REl - 0601034-13.2020.6.21.0148 - Voto Relator(a) - Sessão: 12/08/2021 às 14:00

VOTO

 

Da Admissibilidade

A parte recorrente foi intimada da sentença em 24.03.2021 (ID 40438033), vindo a transcorrer no dia 05.04.2021 o decêndio para ciência eletrônica, na forma do art. 55, caput, da Resolução TRE-RS n. 338/19 e do art. 5º, § 3º, da Lei n. 11.419/06.

Portanto, o prazo de três dias para a interposição, previsto no art. 258 do Código Eleitoral, teve seu termo final em 08.04.2021, sendo tempestivo o apelo protocolado em 06.04.2021 (ID 40438083).

Assim, atendidos dos demais pressupostos, conheço do recurso.

Do Mérito

No mérito, narra a inicial que o prefeito reeleito Carlos Alberto Bordin teria efetuado o pagamento de tratamento médico de 21 munícipes, deixando, deliberadamente, para proceder, às vésperas do pleito de 2020, ao custeio dos remédios e equipamentos de que necessitavam. Relata, ainda, que houve a aquisição de óculos para eleitores, sem qualquer amparo legal ou credenciamento em programas que autorizassem tais compras. Finalmente, sustenta o demandante que o então prefeito teria, propositalmente, represado os repasses de pagamento do transporte escolar, para fins de “inflar” os valores referentes aos meses de julho a outubro no ano do pleito.

Desse modo, defendem os recorrentes que o prefeito reeleito de Jacutinga teria incorrido em abuso de poder político e econômico, compra indireta de votos, autopromoção com o uso de recursos públicos e condutas vedadas pela Lei n. 9.504/97, além de improbidade administrativa, o que justificaria a cassação dos diplomas e dos mandatos eletivos dos ora recorridos.

A AIME manejada tem assento no art. 14, § 10, da Constituição Federal e comporta cabimento nas hipóteses de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.

A teor da jurisprudência da Corte Superior Eleitoral, “é possível apurar, em Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME), abuso de poder político entrelaçado com abuso de poder econômico. Trata-se de hipótese em que agente público, mediante desvio de sua condição funcional, emprega recursos patrimoniais, privados ou do Erário, de forma a comprometer a legitimidade das eleições e a paridade de armas entre candidatos" (TSE, AgR-REspe n. 36-11/SC, Rel. Min. Rosa Weber, DJE de 2/8/2018).

O objeto da controvérsia consiste, portanto, em apurar se os recorridos incorreram em abuso de poder político em razão do desvio de finalidade dos programas assistenciais do município, bem como em abuso do poder econômico, porque, neste suposto desvio, empregaram recursos públicos com fins eleitoreiros.

Visando demonstrar suas alegações, a Coligação autora juntou 23 notas de empenhos orçamentários da Secretaria Municipal de Saúde, referentes a pagamentos de custos do tratamento médico de pacientes do município no ano de 2020 (IDs 40432233 a 40433633), sendo dois referentes ao pagamento de óculos (empenhos ns. 4871 e 8386). Acostou, também, os empenhos ns. 2020-99 e 2020-100, da Secretaria Municipal de Educação, no somatório de R$ 12.805,00, relativos ao auxílio no transporte a estudantes no ano de 2020 (IDs 40432483 e 40432533).

Os principais aspectos dos documentos foram minuciosamente expostos no parecer da Procuradoria Regional Eleitoral, o qual adoto e transcrevo:

Analisando os documentos trazidos com a inicial, verificam-se cerca de vinte e sete empenhos efetivados pelo Município de Jacutinga no âmbito da saúde, a maior parte entre outubro e novembro de 2020, subfunção “assistência hospitalar e ambulatorial”, tendo como especificação auxílio no tratamento médico de cerca de vinte e três pacientes e como favorecidos, em geral, os próprios pacientes ou seus responsáveis, e eventualmente os hospitais e centros de diagnósticos, seja a título de medicamentos, consultas, exames, procedimentos médicos, etc, atingindo o valor total aproximado de  R$ 11.920,00. Trazidos, ainda, o empenho 2020-99, subfunção “Ensino Superior”, no valor de R$ 10.000,00, com especificação “auxílio no transporte de estudantes ref. ao ano de 2020, conforme relações em anexo”, dos quais R$ 6.864,00 pagos em 30.10.2020, R$ 336,00 em 24.11.2020, R$ 2.220,00 em 11.12.2020 e R$ 580,00 em 18.12.2020 (ID 40432483); e o empenho 2020-100, mesmas subfunção e especificação, no valor de R$ 2.805,00, dos quais R$ 2.040,00 pagos em 30.10.2020, R$ 510,00 pagos em 15.12.2020 e R$ 255,00 pagos em 17.12.2020 (ID 40432533).

