REl - 0601194-93.2020.6.21.0162 - Voto Relator(a) - Sessão: 19/08/2021 às 14:00

VOTO

O recurso é tempestivo e estão presentes os demais pressupostos de admissibilidade, razões pelas quais dele conheço.

Na questão de fundo, o PSB de Gramado Xavier e NEURI VALTER DE OLIVEIRA ajuizaram Ação de Investigação Judicial Eleitoral em face do MOVIMENTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO – MDB e PAULO ROBERTO GASPAROTTO (candidato a vereador reeleito nas Eleições de 2020) por suposto abuso de poder político, “bem como abuso de autoridade, de cargo e função exercida pelo representado em proveito próprio para levar vantagem no sufrágio de votos, em prejuízo dos candidatos adversários”. Igualmente, lançaram como um dos fundamentos da ação a norma prevista no art. 41-A da Lei das Eleições, a qual diz com a captação ilícita de sufrágio.

A respeito do abuso no Direito Eleitoral, veja-se o ensinamento da eminente doutrinadora Raquel Cavalcanti Ramos Machado:

[…] o ordenamento jurídico considera como infrações administrativas, eleitorais e penais condutas que possam interferir na normalidade e na legitimidade das eleições, ou que violem valores caros ao processo eleitoral, como o abuso do poder econômico, o abuso do poder político, o abuso de poder nos meios de comunicação, a captação ilícita de recursos, a captação ilícita de votos, a prática de condutas vedadas ou de fraude eleitoral. A jurisprudência vem considerando ainda outras formas de abuso, como o abuso de poder religioso e o de poder no registro de candidatura por sexo. Aquele que comete uma dessas infrações pode responder, assim, em diversas esferas (como a administrativa, a eleitoral e a penal).

1. ABUSO DE PODER NO DIREITO ELEITORAL: CONCEITO E ESPÉCIES

O poder é a capacidade de determinada pessoa ou grupo de fazer valer a sua vontade, numa relação. Ele advém de causas distintas, como a posição jurídica ou social ocupada por determinada pessoa, ou eventual condição de preponderância física, econômica e intelectual. Para o Direito Eleitoral, importam o poder político, o econômico e aquele nos meios de comunicação, com a análise de sua interferência desequilibrada no processo eleitoral. É relevante, nesse contexto, não apenas a compreensão do poder, mas do poder legítimo, cujo exercício se considera válido, para, então, se estudar o conceito de abuso de poder.

O poder político legítimo é prerrogativa detida por algumas pessoas para melhor exercerem determinada função, como, por exemplo, é a hipótese do poder do Chefe do Executivo para organizara máquina administrativa, com a finalidade de realizar o interesse público, concretizar o bem comum e o princípio da eficiência. Ocorrerá abuso de poder quando seu titular extrapolar suas atribuições ou tentar alcançar fins diversos dos que justificam suas prerrogativas. Por exemplo, a partir do momento em que o Chefe do Executivo utiliza a prerrogativa de organização da máquina administrativa para beneficiar um protegido político, ou a própria campanha eleitoral, claramente agirá com abuso de poder.

Do ponto de vista econômico, o poder legítimo corresponde a uma situação de destaque ocupada diante ou do bom desempenho em atividade econômica lícita, ou do domínio válido sobre patrimônio vultoso, como é o caso, por exemplo, do poder detido por empresário com atividade lucrativa, ou de pessoa que herdou elevada quantia. Ter-se-á abuso quando seu detentor utilizar a situação de destaque para subjugar a liberdade de terceiros, ou ainda para tentar manter a referida situação de destaque, artificiosamente. Haverá igualmente abuso de poder caso um empresário financie campanha, condicionando o financiamento a privilégios em futuros contratos administrativos firmados durante o mandato do candidato por ele apoiado. Ou ainda na hipótese de uma eleição ser ganha à custa da compra de votos. […]

(Direito eleitoral – 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018. Edição eletrônica)

Conforme se depreende, as modalidades de abuso no Direito Eleitoral visam ao combate de condutas que possam interferir na normalidade e na legitimidade das eleições; como também é o caso da corrupção eleitoral.

Para ter relevância para o Direito Eleitoral, o abuso de poder deve ser empreendido com vistas a se exercer indevida e ilegítima influência no processo eleitoral, seja em razão do cerceamento de eleitores em sua fundamental liberdade política, seja em razão da manipulação de suas consciências políticas ou indução de suas escolhas em direção a determinado candidato ou partido político (GOMES, José Jairo. Direito eleitoral – 16. ed. – São Paulo: Atlas, 2020. Edição eletrônica).

