REl - 0600459-74.2020.6.21.0028 - Voto Relator(a) - Sessão: 07/10/2021 às 14:00

VOTO

O recurso é regular, tempestivo e comporta conhecimento.

No mérito, a prestação de contas foi desaprovada com fundamento na identificação do recebimento de doações, no somatório de R$ 1.420,00, provenientes de Jessica Martins e Lima e de Bruno Nogueira de Souza, beneficiários do auxílio emergencial de que trata o art. 2º da Lei n. 13.982/20, medida assistencial repassada às pessoas carentes pelo Governo Federal para minimizar os efeitos socioeconômicos decorrentes da pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), a evidenciar a ausência de capacidade financeira dos doadores e a caracterização das doações como recursos de origem não identificada, conforme excerto sentencial que transcrevo:

No caso em tela, constata-se que o candidato recebeu doações financeiras, no valor de R$ 710,00 cada, nas datas de 11/11/2020 e 12/11/2020. Tais doações foram registradas, na prestação de contas, no CPF de Jessica Martins e Lima e de Bruno Nogueira de Souza, respectivamente. Ocorre que as pessoas físicas em questão são beneficiárias do auxílio emergencial do governo federal (COVID19).

Em que pese a argumentação sustentada pelo procurador do candidato, entendo que a pessoa física, enquanto beneficiária de auxílio emergencial, necessita de tal complementação de renda para fins de suprir suas necessidades básicas, tais como alimentação, saúde, moradia. Nesse contexto, uma doação financeira para a campanha eleitoral do candidato em análise não condiz com a situação financeira do doador, ainda mais considerando que não foi trazido aos autos nenhum documento probatório que permita aferir a sua capacidade econômica.

Portanto, não foi possível identificar a origem do recurso, no valor de R$ 1.420,00, nos termos do art. 32, §1º, I, da Resolução TSE n. 23.607/2019. O art. 32 da citada resolução dispõe que os recursos de origem não identificada não podem ser utilizados por partidos políticos e candidatos e devem ser transferidos ao Tesouro Nacional por meio de Guia de Recolhimento da União.

 

De fato, conforme se constata no parecer conclusivo (ID 24039233), há identificação de doações na ordem de R$ 710,00, depositadas na conta do candidato, realizadas por Jéssica Martins e Lima (R$ 700,00, no dia 11.11.2020, e R$ 10,00, em 12.11.2020), bem como por Bruno Nogueira de Souza (R$ 710,00, em 11.11.2020), cidadãos que usufruem de programa social de auxílio emergencial.

Apesar de a legislação não prever vedação expressa à doação eleitoral por pessoa física beneficiária de programas sociais, a ausência de provas de que o doador possuía capacidade financeira para o aporte e a existência de indícios concretos de que o candidato não ignorava a condição de seu apoiador podem, sim, caracterizar a doação como recebimento de recursos de origem não identificada.

Nesse aspecto, não desconheço a jurisprudência deste Tribunal em pleitos anteriores, no sentido de que "a prova da capacidade econômica de terceiro doador não pode ser atribuída ao candidato, devendo eventual irregularidade dessa natureza ser apurada em demanda específica, qual seja, em ação de doação acima do limite legal, conforme entendimento firmado por este Tribunal" (TRE-RS - RE n. 30538, Relator: Des. Eleitoral Luciano André Losekann, DEJERS de 15.12.2017).

Tal como não olvido que esta Corte já sufragou o posicionamento de que “eventual fraude no recebimento de verbas sociais pelos doadores deve ser apurada na esfera competente, sem repercussão na análise da regularidade das contas” (TRE-RS - RE n. 26748, Relator: Des. Eleitoral Carlos Cini Marchionatti, DEJERS de 20.02.2017).

Entretanto, as particularidades do caso concreto o distinguem das hipóteses fáticas que deram origem aos precedentes mencionados.

De acordo com o “Demonstrativo de Receitas Financeiras” (ID 24036933), o candidato recebeu apenas três fontes de contribuições financeiras, sendo a primeira representada por seus recursos próprios, no montante de R$ 1.120,00, e as demais procedentes dos terceiros beneficiários do auxílio emergencial.

Os aportes em questão representaram 28,17% das receitas de campanha (R$ 5.040,00) e 55,90% dos recursos financeiros recebidos (R$ 2.540,00), tendo superado, inclusive, a verba advinda de recursos do próprio candidato.

Chama a atenção, ainda, o fato de que as cópias dos comprovantes de depósito eletrônico em dinheiro, referentes ao total doado, estão acostadas às contas (IDs 24038183, 24038283 e 24038333), permitindo a dedução da ocorrência de duas conjunturas: ou o contribuinte alcançou o documento ao prestador, ou próprio candidato operou o depósito, informando o CPF de terceiro.