 

De seu turno, em defesa, os demandados afirmam que os auxílios concedidos para o tratamento de saúde dos munícipes não representaram artifício eleitoreiro, uma vez que possuem amparo legal e inserem-se em programa de saúde pública em execução em anos anteriores, conforme previsto nas Leis Orçamentárias ns. 2.443/15, 2.513/16, 2.589/17 e 2.678/18, bem como na Lei n. 2.777/19 para o ano de 2020.

Consta nos autos, igualmente, a Resolução n. 02, de 26 de maio de 2017, na qual o Conselho Municipal de Saúde de Jacutinga aprova o plano de auxílios financeiros da Secretaria Municipal de Saúde (IDs 40435483 e 40435583), prevendo que:

A Secretaria Municipal da Saúde, (através da avaliação dos técnicos da mesma) poderá conceder auxílios (de 50% ou 100%) para realização de exames ou procedimentos aos usuários locais mediante ressarcimento aos mesmos, somente serão realizados os auxílios em caso de URGENCIA E/OU EMERGENCIA e/ou negativa do SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE, sendo pela demora ou inexistência do referido tratamento pelo Sistema. Os auxílios com notas de valor acima de R$ 2.000,00 deverão ser levados a apreciação do Conselho de Saúde.

 

Posteriormente, o alcance do aludido plano foi ampliado pela Resolução n. 2, de 02 de abril de 2020, editada pelo mesmo Conselho Municipal de Saúde (ID 40435533), pelo qual são regradas “a concessão de auxílios financeiros aos usuários da saúde municipal” para a realização de exames ou procedimentos (art. 1º), “para a aquisição de próteses visuais” (art. 2º), “para a aquisição de próteses dentárias” (art. 3º) e medicamentos (art. 4º).

A razões de contestação destacam, outrossim, que o programa de auxílio de transporte escolar encontra sua base legal nas Leis Municipais ns. 2.531/17 e 2.539/17 e no Decreto n. 3.735/2017, sendo executado, nos mesmo moldes atuais, desde o ano de 2016, conforme consta nas Leis de Diretrizes Orçamentárias dos exercícios anteriores, quais seja, “LDO-Lei 2.434/2015 - art.35; Lei 2.501/2016 - art.37; Lei 2.577/2017- art.37; Lei 2.660/2018 - art.37; Lei 2.759/2019 - art.38; Lei Orçamentária nº 2.443/2015; Lei 2.513/2016; Lei 2.589/2017; Lei 2.678/2018 e Lei 2.777/2019, com previsão no Projeto Atividade 0012”.

Com efeito, de acordo com a Lei Municipal n. 2.531, de 14 de março de 2017 (ID 40437183): “Fica o Poder Executivo autorizado a conceder auxílio financeiro aos estudantes residentes no Município, matriculados nas Universidades de Erechim e Getúlio Vargas e de ensino técnico secundarista, destinado a custear suas despesas com a locomoção” (art. 1º).

O art. 2º do aludido diploma prevê, ainda, que “O auxílio será concedido sob a forma de vale-transporte, fornecido pelo Município aos alunos, proporcionalmente ao valor despendido com locomoção”, observando os parâmetros de frequência e destino que estabelece em seus incisos.

Por fim, os art. 3º e 4º da mesma lei elencam os requisitos, saliente-se, de natureza objetiva, para que o estudante tenha direito ao benefício, verbis:

Art. 3º Para fazerem jus ao auxílio, os estudantes deverão cadastrar-se na Secretaria Municipal de Educação, Cultura e Desportos, apresentando a seguinte documentação:

I - requerimento solicitando o auxílio;

II - atestado de matrícula em cursos técnicos ou de nível superior, em instituições de ensino reconhecidas pelo MEC;

III - declaração do transportador e/ou da Associação de Estudantes do Ensino Superior ou Médio (AJESE/ASEJAC);

IV - não possuir débitos com o Município.

