REl - 0600525-47.2020.6.21.0095 - Voto Relator(a) - Sessão: 26/11/2021 às 14:00

VOTO

Eminentes Colegas.

O apelo ministerial é tempestivo nos termos do art. 258 do Código Eleitoral e, ademais, encontram-se presentes todos os pressupostos de admissibilidade, de forma que a irresignação merece conhecimento.

Mérito.

A presente AIJE por abuso de poder político cumulada com representação por condutas vedadas versa sobre práticas atribuídas a agentes públicos no período eleitoral do ano de 2020, e, conforme o Ministério Público Eleitoral, teriam ocorrido em benefício de candidatos da chapa majoritária que representava a continuidade da administração então em curso.

À época dos fatos, EDIOMAR BREZOLIN era Prefeito de Paim Filho e GILMAR DE CAMPOS ocupava o cargo de Vice-Prefeito, ao passo que ocupavam os cargos de secretárias municipais as recorridas BÁRBARA ZANDONÁ SMANGOGESKI (Secretária de Administração), EDIVÂNIA DOS SANTOS DA SILVA (Secretária de Saúde) e CLERES MARIA PIANA SCHELLE (Secretária de Assistência Social). Ainda, GILMAR DE CAMPOS era candidato ao cargo de Prefeito, em chapa na qual era acompanhado por JAQUELINA CLARA CONTE, então postulante ao cargo de Vice-Prefeito.

Os candidatos não lograram êxito na eleição.

A sentença hostilizada entendeu o contexto probatório insuficiente para a condenação, em fundamentação que pode ser resumida como segue:

Desde já, anoto que a presente representação não comporta prosperar, nos termos dos fundamentos a seguir.

A proibição expressa de serem distribuídos gratuitamente bens, valores ou benefícios pela Administração Pública no ano das eleições, salvo nos casos de calamidade pública, estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e em execução orçamentária no exercício anterior prevista no art. 73, §10, Lei n. 9.504/97, pretende coibir eventuais abusos de poder praticados pelos agentes políticos no exercício do seu munus público, uma vez que certas ações realizadas pela Administração em período eleitoral, no intuito de beneficiar desoneradamente terceiros, podem facilmente comprometer a imparcialidade e legitimidade do pleito, por serem comumente associadas à captação ilícita de sufrágio.

Observa-se que a proibição contida no art. 73, §10 da lei 9.504/1997 não possui caráter absoluto. O próprio dispositivo elenca, de forma taxativa, as situações em que a disposição gratuita de bens pela Administração é admitida em anos eleitorais, a saber: casos de calamidade pública, estados de emergência e quando for programa social, estabelecido em lei, e em execução orçamentária no ano anterior ao da eleição.

(...)

O REURB é um programa social, que visa entregar à comunidade direitos essenciais, e que, em razão disso, não pode ser suspenso pelo Poder Público, ainda que em ano eleitoral. A regularização fundiária urbana visa promover o reconhecimento de situação fática, relacionada à outorga de direito real aos ocupantes, ao passo que a referida vedação eleitoral cinge na disposição gratuita de bens e benefícios à terceiros pela Administração Pública.

No caso dos autos, o conjunto probatório não revelou indícios que imputem aos referidos representados a prática do ilícito eleitoral. Sob a ótica do § 10 do art. 73 da Lei das Eleições a conduta encontra respaldo nas exceções ali previstas, haja vista a existência de programas autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior através da Lei Municipal n. 2.315/2019 (ID 74833356).

Verifica-se, assim, que a Administração Municipal de Paim Filho conferiu legitimação de posse a diversas famílias para garantir-lhes estabilidade no exercício do direito a moradia, anteriormente exercida de maneira irregular, não se mostrando viável exercer um juízo de certeza quanto o intuito eleitoral da distribuição dos títulos.

(...)

DO ABUSO DO PODER POLÍTICO

A configuração do abuso de poder político ocorre quando há o manejo ilícito de recursos públicos decorrentes da titularidade de cargo público em prol de determinada candidatura, comprometendo, assim, a legitimidade e a normalidade da eleição.

(...)