Assim, considerados esses parâmetros, colho da petição inicial o seguinte relato fático:

[…]

No dia 10/09/2020, nas vésperas da eleição, o Vereador réu, Paulo Roberto Gasparotto, carregou com seu veículo próprio, uma VW/Saveiro CS TL MB, placa IVM7229, pelo que se vê nas fotografias em anexo, 04 tubos de Cimento de propriedade do município, para utilizar normalmente, especialmente nos Municípios do Interior, para a construção de bueiros, ou seja, passagem de água por baixo da estrada a fim de facilitar o trânsito ou também para canalização de esgoto.

[…]

Veja Excelência que o investigado refere que os canos eram para ele próprio, porém, faz referência a divisa com a propriedade de Dona Teresa e assim sendo é por evidente que os canos também beneficiaram a propriedade de Dona Teresa, o que escancara o abuso do Poder Político, pois como se sabe ao Vereador não é possível praticar atos que são de exclusiva responsabilidade do Poder Executivo. Transporte e instalação de canos de propriedade do Município só podem ser feitos pelos funcionários do executivo e não que os membros do Poder Legislativo não possam ajudar, porém, no período eleitoral essa prática é explicitamente dedada pelo art. 41A, da Lei 9.504.

[…]

Nesse caso Excelência, a prova produzida não tem nenhum dúvida. O réu Paulo abusou do Poder Político ao carregar os tubos de propriedade do Município e mesmo que não tenha se utilizado de máquinas para a construção do bueiro, abusou do poder político junto com o Secretário Município e do próprio Prefeito que por via indireta autorizou o agir do réu. (sic)

Note-se: o relato da parte ora recorrente faz apenas uma rápida menção à “Dona Teresa” e ao evidente benefício que sua propriedade, vizinha ao terreno do candidato, teria auferido com os ditos canos – vizinha esta que não foi devidamente qualificada com seu nome completo e sequer foi arrolada como testemunha. Nesse sentido, nenhum outro benefício a eleitor é indicado ao longo da exordial.

Mesmo admitindo-se, em tese, a desnecessidade de se individualizar os eleitores beneficiados pelo ilícito, a conduta só terá relevância eleitoral se dotada de aptidão para influenciar o eleitorado e se daí surgir desequilíbrio que comprometa a legitimidade do pleito.

Em nenhum momento foi afirmado que o candidato teve contato com “Dona Teresa” para tratar sobre os canos (ou o bueiro), ou que visitou a casa da vizinha durante a campanha eleitoral, ou mesmo que ela tenha tomado conhecimento da obra em questão – realizada, diga-se de passagem, em localidade rural.

Dito de outro modo, não houve descrição de conduta, mesmo admitida em tese, com relevância para o Direito Eleitoral, não se vislumbrando tentativa de manipulação da consciência política ou indução nas escolhas de eleitor, nem violação da igualdade de oportunidade entre candidatos.

Com isso não se está sacramentando a licitude sob qualquer ângulo da conduta do recorrido, mas apenas que a suposta utilização da máquina pública teria se dado em benefício estritamente particular (a obra foi realizada na propriedade do candidato), sem comprometimento ou influência na percepção do eleitorado e no resultado das eleições.

Ainda, considero precário o argumento de que a suposta eleitora não foi arrolada porque negaria os fatos a fim de não confessar prática delitiva.

Logo, irretocável a decisão que indeferiu a petição inicial da ação subjacente.

Outra não é a direção do parecer do Procurador Regional Eleitoral (ID 40088733), o qual bem analisou a questão, inclusive sob o prisma da jurisprudência do TSE aplicável à espécie:

[...]

Percebe-se que, embora os recorrentes sustentem que a obra(canalização da água de uma vertente) tenha sido construída em benefício da candidatura do recorrido, o que se verifica dos autos é que, do próprio relato da inicial, se extrai que a obra foi realizada na propriedade do candidato.

É dizer, o objetivo da obra era beneficiar a propriedade do candidato, se daí decorreu eventual benefício a algum vizinho, que, no caso, seria a pessoa denominada de “Dona Teresa”, não é suficiente para se extrair desse fato a existência de captação ilícita de sufrágio, pois não há qualquer evidência ou mesmo notícia de relação entre a obra e o pleito eleitoral.

