REl - 0600532-56.2020.6.21.0057 - Voto Relator(a) - Sessão: 22/10/2021 às 14:00

VOTO

Inicialmente, acolho a preliminar arguida pela recorrida e indefiro o pedido de conhecimento do vídeo que acompanha o recurso, uma vez que a prova não foi submetida ao conhecimento do juízo a quo e não se enquadra na qualidade de novo documento, cuja juntada é permitida pelo art. 266 do Código Eleitoral, c/c o art. 435 do Código de Processo Civil.

O recorrente afirma que após a audiência de instrução teve acesso ao vídeo em questão, mas não justifica por qual razão o material não foi oportunamente juntado aos autos para apreciação do magistrado sentenciante.

Ora, segundo o art. 435 do CPC, novos documentos são aqueles “destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados ou para contrapô-los aos que foram produzidos nos autos” ou os “formados após a petição inicial ou a contestação, bem como os que se tornaram conhecidos, acessíveis ou disponíveis após esses atos”.

Todavia, observa-se que o vídeo não foi juntado em sede de alegações finais, fase que ocorreu após a realização da audiência de instrução, estando preclusa a oportunidade de juntada e de reabertura da instrução processual, uma vez que o processo foi sentenciado sem a análise da prova.

Assim, considerando que o documento era acessível à parte ao tempo do oferecimento das alegações finais, é inviável o conhecimento da documentação, na esteira do entendimento jurisprudencial consolidado sobre a matéria:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. SEGUNDA OPOSIÇÃO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. PARTIDO POLÍTICO. EXERCÍCIO FINANCEIRO 2016. ALEGADAS OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE NO ACÓRDÃO. PEDIDO DE EFEITOS INFRINGENTES. NOVA TESE DEFENSIVA ACOMPANHADA DE DOCUMENTOS. PRECLUSÃO. INTERRUPÇÃO DO PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO. ART. 275, § 5º, DO CÓDIGO ELEITORAL. INEXISTÊNCIA DOS VÍCIOS. REJEIÇÃO. (…) 3. Na hipótese dos autos, inaplicável a ratio legis veiculada pelo art. 266 do Código Eleitoral, invocada pelo recorrente, que mitiga os efeitos da preclusão ao autorizar a juntada de novos documentos em fase recursal. O dispositivo contempla o oferecimento de documentos novos, nos termos do art. 435 do CPC, ou seja, refere-se a documentos que se tornaram conhecidos ou disponíveis a partir da decisão recorrida, ou foram produzidos apenas posteriormente. Portanto, a hipótese legal não alcança documentos já existentes, disponíveis ao interessado desde outrora, visto que constantes de outro processo judicial nesta mesma Justiça, mas juntados tardiamente por desídia da parte. 4. Do pedido de interrupção do prazo para interposição de outros recursos. Trata-se de efeito legal previsto no art. 275, § 5º, do Código Eleitoral, bastando, para tanto, que os aclaratórios opostos sejam considerados tempestivos e resultem conhecidos pelo Tribunal, tal como na presente hipótese.5. De acordo com o art. 1.025 do CPC, consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante suscitou para fins de prequestionamento, caso o tribunal superior considere existentes erro, omissão, contradição ou obscuridade.6. Rejeição.

(TRE-RS - PC: 4872 PORTO ALEGRE - RS, Relator: DES. ELEITORAL SILVIO RONALDO SANTOS DE MORAES, Data de Julgamento: 23.07.2020, Data de Publicação: DJE - Diário de Justiça Eletrônico, Data 24.09.2020.) – Grifei.

 

Com essas considerações, não conheço do vídeo do ID 39751833, juntado com o recurso eleitoral, e acolho o pedido de desentranhamento.

No mérito, a ação foi ajuizada com base no § 9o do art. 14 da CF, art. 22, incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90 e no art. 41-A da Lei das Eleições, requerendo o autor a apuração de uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou dos meios de comunicação social e captação ilícita de sufrágio em benefício da recorrida.

Ressalto que nenhum desses dispositivos legais exige que os atos sejam praticados com expressa contrapartida do voto do eleitor:

Constituição Federal:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

(…)

§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)

 

Lei Complementar n. 64/90

Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:

(…)

XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;

(Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

(…)

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.

(Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

 

Na AIJE, a causa de pedir são os abusos genericamente previstos, praticados com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito. Parte-se do fato de que a interferência na igualdade entre os candidatos está inexoravelmente arraigada à prática abusiva, sendo desnecessário o pedido de votos porque a interferência no resultado do pleito é inevitável, previsível, certeira. Exige-se apenas a evidência de que os atos foram praticados com gravidade das circunstâncias.

No caso vertente, a ação foi julgada improcedente sob o fundamento de que os fatos têm diminuta gravidade e não se mostram suficientes para justificar a alteração do resultado das urnas e, também, devido à falta de demonstração do especial fim de agir consistente na intenção de obter votos de eleitores.

Com a inicial, o recorrente apresentou impressões de tela, extraídas do site Facebook, demonstrando postagens abertas ao público, realizadas no período eleitoral por Carla Maia (ID 39748233), que atuava como cabo eleitoral e hoje exerce o cargo de assessora parlamentar da Vereadora Márcia Fumagalli, e também postagens da página Amo Bicho Uruguaiana (ID 39748283, ID 39748333, ID 39748383), que foram compartilhadas por diversos usuários do Facebook.

A conduta, ao que parece, teve início com a página Amo Bicho Uruguaiana, que foi criada no Facebook em 29.9.2020, contendo como foto de perfil a imagem da candidata a vereadora Márcia Fumagalli, que figurava como administradora da página (ID 39748283, p. 5-7 e ID 39748333, p. 9):

 

 

Foi juntada aos autos a propaganda eleitoral da candidata, demonstrando que, em seu santinho/cola eleitoral, era informado que Marcia Fumagalli é Criadora e Voluntária do Movimento Amo Bicho Uruguaiana (ID 39748333, p. 1):

A partir de então, diversas postagens passaram a ser realizadas no Facebook em benefício da candidatura da recorrida, a maioria com o seu perfil pessoal marcado e com compartilhamento e engajamento por curtidas e comentários de diversos usuários de Facebook, divulgando os trabalhos da ONG ou Movimento Amo Bicho Uruguaiana e vinculando as atividades à candidata.

No dia 9.10.2020, a página Amo Bicho Uruguaiana divulgou vídeo com a propaganda eleitoral da recorrida, contendo sua imagem, partido pelo qual concorria, PSB, nome e número de urna, com postagem que referia “É Márcia Fumagalli – Em defesa da causa animal, porque toda vida importa. Vote 40.000” (ID 39748383, p. 1 e ID 39748283, p. 4):

Observa-se, nos prints de tela, que, quando se visualizava a página Amo Bicho Uruguaiana, o Facebook apresentava à esquerda, sob o título “Páginas Relacionadas”, também a página contendo o perfil da candidatura de Márcia no Fumagalli na rede social (ID 39748383, p. 1):

Após, nos dias 17 e 20 de outubro, Carla Maia, que foi nomeada assessora da recorrida na Câmara Municipal de Uruguaiana depois da vitória na eleição, veiculou postagens de Facebook, todas com marcação do perfil da recorrida Marcia Fumagalli, pedindo votos e divulgando mensagens associadas à proteção e à castração de animais com redução de 50% do preço.

A publicação de 17.10.2020 apresenta imagem divulgando dicas de cuidados aos animais e o seguinte texto: “Bora Fiscalizar Sabe, o Porque eu venho Pedir Apoio pra vocês a Minha Candidata Marcia Fumagalli, aí tá a Resposta nossa ONG Amo Bicho é séria, trabalhamos por Amor!! Peço o apoio de vocês no Dia 15 de Novembro, Votem em Marcia Fumagalli” (ID 39748233, p. 3):

Na postagem do dia 20.10.2020, Carla Maia afirma: “(…) Mas somente eu sei da Lealdade com os Animais, a Marcia Marcia Fumagalli tem nossa ONG Amo Bicho vem crescendo muito (….) precisamos de alguém que nos represente no dia 15 de Novembro”, e pede votos para a recorrida (ID 39748233, p. 4):