Sob a ótica da conduta vedada, conclui-se que não incorreram os representados na prática do abuso do poder político. In casu, as entregas dos títulos ocorreram seguindo regularmente cronograma ou programação iniciada em exercícios anteriores, não havendo uso promocional irregular do programa em favor da candidatura dos representados GILMAR e JAQUELINA, uma vez que não houve realização de eventos de entrega dos títulos, com a participação dos candidatos.

 

O recurso do Ministério Público Eleitoral revisita o quadro probatório e elabora linha temporal dos atos oficiais e das publicações realizadas pelos representados no Facebook; destaca depoimentos colhidos pelo Juízo de origem e sustenta que a execução do REURB foi direcionada na busca de benefício eleitoral, pois geradora de gratidão de parte dos eleitores, a ser convertida em votos.

À análise.

Os fatos ligados à demanda remontam a 25.11.2019, quando o então Prefeito EDIOMAR autorizara a abertura de processo licitatório para a prestação dos serviços da regularização fundiária em três bairros do Município de Paim Filho, nomeadamente Estrela, Cohab e São Francisco, com homologação em 11.12.2019, data em que também ocorrera a edição da Lei Municipal n. 2.315/19, estabelecendo normas sobre o REURB.

Cerca de cinco meses depois, em 18.5.2020, o perfil oficial da Prefeitura no Facebook, “PM Paim Filho”, noticiou aos “titulares de domínio, confrontantes e terceiros eventualmente interessados” que núcleos urbanos informais estavam em processo de regularização fundiária para a emissão de matrículas e legalização das benfeitorias. Indicou a expedição dos Editais de Notificação n. 01/2020, 02/2020 e 03/2020 e advertiu que impugnações deviam ser apresentadas no prazo de 30 dias.

Em 28.5.2020, nova divulgação no perfil “PM Paim Filho” informara que o processo de REURB do Bairro Cohab foi protocolado junto ao Cartório de Registros Públicos, com a presença do Prefeito EDIOMAR e do Vice-Prefeito GILMAR, ressaltando que:

esses donos terão finalmente seus imóveis legalizados e as respectivas matrículas em mãos, o que os beneficiará imensamente possibilitando que participem de programas de habitação como para reformas de suas moradias. Além disso, tendo registrados os seus imóveis, cada dono terá a segurança de estar morando naquilo que legalmente é seu. “Isso é que vale a pena”, enfatizou o Prefeito. A Administração está trabalhando para que em breve mais cidadãos possam receber a matrícula de seus imóveis. Esse foi apenas o primeiro processo protocolado, ainda estão em fase de encaminhamento os processos referentes aos Bairros São Francisco e do Pôr do Sol. Serão aproximadamente 100 famílias que receberão seus títulos neste ano de 2020.

 

No dia 14.7.2020 houve a expedição de 25 matrículas de imóveis, situação objeto de postagem no Facebook em 17.7.2020 e, em 21.7.2020, a Prefeitura de Paim Filho informou o início do REURB no bairro Pôr do Sol, o qual abrangeria 46 lotes, sendo que “o do Bairro Cohab está finalizado e o do Bairro São Francisco ainda está em fase de encaminhamento”. O anúncio foi confirmado no mundo dos fatos, pois em 03.9.2020 foram expedidas 47 matrículas de imóveis.

A partir daí, o perfil da Prefeitura de Paim Filho não realizou postagens no Facebook, mas há publicações na mesma rede social indicando a participação do Prefeito EDIOMAR em 15.10.2020 em ato de entrega de matrículas no bairro Cohab (perfil pessoal de Eduarda Zandoná Brezolin), e a Secretária de Administração BÁRBARA ZANDONÁ SMANGOGESKI publicou em seu perfil pessoal, em 31.10.2020, a continuidade da entrega das matrículas em conjunto com a Secretária de Saúde EDIVÂNIA DOS SANTOS DA SILVA e a Secretária de Assistência Social CLERES MARIA PIANA SCHELLE, afirmando que no “decorrer dos dias estaremos entregando todas as matrículas aos moradores dos Bairros Cohab, Pôr do Sol, e Bairro São Francisco que já estão em fase final de execução”.