Como a suposta eleitora não foi arrolada como testemunha, evidente que os fatos se resumem à alegação de realização de obra na propriedade do candidato ora recorrido, que teria como efeito reflexo, mas não como objetivo eleitoral, eventual benefício para propriedade vizinha.

E, ainda que o recorrente tenha pugnado pela produção de prova oral, não se vislumbra plausibilidade no deferimento de tais oitivas, para elucidação de fato que, nos limites fixados na exordial, cinge-se à eleitora que não foi arrolada como testemunha e tampouco teve sua identidade revelada.

Assim, não se extrai dos fatos descritos na inicial a existência de captação ilícita de sufrágio.

Com mais razão não se poderia falar em abuso de poder político e econômico, vez que esse pressupõe a gravidade dos fatos, conforme a redação atual do inc. XVI do art. 22 da Lei Complementar 64/90. Sendo que as circunstâncias possuirão gravidade suficiente para configurar o ato abusivo se os atos praticados importarem em prejuízo à normalidade e legitimidade do pleito, bem jurídico tutelado conforme se extrai do § 9º do art. 14 da CF/88 e art. 19, § único, da LC 64/90.

Claramente, ainda que tivesse havido, com finalidade eleitoral, benefício a uma única eleitora, não possuiria o fato densidade suficiente para afetara normalidade e legitimidade do pleito e caracterizar o abuso de poder.

A Magistrada analisou com propriedade a questão, ao indeferir a petição inicial, como se observa no seguinte excerto de sua decisão (ID 20231233), in verbis:

Tecidas tais considerações, observo que, diante das alegações expostas na petição inicial e na contestação, não há dúvidas de que o representado Paulo Roberto transportou quatro tubos de cimentos, de propriedade do município, para a construção de bueiros em suas terras.

Todavia, como bem referiram os representados em sua defesa, aparte autora, que, repito, embasou sua ação na alegação de captação de sufrágio em razão da utilização de canos ou tubos de cimento pelo representado em benefício próprio, não identificou a suposta beneficiária ou arrolou como testemunha “Dona Teresa”, eleitora que teria, diante da narrativa inicial, tido o voto captado em razão da ação do representado, ônus que lhe incumbia, nos termos do art. 373 do CPP.

Sendo assim, nos termos do art. 330, § 1º, inciso III, do CPC mostra-se inepta a inicial, porque não se verifica em seus termos estrita consonância entre os fatos narrados e o pedido, constituindo este decorrência lógica dos fatos e fundamentos jurídicos e permitindo o exercício pleno do direito de defesa dos representados, que, no caso, restou inviabilizado.

O entendimento acima preconizado encontra-se em consonância coma jurisprudência do Col. TSE, como se observa do seguinte aresto, a contrario sensu:

ELEIÇÕES 2014. RECURSOS ESPECIAIS. RECEBIMENTO. RECURSOS ORDINÁRIOS. FUNGIBILIDADE. AÇÕES DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ABUSO DE PODER POLÍTICO. CONFIGURAÇÃO. GOVERNADOR CANDIDATO A REELEIÇÃO. AUMENTOS SALARIAIS. SERVIDORES PÚBLICOS. VÉSPERA DO PERÍODO ELEITORAL. DESPROVIMENTO. CANDIDATO A VICE-GOVERNADOR. MERO BENEFICIÁRIO. PARCIAL PROVIMENTO.

1. Preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso cabível, devem ser conhecidos os recursos especiais como ordinários, em atenção ao princípio da fungibilidade recursal, por se tratar de recurso que versa sobre inelegibilidade em eleições gerais.

2. Quanto à alegada inépcia da inicial, este Tribunal já afirmou que "para que a petição inicial seja considerada apta, é suficiente que descreva os fatos que, em tese, configuram ilícitos eleitorais, e que haja estrita consonância entre os fatos narrados e o pedido, constituindo este decorrência lógica dos fatos e fundamentos jurídicos e permitindo o exercício pleno do direito de defesa dos representados. Precedente" (AgR-REspe nº 416-48/RJ, Rel. Min. Maria Thereza Rocha de Assis Moura, DJe de 7.10.2014).(…)

(Recurso Ordinário nº 1840, Acórdão, Relator Ministro Tarcisio Vieira De Carvalho Neto, Publicação: DJE - Diário da justiça eletrônica, Tomo 36, Data 20/02/2019, Página 65/67) – (Grifou-se.)