Nessa medida, registro que, houvessem as contribuições de terceiros sido declaradas como advindas do patrimônio do candidato, seria alcançado o quantum de R$ 2.540,00 em autofinanciamento, configurando o excesso de gastos com recursos próprios, visto que, nas eleições para a Câmara Municipal de Ibiraiaras, tal limite restou fixado em R$ 1.230,77 (art. 23, § 2º-A, da Lei n. 9.504/97), justificando, em tese, também neste aspecto, a declaração de terceiros como fonte complementar dos recursos empregados em campanha.

Cumpre, também, considerar a conjuntura do pequeno Município de Ibiraiaras, com população de 7.338 habitantes (IBGE/2018), mesma localidade das contas julgadas no REl n. 0600456-22.2020.6.21.0028, de relatoria do eminente Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, envolvendo valores idênticos, de R$ 700,00 e R$ 710,00 naquele caso, em que a Corte entendeu por confirmar o dever de recolhimento ao erário do correspondente montante, na forma do art. 79, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19, conforme se extrai da seguinte ementa:

RECURSO. PRESTAÇÃO DE CONTAS. ELEIÇÕES 2020. CANDIDATO. VEREADOR. RECEBIMENTO DE DOAÇÃO DE BENEFICIÁRIO DE AUXÍLIO EMERGENCIAL DO GOVERNO FEDERAL. COVID-19. INCAPACIDADE ECONÔMICA. PREVALÊNCIA DA MORALIDADE E TRANSPARÊNCIA DAS CONTAS. FALHA DE VALOR ABSOLUTO DIMINUTO. APROVAÇÃO COM RESSALVAS. RECOLHIMENTO AO TESOURO NACIONAL DA QUANTIA IMPUGNADA. PROVIMENTO PARCIAL.

1. Recurso contra sentença que desaprovou prestação de contas e determinou o recolhimento de valor ao Tesouro Nacional, em virtude do recebimento de doação de pessoa física beneficiária do Auxílio Emergencial do Governo Federal (COVID19), a evidenciar ausência de capacidade financeira do doador, bem como ausência de demonstração da origem dos recursos.

2. Incontroversa a doação, depositada na conta do candidato, por cidadão que usufrui de programa social (Auxílio Emergencial). Existência de contradição no fato de que um cidadão beneficiário de auxílio emergencial destinado à alimentação tenha capacidade de realizar doação para campanha eleitoral, em valor superior ao próprio benefício. As peculiaridades do caso concreto demonstram a necessidade da análise do tema de forma sistemática, devendo prevalecer os valores da moralidade e da transparência das contas.

3. Os elementos constantes nos autos são suficientes para estabelecer a existência de uma relação entre o doador e o candidato, o que nunca foi negado pelo prestador das contas, bem como demonstrar que o prestador teve diversas oportunidades não aproveitadas para comprovar que a condição financeira do doador era compatível com a doação efetuada, conferindo idoneidade à transação.

4. A falha apontada importa no valor total de R$ 700,00, o que representa 29,66% dos recursos declarados como recebidos, importância que deverá ser recolhida ao Tesouro Nacional. Apesar de o percentual da irregularidade ser significativo diante do somatório arrecadado, o valor absoluto é reduzido e, inclusive, inferior ao parâmetro de R$ 1.064,10 (ou mil UFIR) que a disciplina normativa das contas considera módico, de modo a permitir o gasto de qualquer eleitor pessoalmente, não sujeito à contabilização, e de dispensar o uso da transferência eletrônica interbancária nas doações eleitorais (arts. 43, caput, e 21, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19).

5. Cabível a incidência dos postulados da razoabilidade e proporcionalidade para aprovar as contas com ressalvas. Circunstância que não afasta o dever de recolhimento ao erário, na forma do art. 79, § 1º, da Resolução TSE n. 23.607/19.

6. Parcial provimento.

(REl 0600456-22.2020.6.21.0028, Relator: Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, sessão de 19.5.2021.) (Grifo nosso)

 

Tenho, assim, que os elementos constantes nos autos são suficientes para que se estabeleça uma relação próxima entre o candidato e seus apoiadores, não sendo plausível, portanto, a alegação de que o recorrente desconhecesse suas condições econômicas ou ignorasse as qualidades de beneficiários do auxílio emergencial.

Esse conjunto de circunstâncias impõe a manutenção do mesmo entendimento acolhido à unanimidade por ocasião do referido julgamento, no sentido de fazer preponderar os princípios da moralidade e da transparência das contas, preservando, ainda, a finalidade social do benefício, qual seja, garantir a sobrevivência das pessoas que tiveram sua renda reduzida no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia da Covid-19.