No concernente a outros meios de prova, foram ouvidas pessoas nas condições de testemunhas (Marlon Bibano Ribeiro, Izauro Marcelo dos Santos) e de informantes (Elton Luiz Dal Moro, Genes Jacinto Moterle Ribeiro, Jorge Luiz Piovesan, Leandro José Benetti).

Traçaram linha dos fatos semelhante à extraída da prova documental, narraram o comportamento dos recorridos na entrega das matrículas e teceram impressões acerca do impacto da implementação do REURB na disputa eleitoral.

Afastadas as subjetividades típicas da prova testemunhal, sobretudo em demandas eleitorais, destaco as informações trazidas por Marlon Bibano Ribeiro, Oficial do Ministério Público, de que mediante pesquisa no perfil pessoal de EDIOMAR identificou uma repostagem referente ao REURB; que em outra postagem houve menção de usuário aos termos “avante 15, vamos 15”, bem como que alguns conteúdos estavam disponíveis somente para amigos ou foram apagados. Finalmente, o servidor indicou não lembrar se havia realizado pesquisa no site oficial do Município.

Sublinho também o testemunho do eleitor Izauro Marcelo dos Santos, morador do bairro São Francisco, no sentido de que as escrituras daquela localidade ainda não haviam sido entregues na época da oitiva, de que não possui documento legal do seu lote e que seria grato a quem lhe proporcionasse a regularização.

Estabelecido o quadro fático-probatório, trago as diferenciações conceituais entre o abuso de poder político e a prática de condutas vedadas.

No campo normativo, o abuso de poder político está previsto no art. 22 da Lei Complementar 64/90:

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

 

Sob o ponto de vista doutrinário, ZILIO assevera que ao coibir o abuso de poder político a legislação visa a proteger a normalidade ou legitimidade do pleito mediante conceitos abertos cuja constatação há de ser suportada pelas nuances do caso concreto, ao passo que as condutas vedadas têm o escopo de proteger bem jurídico diverso, a igualdade entre os candidatos, em um rol fechado de tipos previstos na legislação. As condutas vedadas são espécies tipificadas de abuso de poder, de antemão consideradas pelo legislador como "tendentes" a ferir a igualdade de candidatos, em subsunção dos fatos aos "elementos normativos descritos na norma legal" (Direito Eleitoral, 7ª ed., 2020. JusPodivm, ps. 661, 705 e 706).

Como se extrai da lição do insigne tratadista, o legislador estabeleceu amplitudes diversas de subsunção, pois o abuso de poder comporta necessária análise de todo, ao passo que as condutas vedadas apenas exigem o enquadramento estrito da conduta no tipo descrito na norma.

E, como preconiza o inc. XVI do citado art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, para a configuração do ato abusivo não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas sim a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

Nesse sentido é a lição de José Jairo Gomes:

"É preciso que o abuso de poder seja hábil a comprometer a normalidade e a legitimidade das eleições, pois são esses os bens jurídicos tutelados pela ação em apreço. Deve ostentar, em suma, a aptidão ou potencialidade de lesar a higidez do processo eleitoral. Por isso mesmo, há mister que as circunstâncias do evento considerado sejam graves (LC n. 64/90, art. 22, XVI), o que não significa devam necessariamente alterar o resultado das eleições. Nessa perspectiva, ganha relevo a relação de causalidade entre o fato imputado e a falta de higidez, anormalidade ou desequilíbrio do pleito, impondo a presença de liame objetivo entre tais eventos. (Direito Eleitoral, 12ª ed. 2016, p. 663)." 

 

E Cavalcante Junior e Coêlho, fazendo referência a Canotilho, dizem que a gravidade das circunstâncias “bem se aproxima da definição de proporcionalidade e razoabilidade”, cabendo ao Judiciário a “verificação de adequação, necessidade e justa medida na aplicação da pena” (Cavalcante Junior, Ophir; Coêlho, Marcus Vinicius Furtado. Ficha limpa: a vitória da sociedade. Comentários à Lei Complementar 135/2010. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2010, p. 23. Disponível em: http://www.oab.org.br/pdf/FichaLimpa.pdf).