A manutenção da sentença, pois, é medida que se impõe.  (Grifos no original)

No mesmo sentido, recente decisão deste Colegiado, que manteve indeferimento de inicial de Ação de Investigação Judicial Eleitoral devido à ausência de indício mínimo de prova ou de requerimento de dilação probatória quanto à potencialidade lesiva dos fatos narrados na exordial para influenciar o resultado das eleições:

RECURSO. ELEIÇÕES 2020. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL – AIJE. CARGOS MAJORITÁRIOS. VEREADOR. EXTINÇÃO DO FEITO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO. PRELIMINAR. CUMULAÇÃO DE PEDIDOS. APURAÇÃO DE ABUSO DE PODER E CONDUTAS VEDADAS. POSSIBILIDADE. RITO DO ART. 22 DA LEI COMPLEMENTAR N. 64/90. GRAVIDADE DAS CIRCUNSTÂNCIAS. PRESSUPOSTO SUFICIENTE. PARTIDO POLÍTICO COLIGADO. ATUAÇÃO ISOLADA. PLEITO MAJORITÁRIO. ILEGITIMIDADE ATIVA. PLEITO PROPORCIONAL. POSSIBILIDADE DE ATUAÇÃO. ABUSO DE PODER POLÍTICO OU ECONÔMICO. CONDUTAS VEDADAS. INOCORRÊNCIA. PROMOÇÃO PESSOAL EM REDES SOCIAIS. ATIVIDADE LÍCITA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E IMPROVIDO.

1. Insurgência em face da sentença que indeferiu a inicial da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) por considerar manifestamente inadequada a via processual eleita para o processamento do pedido de condenação pela prática de abuso de poder político e econômico (art. 22, caput, da LC n.64/90), devido à ausência de um indício mínimo de prova, ou de requerimento de dilação probatória, acerca da potencialidade lesiva dos fatos objeto da exordial para influenciar o resultado das eleições, extinguindo o processo sem resolução de mérito (art. 485, incs. I e IV, do CPC).[...]

4. Publicação de vídeo em perfil pessoal na rede social Facebook com suposta finalidade eleitoral e que caracterizaria publicidade institucional em período vedado. Não identificada hipótese de uso da máquina pública na produção e na divulgação da postagem voltada a beneficiar campanhas eleitorais em canal exclusivo da Administração em ambiente das redes sociais, elemento indispensável ao reconhecimento da propaganda institucional, segundo as diretrizes adotadas na interpretação da norma proibitiva do art. 73, inc. VI, al. "b", da Lei n. 9.504/97 (TSE, RESPE n. 0000376-15.2016.6.08.0027/ES, Relator Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, DJE de 17.4.2020).

[...]

6. Contexto fático e probatório insuficiente para demonstrar o cometimento de abuso de poder político ou econômico, por intermédio do uso irregular da estrutura pública municipal, que pudesse ensejar condenação à penalidade de cassação do registro ou diploma, com fundamento no art. 22, caput e incs. XIV e XVI, da LC n. 64/90. Não constatada a negativa de prestação jurisdicional, através do indeferimento da petição inicial, que pudesse justificar o retorno dos autos ao primeiro grau para o seguimento à instrução do processo.

7. [...] Provimento negado ao apelo, ao efeito de manter a decisão que indeferiu a inicial da presente Ação de Investigação Judicial Eleitoral e extinguiu o processo sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, incs. I e IV, do CPC.

(Recurso Eleitoral n 060064725, ACÓRDÃO de 13/04/2021, Relator Desembargador AMADEO HENRIQUE RAMELLA BUTTELLI, Publicação: PJE – Processo Judicial Eletrônico-PJE)(Grifei.)

À vista dessas considerações, por qualquer aspecto que se examine as teses recursais, não se vislumbra possibilidade de reforma da decisão recorrida.

De outro lado, embora reconhecido o defeito da petição inicial, a ação não foi deduzida de forma temerária ou com manifesta má-fé, o que prejudica a meu juízo o pleito deduzido em contrarrazões de fixação de verba indenizatória ou de incursão quanto à incidência do art. 25 da LC n. 64/90.

Portanto, em razão de todo esse contexto, a manutenção da sentença, com a negativa de provimento ao recurso, é medida que se impõe.

DIANTE DO EXPOSTO, voto pelo desprovimento do recurso.