Ora, conforme bem anotou a Procuradoria Regional Eleitoral, a campanha foi realizada em pequeno município do interior, em que o candidato recebeu apenas duas doações financeiras de terceiros, de modo que, “em circunstâncias como a dos autos, o doador certamente é conhecido do candidato”.

Ademais, há que se levar em conta o contexto dos fatos que comprovam o modus operandi de contribuições análogas à presente e que marcaram as eleições de 2020 na comunidade de Ibiraiaras, tendo em vista que, a partir de consulta aos registros dos recursos constantes no sistema PJe, constatam-se cerca de 23 processos sobre a temática remetidos a esta instância, sendo 16 destes provenientes de Ibiraiaras, todos com doações a candidatos por pessoas físicas beneficiárias da verba emergencial da covid-19. Não há, pois, como o beneficiário desconhecer a origem dos recursos.

Desse modo, não merece reparo a sentença no ponto em que reconheceu a irregularidade no recebimento de doações advindas de pessoas físicas beneficiárias do programa de auxílio emergencial, caracterizou o valor como recursos de origem não identificada, frente à ausência de esclarecimentos da parte interessada, e determinou o recolhimento do equivalente ao Tesouro Nacional.

Há contundentes indicativos de que o prestador se apartou dos deveres de transparência e colaboração no fornecimento de informações à Justiça Eleitoral, incorrendo em irregularidade grave, uma vez que se utilizou, para fins de campanha eleitoral, de verba legalmente destinada ao amparo de pessoas com vulnerabilidade social agravada durante a situação de emergência pública decorrente da pandemia da Covid-19, nos termos da Lei n. 13.982/20.

Ora, o contexto fático dos autos demonstra a existência de vínculo ou proximidade entre candidato e doadores, o que permitiria ao prestador suficiente elucidação da questão atinente à capacidade financeira deste último. Contudo, conforme bem apontou o juízo sentenciante, “não foi trazido aos autos nenhum documento probatório que permita aferir a sua capacidade econômica”.

Assim, tem-se que o prestador não cumpriu a contento o seu dever de informação e transparência na apresentação das contas, deixando, deliberadamente, de oferecer os esclarecimentos requeridos pelo juízo de origem acerca da situação financeira do doador, ou mesmo referir a relação mantida entre ambos.

Com isso, resta subtraída da sociedade aquilo que a doutrina de José Jairo Gomes refere como “a realidade da campanha”, como fator de transparência e legitimidade ao pleito, conforme explica o próprio autor:

Deveras, é direito impostergável dos integrantes da comunhão política saber quem financiou a campanha de seus mandatários e de que maneira esse financiamento se deu. Nessa seara, impõe-se a transparência absoluta, pois em jogo encontra-se o legítimo exercício de mandatos e consequentemente do poder estatal. Sem isso, não é possível o exercício pleno da cidadania, já que se subtrairiam do cidadão informações essenciais para a formação de sua consciência político-moral, relevantes sobretudo para que ele aprecie a estatura ético-moral de seus representantes e até mesmo para exercer o sacrossanto direito de sufrágio. (In.: Direito Eleitoral. 14. ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Atlas, 2018, p. 493)

 

Outrossim, a insuficiência dos esclarecimentos sobre a origem dos recursos em questão abre espaço, em tese, para a ocultação de eventual fonte vedada de receitas ou de transgressão aos limites de gastos legalmente impostos aos candidatos, afetando, sobremaneira, o controle sobre a origem dos recursos e o destino dos gastos de campanha exercidos pela Justiça Eleitoral.

Nessa medida, considerando, ainda, que as falhas alcançam o somatório de R$ 1.420,00, equivalente a 28,17% do total arrecadado, as circunstâncias do caso conduzem ao inexorável caminho da desaprovação das contas.

 

Ante o exposto, VOTO pelo desprovimento do recurso para manter a sentença que julgou desaprovadas as contas de JOSÉ RAIMUNDO LANZARIN, relativas ao pleito de 2020, e determinou o recolhimento da quantia de R$ 1.420,00 ao Tesouro Nacional.

Ainda, diante da formação da estratégia integrada para o combate a fraudes relacionadas ao recebimento do auxílio emergencial, determino o encaminhamento de cópia dos autos ao Ministério Público Federal, nesta capital, para a apuração de eventual prática de ilícito criminal, e autorizo o Ministério Público Eleitoral à extração de cópia do feito para as providências que entender cabíveis em relação a possíveis ilícitos eleitorais.