Na postagem do dia 22.10.2020, acompanhada de fotos de um cavalo, Carla Maia afirma que a ONG está sendo reconhecida fora do Estado, que foram realizadas 2 castrações e que “Temos atrás de tudo isso uma Guerreira que tá pronta para nos ajudar principalmente nas retiradas de animais de risco e maus tratos, Precisamos eleger Márcia Fumagalli pra vereadora. Precisamos de Autoridade dentro da Câmara dos Vereadores pros Projetos e Leis serem cumpridas (…)” (ID 39748233, p. 5):


              A partir da postagem do dia 27.10.2022, Carla Maia passa a anunciar o serviço de castração, afirmando, em postagem com a foto da candidata Marcia Fumagalli, o valor de R$ 70,00 e informando “A ONG paga 50%”. As postagens referem que “Foram mais de 600 Castrações Gratuitas” (ID39748233, p. 2) e que “A Gente paga 50% da castração, somos contra as injeções” (ID 39748233, p. 6, e ID 39748333, p. 7):

 

 

Também no dia 27.10.2020, Márcia divulgou postagem informando: “(…) todos sabem estamos na Finaleira Eleitoral e estou ajudando e apoiando Marcia Fumagalli nessa caminhada linda (….). Quero pedir o voo de confiança para minha candidata (…)” (ID 39748333, p. 4):

 

Na postagem do dia 9.11.2020, Carla Maia informa: “(…) A ONG Amo Bicho dá 50% e o proprietário paga apenas 70,00 reais!! Passa a anunciar o serviço de castração, afirmando que “A Gente paga 50% da castração, somos contra as injeções” (ID 39748233, p. 7). Na postagem do dia 12.11.2020, novamente é divulgado o serviço de castração (ID 39748233, p. 8):

 


Após, nas duas publicações realizadas no dia 13.11.2020, Carla Maia divulgou a propaganda eleitoral e a foto da recorrida, vinculando sua campanha ao trabalho realizado pela ONG Amo Bicho e pedindo votos (ID 39748233, p. 9-10):


 

A postagem acima foi a última ocorrida antes da eleição, respeitando a proibição de realização de propaganda eleitoral na véspera do pleito, e é a mais emblemática. Nela, Carla Maia afirma que a candidata Marcia Fumagalli é a pessoa que atua atrás dos serviços prestados pela ONG Amo Bicho, refere que a entidade faz castrações gratuitas ou por 50% do valor, arcando com o restante do custo, vincula os trabalhos à recorrida e pede votos na eleição.

Depois da eleição, foram divulgadas fotos e noticiada a contratação de Carla Maia e Emily de Sampaio como assessoras da recorrida junto à Câmara de Vereadores (ID 39748283, p. 1 e 9):

 

Acerca da prova oral, a testemunha Sheila Cristiane Dávila Ripol, embora tenha afirmado que desconhecia o oferecimento de castrações durante a campanha, o qual foi comprovado pelas postagens de Facebook antes mencionadas, referiu que a Amo Bicho “promovia uma trabalho voluntário, custeado por meio de carnê de pagamento e venda de camisetas, sendo que as participantes do movimento ajudavam as pessoas nas castrações”, e que ela, Carla, e a recorrida eram “conhecidas na cidade por conta desse tema”. Narrou, também, que as castrações eram realizadas na “clínica do Dr. Giovani”, o qual efetuava o procedimento “para a Amo Bicho pela metade do preço”, e que o trabalho “não se limitava em auxiliar as pessoas somente com castrações, mas também com outras questões relacionadas aos animais”.

O médico veterinário Giovane Antunes Delcastagné foi ouvido como testemunha e referiu ter prestado os serviços para a Amo Bicho, tendo sido pago sempre por Carla. Afirmou acreditar que o pagamento era procedente de arrecadação a partir de ações sociais e que a Amo Bicho arcava com metade do preço cobrado. Embora o veterinário tenha assegurado não ter visto o oferecimento de serviços de castração gratuitos ou com finalidade eleitoral, a declaração contraria a prova documental contida nos autos.

Carla Fabiana Cassales Maia foi ouvida na condição de informante e declarou que a página Amo Bicho foi criada, para ajudar nas castrações de animais, antes do período eleitoral. Narrou que a fotografia da candidata foi utilizada como foto de perfil sem autorização da recorrida e que as castrações não eram gratuitas porque as pessoas interessadas deveriam efetuar a venda de rifas para auxiliar nas despesas. Afirmou que Márcia Fumagalli nunca ajudou financeiramente nas castrações, as quais eram custeadas por meio de rifas, venda de camisetas e de doces.

