formal e material, na medida em que deixou de ser apresentada estimativa de impacto orçamentário, violou os princípios da prestação de contas, da moralidade administrativa e da integridade legislativa.

 

Com essas considerações, afasto no caso concreto a aplicação do art. 55-D da Lei n. 9.096/95, por ausência de previsão de estimativa de impacto orçamentário e financeiro da renúncia de receita, desrespeito ao art. 113 do ADCT, inobservância do devido processo legislativo e violação ao art. 14 da Lei Complementar n. 101/2000 e aos arts. 69 e 163 da Constituição Federal, e descumprimento do princípio da anualidade ou anterioridade eleitoral, insculpido no art. 16 da Constituição Federal.

Ademais, tendo havido recebimento de recursos de fontes vedadas de R$ 1.368,00, equivalentes a 32,47% do total arrecadado, entendo por manter a desaprovação das contas, a determinação de recolhimento ao Tesouro Nacional e de suspensão de repasse de verbas do Fundo Partidário.

Por fim, entendo que o recurso merece provimento parcial no que diz respeito à dosimetria das sanções, para reduzir a multa ao equivalente a 7% do valor de R$ 1.368,00, ou seja, R$ 95,76, cerca da terça parte do patamar máximo da pena pecuniária prevista, 20%, pois esta também é a parcela que a irregularidade representou em relação ao total arrecadado, 32,47%; e entendo por reduzir a suspensão do recebimento de quotas do Fundo Partidário para o período de 4 (quatro) meses, pelo mesmo fundamento.

Diante do exposto, VOTO para dar parcial provimento do recurso, manter a desaprovação das contas, reduzir o percentual da multa para 7% (sete por cento) e para 4 (quatro) meses o prazo de suspensão de recebimento de recursos oriundos do Fundo Partidário.