Transcrevo lição dos autores:

Não é possível a punição por fato insignificante, sem relevo, desprovido de repercussão social. Gravidade advém do adjetivo latim “gravis”, que significa pesado ou importante. As circunstâncias são os elementos que acompanham o fato, suas particularidades, incluindo as causas. Diz respeito a como o ato foi praticado. No direito penal, as circunstâncias podem constituir ou qualificar o crime, como também agravar a pena a ser aplicada. A reincidência e a prática do delito por uso do poder de autoridade são circunstâncias previstas no art. 61 do Código Penal. Tem a pena agravada, nos termos do art. 62 do CP, quem possui a função de direção, indução ou coação para a prática criminosa. Trata-se de normas do direito positivo que podem ser utilizadas como referência de interpretação por analogia, conhecida regra de integração da norma jurídica.

 

No que toca à proporcionalidade, alentado estudo de Humberto Ávila traz os seus possíveis significados daquilo que entende como um dever estatal, não conceitua a proporcionalidade como um princípio, mas sim como um “postulado normativo aplicativo” e, dentre as suas funções, indica a de proibição de excesso da lei e a de racionalidade da decisão judicial.

Sublinho:

É exatamente do modo de solução da colisão de princípios que se induz o dever de proporcionalidade. Quando ocorre uma colisão de princípios é preciso verificar qual deles possui maior peso diante das circunstâncias concretas. (...) No plano abstrato, não há uma ordem imóvel de primazia”, de forma que o dever de proporcionalidade deve ser definido como um “dever resultante de uma implicação lógica do caráter principal das normas”. (A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista Diálogo Jurídico. Ano I, Vol. I, n. 4, julho de 2001. Salvador).

 

Nesse norte, é via a aplicação da proporcionalidade que deve surgir a solução, sopesando-se as circunstâncias relativas ao quem, ao como, ao onde, ao quanto, ao quando, aos motivos que dão, ou retiram, gravidade aos fatos.

E aqui, entendo inviável a conclusão pela prática de abuso de poder, pois o contexto probatório não alcança o patamar semântico utilizado pela legislação de regência. Veja-se: “abuso de poder”, “gravidade das circunstâncias”, “normalidade e legitimidade do pleito”. Lembro que o sancionamento relativo às hipóteses de abuso se dá da forma “tudo ou nada”. Não há multa, como por exemplo nas hipóteses de condutas vedadas.

Na hipótese, entendo haver fatores que retiram a extrema gravidade das condutas dos recorridos. Indico nesse norte a promulgação da Lei Municipal n. 2.315 somente em 11.12.2019, obviamente com a participação, no processo legislativo, da Câmara de Vereadores de Paim Filho. Na mesma data é que houve, também, atos de consolidação de parte do Poder Executivo do programa REURB.

Ora, bem se sabe que a edição de qualquer lei é precedida de atos de negociação, de arranjo político entre os diversos interesses presentes em uma casa legislativa, e tal mecanismo não pode ser atribuído apenas ao Poder Executivo de Paim Filho. A edição da lei ao final do ano anterior às eleições, portanto, não é responsabilidade exclusiva dos recorridos e, ao que tudo indica, o Poder Executivo acompanhou a regulamentação legislativa local para colocar o programa em prática.

E igualmente retira gravidade das circunstâncias a baixa propagação dos atos de regularização fundiária, quer nas redes sociais, quer sob a forma presencial. As postagens no perfil social da Prefeitura de Paim Filho na rede social Facebook inegavelmente são poucas, tópicas. De fato, são reprováveis sobretudo relativamente ao período em que realizadas, ano eleitoral (e o ponto será analisado sob o ângulo das condutas vedadas), mas o conjunto de publicações não pode ser entendido como abuso de poder. Não houve exagero de propagação ou grande repercussão, ou ao menos não há prova nos autos de tal efeito, até mesmo porque a entrega de matrículas foi realizada “casa a casa”, como apontado pelo próprio Ministério Público Eleitoral. Não houve, por exemplo, um evento com reunião de grande número de cidadãos.

As testemunhas e informantes ouvidos igualmente não indicam desvios capazes de afetar a normalidade e a legitimidade do pleito. O servidor do Ministério Público Eleitoral confirma a baixa repercussão do programa de regularização fundiária nas redes sociais, ao indicar apenas um compartilhamento de postagem e um comentário com viés político no perfil pessoal do então Prefeito, e sequer lembrara se havia feito pesquisa no site oficial da Prefeitura Municipal, enquanto o eleitor ouvido indicou que ainda não havia recebido a matrícula de seu lote no bairro São Francisco, aduzindo que teria gratidão a quem lhe proporcionasse a regularização.

E é aqui que entendo também ausente a gravidade no que diz ao aspecto quantitativo da “gratidão” dos contemplados. Explico.

Ainda que efetivadas dezenas de regularizações no bairro Cohab, com a inegável gratidão dos cidadãos beneficiados, é certo que a espera da matrícula sem o recebimento poderia gerar efeito contrário em outras localidades e, como indicado pela testemunha Izauro Marcelo, os moradores do bairro São Francisco ainda aguardavam a regularização, o que faz ponderar sobre a verdadeira dimensão dos efeitos dos fatos.

Quanto à proximidade dos atos ao pleito destacada pelo Ministério Público Eleitoral, entendo pela posição preferencial que há de ser dada, no caso, à aplicação das regras relativas à prática vedada, eis que se trata de normas específicas.

E é aqui, nas condutas vedadas, que o recurso merece parcial provimento. Inicialmente, transcrevo os termos legais que julgo aplicáveis aos atos praticados por todos os recorridos, conforme os fatos já analisados:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

(...)

IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público;

(...)

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006)

 

Como visto, a presunção de desigualdade é trazida pela própria redação do caput do art. 73 da Lei n. 9.504/97, ao indicar serem proibidas as condutas tendentes a afetar a igualdade entre candidatos nos pleitos eleitorais. O termo "tendentes" indica, nesse sentido, a suficiência para a reprimenda da conduta, uma vez verificada a sua ocorrência e, nos dizeres de ZILIO, "o legislador presume que tais condutas, efetivamente, inclinam-se a desigualar os contendores" (p. 706, op. cit).

E, na hipótese, ainda que o programa social REURB tenha sido autorizado no ano anterior à eleição, não recebeu execução orçamentária em 2019, de modo que a legitimação de posses ocorrida apenas no ano eleitoral deve ser caracterizada, ao contrário do concluído pela sentença, como distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios, em fatos subsumíveis à norma do art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97 e irregularmente objeto de uso promocional para fins eleitorais, nos termos do art. 73, inc. IV da mesma lei, de maneira que se impõe o sancionamento previsto nos §§ 4º e 8º do art. 73 da Lei n. 9.504/97:

Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: 

(…)

§ 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de cinco a cem mil UFIR.

(…)

§ 8º Aplicam-se as sanções do § 4º aos agentes públicos responsáveis pelas condutas vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem."

E rejeito as alegações dos recorridos, trazidas em contrarrazões, pela não ocorrência de conduta vedada. Muito embora tenham traçado correta linha do tempo do ponto de vista da legislação, com a composição do programa do REURB pelos diplomas federais Lei n. 13.265/17 e Decreto n. 9.310/18, além da Lei Municipal de Paim Filho n. 2.315/19, é certo que a execução orçamentária do programa de regularização ocorreu somente no ano de 2020 naquele município, e é exatamente essa a situação que a legislação coíbe no art. 73, § 10, da Lei n. 9.504: que a gestão em curso prepare nos anos anteriores (do ponto de vista administrativo e legislativo) ações com impacto eleitoral para colocá-las em prática tão somente no ano da eleição. A legislação indica que a exceção deve contemplar “execução orçamentária em ano anterior”, situação não ocorrida na hipótese dos autos.