Entretanto, consta dos autos a data de 29.9.2020 como dia da criação da página Amo Bicho Uruguaiana, e a candidata figurava como administradora, tendo inclusive noticiado a sua atuação no movimento na própria propaganda eleitoral, sendo inverossímil a tese de que não autorizou ou que desconhecia a divulgação de sua imagem no Facebook.

Ademais, as fotografias divulgadas no Facebook demonstram que Carla tinha próximo contato com a recorrida, trabalhava como cabo eleitoral de campanha e inclusive foi chamada para atuar como assessora parlamentar após a eleição.

Emily de Sampaio Araújo também foi ouvida como informante e relatou ter criado a página Amo Bicho Uruguaiana, confirmando a oferta de castrações com desconto. Disse que marcou a recorrida na página porque Marcia Fumagalli é uma das voluntárias, e admitiu ter trabalhado na campanha eleitoral. Apesar de a informante ter referido que durante o período de campanha a candidata não participou das ações da página, negando a existência de promessas eleitorais, o depoimento contradiz a própria prova coligida, pois a candidata estava marcada e vinculada nas postagens com sua imagem e pedidos de votos.

O eleitor Erivelton Fragoso da Costa foi ouvido como testemunha e pouco contribuiu com os fatos. Declarou que, em 21.06.2020, sua esposa entrou em contato com a Amo Bicho para promover a doação de filhotes de uma cadela de rua e que Márcia teria prometido auxiliar na doação, na castração e no fornecimento de vermífugos, e não pediu votos. Afirmou que desconhecia a oferta de descontos ou gratuidade nas castrações durante o período eleitoral.

Feitas essas considerações sobre a prova colhida, destaco que o fato de a recorrida ser uma militante da causa animal e explorar tal circunstância na campanha não caracteriza um ilícito eleitoral.

De fato, é altruísta a preocupação em ajudar os animais, mas essa atuação foi realizada com utilização de poder econômico e oferecimento de vantagem pecuniária vinculada às eleições, com o envolvimento da candidata por meio de foto, marcação de postagens, divulgação de propaganda eleitoral e pedidos de voto.

Pelo que se vê da propaganda de Facebook, houve concessão ou promessa de concessão de vantagens econômicas, com a ciência e a anuência da candidata, extraindo-se, não apenas do contexto dos fatos, mas do próprio texto literal das postagens, a finalidade, a intenção de conquista do eleitor com base na utilização ou interferência do poder econômico.

O interesse eleitoral e sua interferência na legitimidade do pleito sobressaem pulsantes, sendo a prova harmônica à tese recursal de que houve ilegítimo auferimento de proveito eleitoral com a vantagem fornecida aos eleitores, utilizada como verdadeira máquina eleitoral.

Impressiona a sofisticação do sistema criado: as pessoas eram atendidas por médico veterinário, tinham os animais cuidados, tudo com o envolvimento da ONG capitaneada pela candidata, a qual arcava, ou divulgava arcar, com metade dos gastos das castrações, pedindo votos para a sua candidatura.

Devemos ter presente que na seara política não há benefício desinteressado, todos são maximizadores de seus próprios interesses. Em época de campanha, toda a generosidade é revertida em votos. Desconhecer essa realidade é uma ingenuidade.

Segundo o TSE: “Presume-se o que normalmente ocorre, sendo excepcional a solidariedade no campo econômico, a filantropia” (RESPE 5146, Rel. desig. Min. Março Aurélio Mendes de Farias Mello, DJ - 20.04.2006, pág. 124).

Ressalto que não se verifica uso indevido dos meios de comunicação social, pois todos os candidatos tiverem acesso à rede social Facebook, ausente uma “exposição desproporcional” da candidata em detrimento dos demais, requisito necessário para a conformação do ilícito (TSE, REspe n. 76682, rel. Min. Thereza de Assis Moura, Ac de 3.2.2015; AgR-REspe n. 73014, rel. Min. João Otávio de Noronha, Ac de 2.12.2014) nas ações eleitorais.