 

Art. 4º Mensalmente, para receber o Vale-Transporte do Município, o aluno deverá apresentar Atestado de Assiduidade e/ou frequência fornecido pela instituição de ensino em que estiver matriculado, no qual será observado o percentual mínimo de frequência de 70% (setenta por cento).

Parágrafo único. O beneficiário que não alcançar o percentual previsto no caput deste artigo não terá direito ao vale-transporte no mês seguinte, devendo efetuar a comprovação no mês posterior, para voltar a fazer jus ao benefício.
 

Assim, verificando-se a documentação juntada com a resposta dos demandantes à ação, percebe-se que os auxílios na área de saúde, incluindo as subvenções para a aquisição de óculos, bem como os auxílios pertinentes ao programa de transporte escolar tinham amparo em previsão legal, possuíam dotação orçamentária específica e estavam sendo executados, minimamente, desde o ano de 2016, em relação ao transporte escolar, ou de 2017, no que se refere à assistência à saúde.

Destarte, a demonstração de que os programas públicos questionados estavam em execução orçamentária antes de 2020 afasta a proibição de que trata o art. 73 da Lei n. 9.504/97, trazendo a incidência da exceção prevista no parágrafo 10 do mencionado dispositivo legal relativamente a “programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior”, conforme segue:

Art. 73. [...].

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.

 

No tocante à eventual abuso ou desvio eleitoreiro dos programas, a certidão de ID 40435333 consolida as aplicações financeiras vertidas pela Prefeitura desde o exercício de 2016, não havendo indicações de excessos ou aplicação anormal das verbas em razão do ano eleitoral de 2020:

Como se percebe do documento, corroborado pelas dotações orçamentárias legalmente estabelecidas para cada exercício, as despesas com auxílio-transporte aos estudantes, no ano de 2019, foi bastante inferior àquelas aplicadas nos anos anteriores, alcançando menos da metade daquele montante em 2020, o que claramente decorre dos períodos de suspensão das aulas presenciais em razão das medidas contra a pandemia da Covid-19.

Por sua vez, a crise sanitária provocada pelo novo coronavírus, igualmente, justifica o incremento de dispêndios, em 2020, no programa de concessão de auxílios financeiros aos usuários da saúde municipal, tendo em conta que sua finalidade legal é justamente suprir a demora ou inexistência dos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual, como notório, atuou com sobrecarga no decorrer daquele ano, por consequência da pandemia de Covid-19.

Nesse ponto, bem anotou o Dr. Samuel Borges, magistrado sentenciante, que, “em que pese o pleito eleitoral em andamento, não poderia o município se furtar de prestar adequadamente assistência à saúde de seus cidadãos”.

Ainda assim, comparativamente às execuções financeiras pretéritas, a cifra gasta em 2020 encontra-se dentro da razoabilidade, pois singelamente superior às subvenções de saúde do ano de 2018 e mais de um décimo por cento inferior ao valor referente ao ano anterior.

Sobre a afirmação de que os pagamentos de transporte escolar teriam se centrado em outubro, visando promover um benefício eleitoral, às vésperas do pleito, os recorridos argumentam que “o mesmo se deu em razão da suspensão do transporte por alguns meses, com a retomada gradativa, em especial daqueles alunos em final de curso e/ou que estavam realizando estágio, tudo em razão da pandemia”.

Com efeito, embora cause espécie a concentração dos repasses correspondentes aos meses de julho a outubro no dia 30.10.2020, ou seja, quinze dias antes do pleito, não se pode ignorar que o ano de 2020 foi atípico no que concerne aos calendários escolares e aulas presenciais nos diversos níveis de educação.

No aspecto, colho, mais uma vez, a minudente análise do douto Procurador Regional Eleitoral, que judiciosamente elucida a questão:

No ano de 2020, consoante a Ordem de Pagamento referente ao empenho 99/2020, credor “folha auxílio estudantes Banrisul” (ID 40437483) observa-se que, de fato, houve a liberação de R$ 6.864,00 a título de auxílio transporte, com depósitos de valores mais altos nas contas dos estudantes em 30.10.2020. Porém, também observa-se que o referido repasse se refere ao represamento que ocorreu nos meses de julho, agosto, setembro e outubro de 2020, atingindo, assim, o total de quatro meses. Da mesma forma, a Ordem de Pagamento referente ao Empenho 100/2020, credor “folha auxílio estudantes – Sicredi”, no valor total de R$ 2.040,00 (ID 40437533). Comparando-se com o total de recursos repassados referentes ao mês de outubro de 2018, ocasião em que o total de pagamentos foi de R$ 6.115,00 (IDs 40437383 e 40437433), percebe-se que os valores repassados em outubro de 2020 foram, de fato, maiores em cerca de 45,6%, porém abrangendo competências de quatro meses, pelo que se percebe que o valor mensal repassado foi inclusive menor que aquele observado no ano de 2018.