Ademais, o argumento de que o programa seguiu sendo posto em prática após as eleições igualmente não merece guarida, pois exatamente por tal motivo é que o comando legal incidente prevê que está vedada a prática “no ano em que se realizar eleição”, evitando que seja mascarada a prática da conduta vedada. Ressalto que recentemente este Tribunal julgou de forma unânime caso semelhante, o Recurso Eleitoral n. 0600954-81.2020.6.21.0008, de minha relatoria, do qual transcrevo o item da ementa que interessa ao ponto, por elucidativo:

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. AIJE. PREFEITO À ÉPOCA DO PLEITO E CANDIDATOS À CHAPA MAJORITÁRIA. ABUSO DE PODER. ART. 22 DA LC N. 64/90. CONDUTAS VEDADAS. ART. 73 DA LEI N. 9.504/97. IMPROCEDÊNCIA. PRELIMINAR DE LITISPENDÊNCIA. EXTINÇÃO PARCIAL DO FEITO. LITISPENDÊNCIA E JULGAMENTO CONJUNTO AFASTADOS. AUSENTE IDENTIDADE DE PARTES. ART. 96-B DA LEI N. 9.504/97. APLICABILIDADE FACULTATIVA. CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES TEMPORÁRIOS AUTORIZADA. ART. 73, INC. V, AL. “D”, DA LEI DAS ELEIÇÕES. PANDEMIA. COVID-19. NOMEAÇÃO DE SERVIDORES COMISSIONADOS PREVISTA EM LEI. ART. 73, INC. V, AL. “A”, DA LEI DAS ELEIÇÕES. DISTRIBUIÇÃO IRREGULAR DE TÍTULOS DE POSSE. PERMISSÕES DE USO DE BENS IMÓVEIS. PERÍODO VEDADO. ART. 73, § 10, DA LEI DAS ELEIÇÕES. UTILIZAÇÃO ILÍCITA DE VERBA PÚBLICA PARA DECORAÇÃO NATALINA NAS CORES DA COLIGAÇÃO DOS RECORRIDOS. ART. 73, INCS. I E II, DA LEI N. 9.504/97. CONDUTAS VEDADAS CONFIGURADAS. APLICAÇÃO DE MULTA INDIVIDUAL. PROVIMENTO PARCIAL.

(...)

5. Distribuição de títulos de legitimação de posse e de casas do artesão. Art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97. A sentença deixou de analisar a situação, ao fundamento de que os fatos ocorreram após o dia da eleição, motivo pelo qual não poderia haver a presunção de ocorrência de prejuízo à isonomia dos candidatos. Entretanto, a presunção de desigualdade é trazida pela própria redação do caput do art. 73 da Lei n. 9.504/97, ao indicar serem proibidas as condutas tendentes a afetar a igualdade entre candidatos nos pleitos eleitorais. O termo "tendentes" indica, nesse sentido, a suficiência para a reprimenda da conduta, uma vez verificada a sua ocorrência. Comprovadamente realizada no ano eleitoral de 2020, a cerimônia de legitimação de posses deve ser caracterizada como distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios, em fatos subsumíveis à norma do art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97. Ao utilizar a expressão "ano eleitoral", o legislador expressamente incluiu a distribuição gratuita realizada após o pleito, desde que ocorrente até o dia 31 de dezembro do ano em que realizadas as eleições. Igualmente incontroversa é a entrega, pela prefeitura, de 7 “casas de artesanato” no mês de agosto do ano do pleito. As permissões de uso das casas de artesão foram entregues diretamente pelo Poder Público Municipal, em desobediência ao art. 73, § 10, da Lei das Eleições.

Afasto igualmente as alegações dos representados no sentido de que a incidência do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana – IPTU retiraria a pecha de gratuidade do benefício, pois os ônus tributários que recaem sobre os bens doados não tornam a doação onerosa, obviamente, mas sim apenas advêm da propriedade tornada legal e legítima de forma gratuita.

Ainda em relação a tais tópicos, destaco as bem lançadas considerações contidas no parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, as quais adoto expressamente como razões de decidir:

O fato de a criação do programa REURB, no âmbito do município de Paim Filho, haver sido autorizada por lei, resultando na distribuição gratuita de títulos (matrículas) de propriedade, em ano de eleições, trata-se de questão incontroversa nos autos. No entanto, para que a conduta se enquadre na ressalva prevista no art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/97, a norma legal exige que tenha havido a execução orçamentária do programa social no exercício anterior ao do ano da eleição. Com efeito, a exceção prevista no § 10 do art. 73 da LE, quando refere a necessidade de execução orçamentária no ano anterior à eleição, objetiva evitar que, no ano eleitoral, haja solução de continuidade nos programas já em execução em anos anteriores.

Não caracteriza a execução de um programa social, a mera existência da legislação e a assinatura, no último mês do ano, de contrato com empresa para realização dos serviços que precedem a efetiva Regularização Fundiária Urbana – REURB. A execução do programa se dá efetivamente no momento em que ocorre a transferência da propriedade aos munícipes.

É incontroverso nos autos, que, in casu, nenhum título foi entregue no ano de 2019, mas apenas no ano eleitoral, e próximo da data do pleito, restando, portanto, desatendida exigência prevista na ressalva legal do § 10 do art. 73 da Lei 9.504/97, concernente à existência de execução orçamentária no exercício anterior ao do ano da eleição.

(...)

Por fim, cumpre observar que a gratuidade na concessão dos títulos de legitimidade fundiária urbana é igualmente certa, não merecendo prosperar o argumento suscitado pela defesa, no sentido de que aos beneficiários do aludido programa social caberia o ônus de arcarem com pagamento de IPTU. Os ônus tributários que recaem sobre bens doados não tornam a doação onerosa. O que interessa é que os beneficiários nada pagaram pela obtenção da propriedade do imóvel, o IPTU é a apenas o imposto que recai sobre o bem imóvel recebido de modo não oneroso.

 

E a proximidade da data das eleições, indicada pelo Ministério Público Eleitoral para configurar o abuso de poder, há de se prestar, em verdade, para a dosimetria das sanções, pois se no abuso de poder a gravidade é condição de constatação do ilícito, nas condutas vedadas tal elemento - gravidade - surge no momento sancionador (lembremos que as condutas vedadas se tratam de tipos restritos, descritos com minúcias no art. 73 da Lei n. 9.504/97), e entendo que a ausência de gravidade que afastou o abuso de poder político também impede a aplicação das mais severas penas na prática de conduta vedada, pois os fatos são os mesmos e porque o TSE historicamente se posiciona pela necessidade de que elementos concretos devem estar lastreados na prova dos autos (RESPE n. 01-48/MG, ac. de 26.11.2019). Ainda, a Corte Superior há muito sinaliza a necessidade da adoção do princípio da proporcionalidade como vetor para a gradação e a fixação das sanções nas condutas vedadas (AgRG-AI n. 11.488/PR, j. 22.10.2009). 

Em suma, muito embora a legislação imponha a responsabilização do agente público e dos candidatos beneficiários, as condutas vedadas sob exame não possuem o condão de tolher direitos políticos de caráter constitucional.  Essa a proporcionalidade, ao mesmo tempo evitando reprovável impunidade e conferindo caráter pedagógico à pena, em situação que certamente será de ciência do eleitorado de Paim Filho em eleições vindouras. 

Entendo, portanto, por aplicar pena de multa a todos os recorridos.

Retomo que foram realizadas condutas desobedientes ao art. 73, inc. IV, c/c o § 10, de parte de todos os representados então ocupantes de cargos públicos, ao participarem dos eventos de entrega de títulos de regularização de forma “casa a casa” e/ou ao divulgarem o programa e os acontecimentos na rede social Facebook, como realizado por BÁRBARA ZANDONÁ SMANGOGESKI, EDIVÂNIA DOS SANTOS DA SILVA e CLERES MARIA PIANA SCHELLE e GILMAR DE CAMPOS, com indiscutível maior responsabilidade do representado EDIOMAR BREZOLIN, Prefeito à época dos fatos, agente público sobre o qual recaía o comando municipal com o "poder-dever constitucional de fiscalizar todos os atos de seus subordinados, inclusive aqueles praticados por delegação de competência, motivo pelo qual se reconhece o seu prévio conhecimento na prática de conduta vedada" (AgR-RESpe n. 53-82/PB, DJe de 22.9.2017. Rel. Ministro Admar Gonzaga).

Acrescento, ainda, ser claro o prévio conhecimento dos então candidatos, verificável pela posição de agente público que ocupava GILMAR DE CAMPOS na administração do Município de Paim Filho (Vice-Prefeito) e, também, pela divulgação dos fatos em postagens pessoais nas redes sociais, circunstâncias que aliadas à estreita relação política entre os representados e ao notório apoio dado à campanha destes, atrai a responsabilização dos candidatos beneficiários GILMAR e JAQUELINA CLARA CONTE (AgR-AI n. 27.777/GO, ac. de 15.8.2019).

Também aqui é que os aspectos do tamanho do eleitorado municipal (cerca de 3.800 eleitores) e número de matrículas efetivamente distribuídas à época dos fatos (72, ao que indica a prova dos autos) é que pode se prestar como critério aferidor da sanção a ser aplicada, de modo que não vislumbro ser possível aplicar patamar mínimo legal a qualquer dos representados que participaram dos atos públicos de entrega de matrículas e as repercutiram nas redes sociais.

Dos recorridos, somente JAQUELINA CLARA CONTE não participou dos atos de conduta vedada, posicionando-se unicamente na condição de candidata beneficiária. Todos os demais cometeram, no seio da administração pública e por mais de uma oportunidade, ilicitudes cuja sanção pecuniária pode variar entre 5.000 a 100.000 UFIRs, conforme a legislação.

Assim, entendo pela aplicação da pena de multa nos seguintes termos, sempre de forma individualizada (Rp n. 119.878, rel. Min. Luís Roberto Barroso, ac. de 13.8.2020):

- JAQUELINA CLARA CONTE: multa de 5.000 UFIRs, convertidas para R$ 5.320,00, na condição de candidata beneficiária ao cargo de Vice-Prefeito;

- BÁRBARA ZANDONÁ SMANGOGESKI: multa de 10.000 UFIRs, convertidas para R$ 10.640,00, na condição de secretária municipal praticante de atos de conduta vedada;

- EDIVANIA DOS SANTOS DA SILVA: multa de 10.000 UFIRs, convertidas para R$ 10.640,00, na condição de secretária municipal praticante de atos de conduta vedada;

-  CLERES MARIA PIANA SCHELLE: multa de 10.000 UFIRs, convertidas para R$ 10.640,00, na de secretária municipal praticante de atos de conduta vedada;

- GILMAR DE CAMPOS: multa de 20.000 UFIRs, convertidas para R$ 21.280,00 na condição de Vice-Prefeito praticante de atos de conduta vedada e de candidato a Prefeito beneficiário;

- EDIOMAR BREZOLIN: multa de 25.000 UFIRs, convertidas para R$ 26.600,00, na condição de Prefeito praticante de atos de conduta vedada.

 

Diante do exposto, VOTO para dar parcial provimento ao recurso do Ministério Público Eleitoral, julgar parcialmente procedente a representação por conduta vedada e condenar, de modo individual, por desobediência ao art. 73, inc. IV, c/c § 10, da Lei n. 9.504/97:

- JAQUELINA CLARA CONTE: à multa de 5.000 UFIRs, convertidas para R$ 5.320,00, na condição de candidata beneficiária ao cargo de Vice-Prefeito;

- BÁRBARA ZANDONÁ SMANGOGESKI: à multa de 10.000 UFIRs, convertidas para R$ 10.640,00, na condição de secretária municipal praticante de atos de conduta vedada;

- EDIVANIA DOS SANTOS DA SILVA: à multa de 10.000 UFIRs, convertidas para R$ 10.640,00, na condição de secretária municipal praticante de atos de conduta vedada;

-  CLERES MARIA PIANA SCHELLE: à multa de 10.000 UFIRs, convertidas para R$ 10.640,00, na condição de secretária municipal praticante de atos de conduta vedada;

- GILMAR DE CAMPOS: à multa de 20.000 UFIRs, convertidas para R$ 21.280,00, na condição de Vice-Prefeito praticante de atos de conduta vedada e de candidato a Prefeito beneficiário;

- EDIOMAR BREZOLIN: à multa de 25.000 UFIRs, convertidas para R$ 26.600,00, na condição de Prefeito praticante de atos de conduta vedada.