Porém, e embora assista razão ao magistrado a quo e à Procuradoria Regional Eleitoral no sentido de que não foi comprovada a prática de captação ilícita de sufrágio (art. 41-A da Lei n. 9.504/97), por meio da negociação da castração e dos demais serviços em troca do voto de eleitor determinado, o especial fim de agir, consistente na oferta e entrega de benefícios e vantagens aos eleitores com finalidade eleitoral, está suficientemente demonstrado.

O interesse público da lisura eleitoral (art. 23 da LC n. 64/90) não é mitigado pela falta de comprovação de que a vantagem foi entregue em troca do voto, pois o pedido de voto e o vínculo do benefício com a candidata está claramente demonstrado.

Para manter a igualdade de oportunidades e a interferência abusiva do poder econômico, proibiu-se a distribuição de qualquer bem que possa ser pecuniariamente avaliado, que possa reverter em proveito, em vantagem econômica para o eleitor.

O abuso de poder econômico, na esfera eleitoral, ocorre quando o uso de parcela do poder financeiro é utilizada indevidamente, com o intuito de obter vantagem, ainda que indireta ou reflexa, na disputa do pleito.

Essa infração consiste no “(...) emprego de recursos produtivos (bens e serviços de empresas particulares, ou recursos próprios do candidato que seja mais abastado), fora da moldura para tanto traçada pelas regras de financiamento de campanha constante da Lei n. 9.504/97” (Decomain, Pedro Roberto. Elegibilidade e Inelegibilidades. São Paulo: Dialética, 2004, p. 197).

Portanto, ainda que os fatos não se amoldem ao ilícito previsto no art. 41-A da Lei n. 9.504/97, é inegável que as condutas noticiadas nos autos foram realizadas com a intenção de interferência na vontade do eleitor, na sua consciência, com a consequente quebra da isonomia entre os concorrentes ao pleito.

Não é imprescindível a prova de que a vantagem foi condicionada a pedido de votos para que o julgador verifique o desequilíbrio nos meios conducentes à obtenção da preferência do eleitorado, ou o desvio e o abuso de parcela de poder, seja econômico ou de autoridade, tendente a influenciar a vontade dos favorecidos com as benesses concedidas.

No momento do julgamento de AIJE, o olhar da Justiça Eleitoral deve estar voltado para os bens juridicamente tutelados pelo Direito Eleitoral, que objetivam proteger o interesse público na igualdade entre os candidatos, no exercício do voto livre e na legitimidade das eleições.

No caso em tela, foram oferecidas vantagens ao eleitorado de Uruguaiana de forma ampla, em uma campanha eleitoral realizada em meio à pandemia do novo coronavírus, focada quase que exclusivamente na internet, com expresso pedido de votos dos eleitores. Em pleno período de campanha, a página da Amo Bicho Uruguaiana propôs favorecer o eleitorado da recorrida, com nicho na área de proteção aos animais, vinculando o nome da candidata, sua pessoa, na concessão de vantagens econômicas a qualquer eleitor.

Veja-se que a propaganda eleitoral nas eleições de 2020 foi iniciada em 27.9.2020, e a página do Facebook do Movimento ou ONG Amo Bicho foi criada em 29.9.2020, com a foto da candidata, vinculando sua campanha a castrações gratuitas ou a baixo custo, além de outros benefícios a pessoas que protegem animais.

Há farta prova de que, durante a campanha para o pleito eleitoral de 2020, a candidata Marcia Fumagalli anunciou publicamente, em sua propaganda eleitoral, ser a criadora da ONG Movimento Amo Bicho Uruguaiana, entidade que divulgou durante a campanha, também de modo aberto ao público, a realização de castração de animais por metade do valor, ou de modo gratuito, pedindo votos para a sua campanha.

Com a vênia do entendimento contrário, considero ser impossível não ver como manifesta a motivação eleitoreira das postagens, o benefício financeiro, a anuência com a conduta e a gravidade das circunstâncias, de modo a macular a vitória obtida pela candidata nas urnas.

É bem verdade que Emily e Carla não admitiram a realização de castrações gratuitas, mas é inegável que a massiva propaganda divulgava exatamente esse benefício, sempre associando a ação à eleição da candidata, que era, como referem as postagens, a pessoa por trás da ONG. Na cola eleitoral, a candidata assume o papel de criadora deste Movimento ou, como referem, ONG de fato.

Mesmo que as assessoras Carla e Emily tenham afirmado que a recorrida estava afastada, os atos divulgados no Facebook indicam totalmente o contrário ao eleitor, tendo a candidata auferido manifesto benefício durante a campanha.

O conhecimento é evidente, pois o perfil da candidata era marcado nas postagens, a sua propaganda eleitoral fazia menção a essa atividade, e as pessoas que estavam atuando com este desiderato foram posteriormente contratadas como assessoras parlamentares.

A ciência inequívoca, ainda que na forma de anuência, está por demais demonstrada, mas é preciso ter presente que em recentes julgados o TSE tem ressaltado que o abuso de poder pode levar à cassação do diploma em face do mero proveito eleitoral, até mesmo sem prova da participação direta ou indireta do candidato, ou de seu conhecimento sobre os fatos, pois o bem jurídico tutelado é a legitimidade do pleito:

RECURSOS ESPECIAIS. ELEIÇÕES 2016. CANDIDATOS. PREFEITO. VICE–PREFEITO. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DO PODER POLÍTICO E ECONÔMICO. CONDUTA VEDADA A AGENTES PÚBLICOS. (…) 9. “Em sede de AIJE com fundamento em abuso de poder econômico, é imprescindível a demonstração: (i) da gravidade das condutas reputadas como ilegais, de modo a abalar a normalidade e a legitimidade das eleições; e (ii) do efetivo benefício ao candidato (embora não se exija a comprovação da participação direta ou indireta do candidato ou seu conhecimento)” (RO 1803–55/SC, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJE de 14/12/2018). (…) 18. Recursos especiais providos para restabelecer a sentença.

(TSE, RESPE n. 170594, Acórdão, Relator Min. Luis Felipe Salomão, DJE 03.03.2021.) - Grifei

 

ELEIÇÕES 2016. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA.SÍNTESE DO CASO (…) 7. No que tange à afirmação de que os candidatos tinham conhecimento e apoiaram o evento no qual foram distribuídas cervejas a populares, cumpre observar que, para a configuração do abuso do poder econômico, não se exige a anuência do candidato quanto à prática supostamente abusiva, mas, sim, os benefícios eleitorais por ele usufruídos (REspe 1–62, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJE de 2.2.2015) e cuja existência não foi suficientemente demonstrada na espécie, conforme constou no voto condutor do aresto embargado. (…) CONCLUSÃO Embargos de declaração rejeitados.

(TSE, Embargos de Declaração no RESPE n. 62624, Relator Min. Sergio Silveira Banhos, DJE 28.10.2020.) – Grifei

 

ELEIÇÕES 2012. AGRAVOS REGIMENTAIS. RECURSOS ESPECIAIS ELEITORAIS. AIJE. VEREADOR. ABUSO DO PODER ECONÔMICO E CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO COMPROVADOS. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS. DESPROVIMENTO.

(…) 10. Nos termos do art. 22, XIV, da LC n° 64/90, a condenação do candidato pela prática de abuso de poder prescinde da demonstração de sua responsabilidade ou anuência em relação à conduta abusiva, sendo suficiente a comprovação de que ele tenha auferido benefícios em razão da prática do ilícito. Precedente. (...)

(Agravo Regimental no RESPE n. 958, Acórdão, Relatora Min. Luciana Lóssio, DJE 02.12.2016.) - Grifei.

 

Quanto ao bem jurídico tutelado, do cenário posto nos autos, concluo que as ofertas de castrações, sejam gratuitas ou com baixo custo – que seria pago pela ONG criada por Marcia Fumagalli, com pedido de votos para sua eleição como vereadora, têm graves reflexos no tão caro equilíbrio na disputa, na paridade de armas, na salvaguarda da imparcialidade, na higidez do resultado do pleito e, também, na interferência na capacidade de escolha do eleitor.

Nas postagens retratadas nos autos, as vantagens financeiras estão demonstradas à saciedade, pois as cabos eleitorais da candidata pediram votos e ao mesmo tempo divulgaram que a ONG realizaria castração de animais de graça ou pela metade do valor. Logicamente, para manter a posição equânime entre os concorrentes ao pleito, os candidatos não podem oferecer ou fornecer esse tipo de vantagem, direta ou indiretamente.

Ainda que não seja necessário o pedido de votos para a procedência da Ação de Investigação Judicial Eleitoral, este foi realizado pelas pessoas que atuaram como cabos eleitorais da recorrida – e hoje figuram como suas assessoras.

Em uma eleição deve sair vitorioso o candidato mais preparado, e não aquele que obteve o sucesso concedendo bens e vantagens capazes de influenciar, de comprometer e, muitas vezes, de determinar o resultado da disputa, não importando se tenha realizado a ação diretamente ou por interpostas pessoas.

A recorrida foi eleita com 899 votos, ficando em 10o lugar nas 11 cadeiras existentes na Câmara de Uruguaiana, mas entendo que a votação não foi legítima nem respeitou a igualdade de oportunidade entre os candidatos.

Com esses fundamentos, entendo que os fatos narrados se amoldam à prática de abuso do poder econômico, estando devidamente caracterizadas a ciência e a participação da candidata, ainda que na forma de anuência, com o ilícito.

A gravidade sobressai presente porque a vantagem econômica foi ofertada como plataforma de campanha, sendo entendida pelos eleitores beneficiados e por quem tomava conhecimento das divulgações como um ato de benevolência com a causa animal, mas atrelado à eleição.

Não há dúvidas que o eleitor agraciado tem a consciência afetada, e as postagens deixavam expresso que o modo de demonstrar a gratidão era com o voto na candidata.

A matemática foi simples: castração oferecida com baixo valor ou custo gratuito e pedido de votos. O resultado foi garantido: sentimento de dívida criado no eleitor, como é natural dos seres humanos, e voto alcançado.

Provado está o abuso de poder econômico mediante deliberado oferecimento e fornecimento de vantagem que tinha um preço: R$ 70,00. É possível imaginar os elevados custos despendidos pela ONG da candidata com esses trabalhos. Há postagem mencionando a existência de 600 castrações gratuitas.

Concluo ser incontestável: a recorrida teve amplo conhecimento sobre a vantagem indevida em relação aos demais candidatos, por interferência do poder econômico.

O assistencialismo realizado durante o período de campanha eleitoral refoge aos fins democráticos do Estado de Direito, e a conduta tem elevado grau de reprovabilidade, sendo razoáveis e proporcionais aos ilícitos praticados as sanções de cassação de diploma e de declaração da inelegibilidade.

Concluo, portanto, que a candidata abusou do poder econômico de forma grave o suficiente para a reforma parcial da sentença, dando-se procedência em parte à ação quanto ao pedido de condenação por prática de abuso do poder econômico, sendo devida a imposição da pena personalíssima de inelegibilidade.

POR TUDO O QUE DOS AUTOS CONSTA, acolho a matéria preliminar e não conheço do vídeo do ID 39751833, o qual deve ser desentranhado dos autos. No mérito, VOTO pelo provimento parcial do recurso, para reformar a sentença em parte e reconhecer a incidência das penalidades previstas no inc. XIV do art. 22 da LC n. 64/90, julgando procedente a ação quanto à prática de abuso de poder econômico.

Determino a cassação do diploma da recorrida MÁRCIA PEDRAZZI FUMAGALLI e declaro a sua inelegibilidade para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes ao pleito de 2020.

Considero prequestionada toda a matéria invocada nos autos, a fim de facilitar o acesso à instância recursal, e declaro nulos, para todos os fins, os votos atribuídos à recorrida, devendo ser realizado o recálculo dos quocientes eleitoral e partidário, por ser inaplicável à espécie o disposto no art. 175, § 4º, do Código Eleitoral por força do disposto no art. 198, inc. II, al. "b", da Resolução TSE n. 23.61/2019, dispositivo que foi objeto inclusive de confirmação pelo TSE no RO 603900-65.2018.6.05.0000, Rel. Min. Sergio Silveira Banhos, DJE de 26/11/2020.

Após transcorrido o prazo para embargos de declaração ou julgados os aclaratórios eventualmente opostos, comunique-se esta decisão à respectiva Zona Eleitoral, para cumprimento, e o registro das sanções nos sistemas pertinentes.