Em que pese o montante a maior repassado em data próxima ao pleito de 2020 possa gerar, à primeira vista, uma sensação de benefício eleitoral, o que se verifica é que os valores corresponderam a aportes que regularmente já ingressavam na conta dos alunos e cujos repasses estavam em atraso no ano de 2020, sendo, aliás, verossímil a justificativa de que tal retenção ocorreu por necessidade de adequação à gradual retomada das aulas presenciais no ano de 2020, bem como aos alunos que continuaram tendo necessidade de deslocamento em razão dos estágios obrigatórios.

 

Com efeito, o contexto excepcional da crise sanitária vivenciada desde 2020, torna plausível o argumento de que os repasses da subvenção de transporte escolar tenham ocorrida de forma intermitente e que os atrasos tenham sido compensados à medida que parcela maior dos estudantes inscritos no programa retornavam às atividades presenciais.

Cabe ressaltar que as circunstâncias não revelam o incremento de beneficiados ou a majoração de investimentos do programa social com a iminência das eleições, os quais poderiam, sim, sugerir a manipulação indevida das despesas. O que se depreende dos autos, diversamente, é a mora em relação ao repasse para estudantes que, por situações particulares, continuaram fazendo jus benefício no período em questão, mas que foram reembolsados em atraso.

Outrossim, uma vez que os repasses de transporte escolar consistem em obrigação do ente público aos alunos que atendam aos requisitos legais, em programa executado de forma regular em anos anteriores, soa improvável que eventual suspensão, represamento ou atraso nos pagamentos, somente compensados meses à frente e a uma parcela menor de beneficiários, pudesse resultar no favorecimento eleitoral sugerido pela recorrente.

Desse modo, a gravidade das condutas, ou seja, a “aptidão para comprometer a lisura, na normalidade e legitimidade das eleições” (Gomes, José Jairo. Direito Eleitoral. 12ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2016, p. 663), a qual, é “critério de constituição do abuso de poder” (Zilio, Rodrigo López. Direito Eleitoral. 7. ed. Juspodivm, 2020, p. 652), não se faz presente na espécie.

Para a cassação de diploma de detentor de mandato eletivo é imprescindível a constatação cabal da gravidade das circunstâncias que caracterizam os fatos, a contaminar de modo irremediável a regularidade do processo eleitoral, de acordo com o que prevê o inc. XVI do art. 22 da Lei Complementar n. 64/90, in verbis:

Art. 22. (…).

XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)

 

Nesse toar, tanto em relação aos auxílios para tratamento de saúde quanto no tocante aos auxílios para transporte escolar, a prova dos autos revela consistirem em programas sociais instituídos e disciplinados por lei, executados com recursos orçados anteriormente ao ano eleitoral, e que já eram implementados de forma equivalente em anos anteriores ao pleito.

Tais elementos, como antes exposto, são suficientes para que se afaste, de plano, suposta infringência ao art. 73, § 10, da Lei n. 9.504/97, e, ausentes provas cabais de desvio de finalidade, autopromoção indevida ou incremento irrazoável dos referidos programas no ano do pleito, não têm o condão de configurar abuso de poder, sob qualquer de suas formas, requisito indispensável à procedência da presente ação judicial.

Além disso, do exame dos autos, não se constata a existência de prova mínima de que os auxílios e subvenções em questão tenham sido prometidos ou dados a determinado eleitor sob a condição do voto, havendo tão somente suposições genéricas dos demandantes acerca desses fatos e do eventual benefício eleitoral auferido pelos candidatos.

Por essas razões, não se pode falar nestes autos na prática de abuso do poder ou corrupção, como forma de ensejar desequilíbrio grave a afetar a normalidade e legitimidade das eleições, em benefício da campanha eleitoral dos demandados em detrimento de outros candidatos, uma vez que não existe prova robusta e inconteste nesse sentido, impondo-se a manutenção da sentença que julgou improcedente a ação.

 

ANTE O EXPOSTO, VOTO pelo desprovimento do recurso, a fim de confirmar a sentença que julgou improcedente a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo.